Vítimas de estupro começam a ter voz na Nigéria

Até agora neste ano, mais de 1.200 mulheres procuraram ajuda. Somente em outubro, houve 148 pacientes novas

seg, 23/12/2019 - 09:20
PIUS UTOMI EKPEI Campanha da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) para a prevenção da violência sexual em Port Harcourt, em 20 de novembro de 2019 PIUS UTOMI EKPEI

Sarah conta o terror que passou com sua colega de quarto quando dois homens armados entraram em sua casa e as estupraram em plena luz do dia em Port Harcourt, a grande cidade do sul da Nigéria.

"Eles entraram por volta das duas da manhã. Nos estupraram. Quando saíram, roubaram nossos telefones e dinheiro".

Não puderam ver seus rostos porque eles usavam máscaras.

A vergonha e o medo do estigma sustentaram o silêncio dessa jovem de 25 anos, que não contou nada à polícia, nem aos amigos ou família.

"Não se fala sobre essas coisas aqui", diz Sarah, que prefere usar este nome fictício.

Essa enfermeira começou a se preocupar com sua saúde e juntou coragem para ir a uma clínica especializada em violência sexual, dirigida pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Lá ela recebeu tratamento. Finalmente, pouco a pouco, encontrou forças para contar sua história a uma psicóloga.

- Epidemia de estupros -

Os dados de admissão na pequena clínica falam amplamente sobre a epidemia de estupros que a região enfrenta.

Até agora neste ano, mais de 1.200 mulheres procuraram ajuda. Somente em outubro, houve 148 pacientes novas.

Port Harcourt tem muitos dos problemas de pobreza e desigualdade, que são comuns nas grandes cidades da Nigéria.

Também proliferam as chamadas "seitas", gangues que surgem nas universidades e eventualmente se tornam organizações criminosas que geralmente realizam rituais e juramentos de sangue.

Eles realizam ataques, sequestros para pedir resgate e outros crimes, nos quais a vítima geralmente sofre violência sexual.

"Quando há confrontos entre seitas na comunidade, as pessoas dispersam e os criminosos armados entram nas casas e estupram as meninas", conta Christine Harrison, coordenadora da MSF no distrito de Diobu.

Esta mãe de 42 anos percorre as ruas poeirentas, divulgando o número de emergência que as vítimas podem chamar, um trabalho que já faz há dois anos.

"Meu trabalho é informar as mulheres que elas precisam defender seus direitos", afirma. "Antes, o estupro era normal".

A campanha de conscientização sobre estupros da MSF inclui mensagens em rádios locais e adesivos que são entregues em transportes comuns.

A situação, embora sombria, está melhorando gradualmente, uma mudança que começou quando nove mulheres foram drogadas e estranguladas em hotéis de Port Harcourt, em uma série de rituais macabros homicidas.

"Nunca vimos nada parecido. A cidade inteira se levantou. Dissemos: basta", diz Ibim Semenitari, uma conhecida ativista local que dirige as marchas de protesto às quais centenas de feministas se uniram.

Um comissário da polícia em Port Harcourt pediu inicialmente que as mulheres não saíssem à noite e depois disse que as vítimas eram prostitutas. Seu destino poderia ter sido evitado com a "reeducação", sugeriu.

- Masculinidade tóxica -

Graças à crescente pressão nas ruas, a polícia prendeu o suposto assassino, Gracious David-West, membro de uma seita de 43 anos. O julgamento começou em 9 de dezembro.

"A prisão dele foi um grande impulso para nós", conta Doris Onyeneke, ativista e chefe de um centro de proteção e treinamento para mulheres chamado Mater Dei.

"As mulheres são vulneráveis na Nigéria, e mais ainda na região do Delta do Níger", o epicentro da produção de petróleo do país, explica ela.

As seitas se baseiam em uma noção distorcida de masculinidade, afirma. "Os membros precisam ser agressivos, fortes, matar e ganhar muito dinheiro".

Seu centro, onde a chamam de "Lady Doris", recebe muitas jovens, incluindo meninas menores de idade, que foram estupradas.

Uma delas é Theresa, de 21 anos, que aprendeu a costurar e agora está terminando um vestido magnífico.

Com um olhar confiante e coluna ereta, ela descreve a dor de muitas mulheres na Nigéria:

"Não temos os mesmos direitos", lamenta. "As mulheres são os barcos mais fracos. Para eles, valemos apenas para a cozinha e para a cama".

"Mas se nos empoderam, somos menos vulneráveis. Eu costumava ser muito tímida, mas agora sou corajosa o suficiente para falar em público", destaca.

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