Música e religião, os dois lados de uma mesma moeda
Duas ferramentas que quando se juntam podem promover sensações e emoções únicas, desde os princípios dos tempos
Desde que o mundo é mundo, o som tem sido instrumento de ligação dos seres humanos com o sobrenatural. A música, em especial, tem feito parte dos rituais de fé desde os primórdios da história como forma de conectar e elevar as pessoas às suas divindades e crenças.
A história egípcia conta que o deus Thot criou a música e a ensinou a Osiris para que pudesse civilizar o mundo; os incas tocavam flautas e tambores em louvor ao Sol e à Lua; na Grécia, Anfião ergueu Tebas usando a força do som e Orfeu acalmou as bestas tocando sua lira; entre os povos nativos, ao redor do mundo, a música serve como meio de contato com os deuses; no cristianismo os cânticos funcionam como meditação e no protestantismo como adoração. Seja a crença que for, é difícil achar uma religião sequer que não faça da música um instrumento de fé.
A psicóloga e musicóloga suíça Maria Spychiger, pesquisadora das relações entre a musicalidade e as expressões dos seres humanos, afirma que tanto a música quanto a religião podem desencadear sentimentos difíceis de definir e que têm a capacidade de provocar sensações e experiências além do compreensível. Sendo assim, ao unir duas ferramentas tão poderosas, capazes de atender às necessidades mais subjetivas e íntimas das pessoas, tem-se a música como um possível meio de propagação de mensagens religiosas e a religião como elemento de inspiração para músicos e compositores.
Essa relação é facilmente encontrada na música ao longo da história. Grandes mestres como Mozart, Beethoven e Vivaldi compuseram missas em louvor a Deus, proclamando liturgicamente anseios e questionamentos sobre vida e morte. Já nos primórdios do Rock'n'roll, em meados do século 20, viu-se uma música que flertava com outros tipos de crenças, como ocultismo e satanismo, criando o senso comum de que o diabo seria o pai do rock. O próprio John Lennon, guitarrista e líder de uma das maiores bandas do gênero no mundo, os Beatles, chegou a declarar, em uma entrevista, que sua banda seria mais popular que Jesus Cristo. O ano era 1966 e o resultado foram alguns fãs a menos e muitos discos dos 'garotos de Liverpool' queimados sob fortes protestos.
Décadas mais tarde, outras bandas se encarregariam de estreitar os laços entre esse estilo musical e o ‘Demo’, como Led Zeppelin, AC/DC, The Doors, Black Sabath, Iron Maiden e Slayer. Algumas delas inspiradas em Aleister Crowley, um famoso satanista e ocultista da Inglaterra. Crowley também motivou o roqueiro brasileiro Raul Seixas, que chegou a criar uma 'Sociedade Alternativa', baseada em um dos 'dogmas' do filósofo inglês: "Faça o que queres pois é tudo da lei".
Na música nacional, aliás, não faltam exemplos de religiosidade. Sendo o Brasil o país mais católico do mundo (com 172,2 milhões de fiéis, segundo o Anuarium Statisticum Ecclesiae 2015, do Vaticano), é comum o uso de temas relacionados a esta fé na música popular. Um dos maiores ícones dela, o Rei Roberto Carlos, imortalizou canções para Nossa Senhora e Jesus Cristo. Aliás, como bom brasileiro, filho de pai espírita e mãe católica, o Rei é o típico exemplo da miscelânea religiosa brasileira e abusa das superstições, como não pronunciar palavras como ‘azar’ e ‘inferno’; usar sempre um medalhão do Sagrado Coração de Jesus, presente de uma freira; e só usar roupas azuis e brancas, nunca marrom ou preto.
Seguindo este ‘modelo’, outros músicos brasileiros como Milton Nascimento, Zé Ramalho, Zeca Pagodinho, Clara Nunes, Os Tincoãs e Jorge Ben Jor não só se debruçaram (e ainda o fazem) em temas católicos como também beberam em outras fontes, como as religiões de matriz africana - candomblé e umbanda -, religiões de matriz indígena, budismo e espiritismo.
"Cantar uma vez é rezar duas"
A frase de Santo Agostinho parece sintetizar bem toda a relação entre religião e música. As preces e fundamentos de cada fé podem e são constantemente propagadas através da musicalidade. É o que fazem os músicos da Jahfé, banda de reggae da zona norte do Recife. Formada em 2015, pelo vocalista e violonista Rasxama Chacon, o grupo trabalha, em suas composições, os ensinamentos e filosofias do rastafarianismo.
Antes da Jahfé, Chacon já havia passado por outras bandas, em uma delas, era rotina tirar um dia da semana para estudar o rastafarianismo e a bíblia rastafari, a Kebra Nagast. O músico, rastafari desde 2004 falou ao LeiaJá sobre o trabalho desenvolvido na Jahfé: "Cada um (músico) tem sua própria religião, mas todos com a mesma ligação que é levar o conhecimento de Jah".