Sabem aquele livro que sulca definitivamente o coração do leitor, criando lugar que nada mais pode preencher, senão a literatura? Comigo foi Margem de lembranças, de Hermilo Borba Filho. É o romance de abertura da tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, cujos volumes serão relançados hoje à noite, 19h00, na Fundaj. Deixo aqui a sugestão do evento, porque não vou estar lá. Não posso.
Nada contra o autor, pelo contrário: morreu em 1976, ano anterior ao meu nascimento, e nada que descubro ou aprendo sobre ele reduz minha admiração. Tampouco sua obra foi daquelas que, passado tempo, a gente vai desgostando. Negócio é que planejo fazer doutorado em breve, e detestaria pensar novamente em Hermilo como tema.
Existem necessidades na vida acadêmica com as quais reconheço ter enorme dificuldade: 1) não sei lidar com o tempo dos cursos, mudo demais ao longo da pesquisa, quero refazer o rumo sempre; 2) embora saiba que correr anos em qualquer estudo requer simpatia pelo objeto escolhido, não sei conciliar afeto demais com racionalidade. Ou gosto muito, ou trabalho muito com algo – as duas coisas, não dá.
Sei que tem monte de gente que separa paixão e reflexão sem grande sofrimento. Eu, contudo, nunca transito tão facilmente nessas esferas. Se me apego bastante, perco metade da clareza, no mínimo. Namoradas, vejo com metade dos defeitos que outros denunciam; meu time de futebol, desagrada-me bem menos do que os resultados dentro de campo pedem; e não consigo ler meus escritores preferidos como se fosse médico tecendo diagnóstico – a simples ideia de riscar páginas de Hermilo com caneta marca-texto já me deixa agoniado.
Naquela Margem de lembranças, não sei medir friamente as marés. Rios, pais, casa, mulheres, cachaçadas, brigas, desespero... Ali, navego de olhos fechados, sou quase todo imaginação, enlevo. Ainda tem aquela familiaridade, sensação que chega a ser angustiante. Nada disso combina com meu jeito de lidar com as obras que tomo para crítica ou análise mais demorada.
Verdade que falei sobre os romances hermilianos como especialista, principalmente em 2007, quando dos 90 anos desse genial palmarense. Palestrei algumas vezes sobre como Hermilo Borba Filho era antenado, como sua obra juntou bastante das principais características e temas que moveram sua geração, como Um cavalheiro da segunda decadência é leitura obrigatória para estudiosos da literatura brasileira. Desconfio, no entanto, que nunca fui além uma espécie de noivo apaixonado, com os quatro pneus arriados, dizendo palavras sobre a amada na festa de casamento. Meu julgamento é suspeitíssimo.
Casamento que não acabou. Por isso mesmo, desisti de lhe prestar homenagens ou dedicação profissional. Deixo Hermilo como tema privado, para intimidade da casa. Sem cerimônias, sem prazos, sem caneta marca-texto.
Pode até ser promessa furada, pois amores têm disso. Mas creio publicar aqui, nesta coluna, minhas últimas palavras sobre Hermilo Borba Filho. Poucas, pobres, cansadas pela madrugada de sono. Mas que palavras dariam conta desse caso de amor entre um romancista-morto e um leitor-nem-tão-vivo, ambos da Mata-Sul de Pernambuco, ambos de uma civilização perdida entre rios e partidos de cana? Nenhuma. São margens inacessíveis. Águas ora submersas, ora voando longe demais. Longe demais.