A polêmica da dupla função e o futuro dos cobradores

O LeiaJá ouviu especialistas sobre o tema. Eles defendem que cobradores sejam capacitados para outras funções. Sindicato dos Rodoviários diz que luta não é fácil, mas que tem apoio da população

por Vitória Silva seg, 26/10/2020 - 21:07
Júlio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo Projeto que proíbe a dupla função voltará ao Plenário da Câmara do Recife nesta terça-feira (27) Júlio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo

Nos últimos meses, o Sindicato dos Rodoviários do Recife e Região Metropolitana, organizou protestos no Recife como forma de pressionar os vereadores a aprovarem o Projeto de Lei 05/2019, que prevê a proibição da dupla função na rotina de trabalho dos motoristas. Os representantes da categoria calculam que mais de três mil profissionais foram demitidos desde o início da pandemia. Com isso, mais motoristas passaram a acumular a função de cobrador.

Em 2016, a linha TI Abreu e Lima/TI Macaxeira passou a circular sem o cobrador, sob o argumento de diminuir a circulação de dinheiro nos veículos e, assim, reduzir os assaltos. A retirada desses profissionais continuou em 2017, até o governador Paulo Câmara (PSB) determinar que fossem suspensas. Em 2019, porém o processo retomou e as mudanças se deram também sob a justificativa da baixa demanda de usuários pagantes em dinheiro.

Diante da crise provocada pela pandemia do novo coronavírus, o Governo de Pernambuco autorizou a retirada dos cobradores de ônibus, havendo o crescimento de motoristas também passando troco. Em setembro, o Grande Recife Consórcio de Transporte registrava que 67% das linhas do sistema estavam operando sem cobrador. O tema começou a ganhar mais destaque diante dos adiamentos do projeto de lei, o que já ocorreu cinco vezes em menos de dois meses. Na próxima terça-feira (27), mais uma vez ele vai para o Plenário da Câmara de Vereadores.

Um projeto semelhante circula na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). De autoria das codeputadas da Juntas (Psol), o Projeto de Lei 471/2019, também prevê o impedimento da acumulação de tarefas e da demissão dos cobradores. A psolista Jô Cavalcanti fez um apelo, durante a Reunião Plenária por videoconferência da última quinta-feira (22), para que o governador Paulo Câmara apoiasse a proibição.

As interdições de via promovidas pelo Sindicato dos Rodoviários ocorriam sempre no dia da votação do PL. O último protesto aconteceu em 13 de outubro. No dia seguinte, 14 de outubro, a Justiça decidiu que a categoria estava proibida de fazer novas manifestações, atendendo parcialmente a pedido do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Pernambuco (Urbana-PE). Para a próxima votação, a diretoria do sindicato pretende se reunir em frente à Câmara dos Vereadores durante a sessão plenária. 

Os adiamentos na votação do PL 05/2019

Tramitando há um ano na Câmara dos Vereadores do Recife, o Projeto de Lei 05 de 2019 foi adiado pela última vez em 19 de outubro deste ano. Ele retorna à votação nesta terça-feira (27) devido à última emenda de plenário solicitada pelo vereador Davi Muniz (PSB). 

Acompanhe o cronograma de votações e adiamentos do PL nos últimos meses:

8 de setembro de 2020: Recebeu emenda de plenário de Rinaldo Junior (PSB)

21 de setembro de 2020: Foi retirado da ordem do dia pelo presidente da Câmara, antes da sessão de votação, a pedido dos vereadores;

28 de setembro de 2020: Recebeu emenda de plenário de Rodrigo Coutinho (SDD);

13 de outubro de 2020: Falta de quórum (não havia vereadores suficientes para votar);

19 de outubro de 2020: Recebeu emenda de plenário do vereador Davi Muniz (PSB).

O autor do projeto, Ivan Moraes (Psol), diz considerar que os adiamentos são propositais e arquitetados para derrubar o PL e favorecer os empresários do setor. “Se o objetivo fosse melhorar a Lei ou consertar algo, a discussão deveria ter sido feita antes. Isso está sendo usado para evitar a aprovação do projeto”, disse Moraes. “No período de pandemia, as demissões triplicaram e (as empresas) radicalizaram o processo. Elas se aproveitaram da situação da frota para acelerar a demissão de cobradores. Quem anda de ônibus sabe”, completou.

O Grande Recife Consórcio de Transporte informou ao LeiaJá que “a dupla função do motorista está prevista em uma cláusula da convenção coletiva dos rodoviários, que permite que ele passe a acumular a função de cobrador nas linhas que já operam sem o profissional. Qualquer alteração sobre o tema deve ser discutida entre os sindicatos patronal e o da categoria e, não havendo consenso entre as partes, poderá ser julgada pela Justiça do Trabalho”.

Segundo Aldo Lima, presidente do Sindicato dos Rodoviários, a diretoria não pretende renovar a cláusula da dupla função. "Nós não queremos renovar a cláusula da dupla função e, além disso, as cláusulas que falam da jornada de trabalho, que o motorista pode passar até quatro horas e a empresa não pagar a intrajornada de trabalho, que a gente chama de intraturno. Isso está na convenção e não vamos renovar”, explicou. Lima diz que combater a dupla função “não é uma luta fácil”. “Mas a sociedade tem nos apoiado”, ele completou. 

A perspectiva de especialistas sobre esta nova disputa no Recife

O LeiaJá conversou com dois engenheiros, especialistas em Urbanismo e Mobilidade Urbana, para comentarem a condição de dupla função no Recife, bem como o futuro das profissões envolvidas: o consultor em planejamento estratégico e gestão empresarial, Francisco Cunha, arquiteto e urbanista pela UFPE; e Fernando Jordão, membro da Academia Pernambucana de Trânsito.

Em uma cidade onde o serviço de transporte público é ainda tão defasado, a dupla função tem condições de funcionar sem trazer riscos e dificuldades à experiência dos motoristas?

Fernando Jordão: Eu não enxergo a dupla função. O motorista tem a função de guiar o veículo e, quando o veículo está parado, ele faz o controle de embarque de passageiros. Dupla função seria dirigir ao mesmo tempo em que se faz o controle. A dificuldade é de outra ordem. Eu entendo a defasagem do serviço, pois nossa cidade poderia ter um nível de tecnologia embarcada maior do que o que é hoje. Não sei porque ainda não temos. Sobre dificuldades e pouca instrução ou educação, creio que isso necessariamente inviabiliza o uso. Acredito que apenas pessoas mais velhas teriam dificuldades. Se o sistema de bilhetagem atual possui alguma sofisticação, o Poder Público poderia pensar em soluções mais amistosas de se utilizar o serviço.

Francisco Cunha: Eu penso que sim, desde que seja bem executado. É obrigatório que o serviço seja executado quando o veículo está parado. A dupla função já é realidade há bastante tempo em cidades desenvolvidas mundo afora, e pelo que me consta, em cidades brasileiras também, inclusive no Nordeste, como em Fortaleza, Natal e João Pessoa. No Recife também já existem linhas sem cobrador há mais ou menos cinco anos, e elas funcionam bem.

Muitos urbanistas já comentam que a automatização do serviço de transporte público é inevitável, e até chegar lá, a cidade passa pela experiência da dupla função. Se essa avaliação procede, qual seria o melhor caminho a ser seguido na cidade do Recife?

Fernando Jordão: Volto a dizer, não enxergo a dupla função, mas vejo a extinção da categoria de cobradores como algo negociável. É uma situação parecida com a do sistema portuário; no transporte, não é uma coisa nova querer permanecer com uma categoria funcional, ainda que ela não faça mais sentido do ponto de efetividade.

Francisco Cunha: Sim, procede, e o caminho que eu vejo como mais adequado é radicalizar o uso do meio eletrônico de pagamento. Com o oferecimento, inclusive, de opções de serviço de integração temporal, que já existe, mas pode ser ampliada; diferença de tarifas a depender do horário de circulação, aquela ideia do pico e do “fora pico”, sendo fora do horário de pico mais barato, isso pode ser implementado. Recarga por smartphone, que já funciona, mas deve ser ampliado. Até mesmo a criação de programas de fidelidade. Radicalizar transformando a digitalização em ampliação de ofertas de serviços, também de informação de horários e tempo de espera. 

Recife ainda não tem o suporte necessário para uma automatização completa na experiência do usuário de transporte público. Assim sendo, é necessário cortar a função de cobrador de imediato? O que poderia ser feito até que isso se torne realidade?

Fernando Jordão: Mesmo com baixa instrução, eu acho que já existe um domínio razoável da população no uso dessas tecnologias, mas não é esse o problema. Sobre as ações de redução de custo, outras poderiam ser feitas enquanto se organiza a absorção da dispensa do cobrador. Por exemplo, a extinção das gratuidades enquanto despesa do estado, que poderia ser solicitada diretamente dos órgãos superiores federais. Ainda assim, por redução de custo, a dispensa da categoria funcional é inevitável, pois com o tempo ela perde efetividade na prestação do serviço. Cabe ao Poder Público e aos envolvidos de maneira geral fazer um planejamento de mudança, para que não venha a acontecer problemas de trabalho e desemprego. O problema reside na falta de planejamento e nas prioridades de redução de custo, mas do ponto de vista operacional e tecnológico, procede.

Francisco Cunha: Tudo o que está acontecendo no Brasil e fora, leva a crer que a digitalização é um caminho sem volta. Isso já acontecia antes da pandemia, e deve se acentuar mais após. Esse suporte terá que vir de forma mais acelerada ainda, para se adequar a esta exigência mais intensa. Os esforços das empresas e do setor devem ser no sentido de capacitação dos cobradores, para assumirem outras funções nas empresas e no setor produtivo; isso deve ser feito dando suporte. A adequação à tendência tecnológica deve vir com cuidado em relação à mudança de função. 

Há uma PL em aberto, cuja reivindicação é o fim da dupla função, mas a sua votação vem sendo adiada há mais de cinco sessões. O resultado dessa falta de acordo é uma classe rodoviária frustrada e de futuro incerto, além dos impactos no serviço à população. Como esse processo é analisado?

Fernando Jordão: O PL poderia ser transformado em um entendimento de que, no período de alguns anos, essa categoria passaria a não existir, mas haveria uma programação de readaptação dos cobradores, para a categoria de motorista ou mesmo de fiscais de tráfego. Se houvesse um planejamento e uma maior participação do Poder Público e dos empresários, aí sim, creio que a PL teria mais sentido. Creio que tudo está fora de foco, é uma quebra de braço.

A dispensa da categoria é operacionalmente dispensável, mas dessa forma, vai gerar problemas de emprego e fechamento de vagas, então claro que a sociedade terá essa preocupação. Os políticos, como representantes da sociedade, poderiam sugerir outras formas de reduzir custos em vez de ir para a briga com a categoria. A categoria pode acabar? Pode sim. Mas também pode permanecer durante um período de adaptação e principalmente de dificuldade econômica, desde que tudo seja feito sob acordo mútuo. 

Francisco Cunha: As negociações são sempre, por natureza, tensas. Nos meus anos de consultoria, sempre que acompanho essas negociações, a tensão está presente. Por isso, é necessário muita capacidade de negociação de ambas as partes, nesse caso, das três partes: os empresários, os empregados e o poder legislativo. Ainda mais em época eleitoral e de dissídio coletivo. É preciso um esforço de pacificação dos ânimos para poder fazer com que a negociação seja conduzida a um ponto seguro. Há um aspecto complementar, do ponto de vista legal, que deve ser considerado. A lei municipal pode não ter validade para legislar sobre o sistema de transportes. Logo, é preciso avaliar os aspectos com cuidado e saber se esse é o terreno pelo qual se deve caminhar.

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