Inflação na RMR afasta carne do prato do consumidor

Cesta básica mais cara do país, os mercados populares voltaram a oferecer processados, carcaças de boi e pés de galinha, que esgotam dos balcões com maior facilidade

por Vitória Silva seg, 22/11/2021 - 16:10

Dona Lucia mora em Sucupira, periferia de Jaboatão dos Guararapes, e próximo ao mercado público de Cavaleiro, onde vai com frequência fazer as compras da semana. Com uma oferta bem diferente da encontrada nas regiões mais nobres da metrópole recifense, o mercado é uma opção para famílias com menor poder aquisitivo completar a feira do mês, ou mesmo para as que estão apenas focadas em economizar, desde que dispostas a enfrentar o “vuco-vuco” do espaço público, que comporta centenas de vendedores, oferecendo desde roupas íntimas e celulares, à “baba” de carneiro e cortes de todos os tipos de carne.

Desempregada, Lucia Maria de Lima, de 54 anos, era doméstica em uma só residência até o início da pandemia, com renda fixa em torno de R$ 800, R$ 300 a menos do que o valor previsto pelo salário mínimo reajustado em 2021, que é de R$ 1.100. Com a chegada do coronavírus no estado, a trabalhadora perdeu o emprego, que lhe rendia oito diárias de R$ 100 ao mês e era sua única fonte de renda, além do Bolsa Família de R$ 89. Ela diz que chegou a receber o auxílio emergencial desde as primeiras parcelas, de R$ 600, mas o benefício foi suspenso nas últimas análises. Com o fim do Bolsa Família, aguarda sua chamada para o novo programa de auxílio do Governo Federal, o Auxílio Brasil, mas ainda não foi informada sobre parcelas pendentes ou restantes. Isso significa que, para o mês de novembro, dona Lucia não terá nenhum dos suportes que costumava ter. Em casa, vive com uma sobrinha de 18 anos, estudante e também desempregada. O último recurso é o filho, Alan de Lima, de 31 anos, que também é desempregado e vive de bicos, mas ajuda quando pode.

Com essas preocupações, diz viver “no aperreio”. Hoje, compra tudo pela metade e espera faltar para comprar. O dinheiro que entra varia, depende do que Alan faz no mês: R$ 100, R$ 150. Lucia vai cortando entre cereais, verduras e legumes, e a carne, mas é a última que tem pesado mais no orçamento e forçado adaptações. “É difícil, as coisas estão muito caras. Eu compro ovo, salsichinha, quando dá, o fígado ou o peito de frango. Não dá para compensar. Eu diminuo uma coisa para juntar e comprar outra. Eu comprava cinco quilos de feijão, agora compro três, e com a diferença compro o gás, pago a água, a luz. Vou diminuindo minhas contas até onde der e regrando as coisas para chegar até o próximo mês”, relata ao LeiaJá, enquanto pesquisa o preço do pé de galinha.

Atualmente, ela não retorna ao trabalho por questões de saúde. Com medo de ter pego Covid ou de estar com algo mais grave, apesar do convite para voltar fazer diárias, prefere se certificar de que a saúde está em dia, antes de se comprometer a trabalhar na casa dos outros, mas afirma já ter completado o calendário de vacinas contra a Covid-19. Essa oportunidade de trabalho será a mesma e a única que Lucia teve em quase dois anos de pandemia e de desemprego. O relato da doméstica é facilmente confundido com o de muitos outros recifenses.

“Já cheguei, muitas vezes, a pensar que não teria dinheiro para nada. Já deixei de pagar água, de pagar luz, ficar ‘doida’ precisando pagar conta. Recebo desconto na energia pelo Bolsa Família, mas ainda pago R$ 70, R$ 80, por causa do aumento (bandeira vermelha). Fora o meu filho, agora, eu não tenho nenhum outro tipo de ajuda. Às vezes ele manda R$ 100 por mês, às vezes R$ 150. É a única renda certa que eu tenho”, finalizou.

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Inflação e desemprego desestabilizam orçamento da população

Assim como Lucia, quase 900 mil pernambucanos procuram emprego no estado. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), iniciativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em agosto deste ano, a taxa de desemprego em Pernambuco atingiu 21,6% no segundo trimestre de 2021, o pior resultado em nove anos e a maior taxa entre todos os estados brasileiros. Na média nacional, o desemprego marca 14,7%.

Influenciados pela pandemia, os números se traduzem em um total de 885 mil pessoas em busca de emprego, o que facilmente é percebido nas ruas das maiores cidades do estado, como o Recife, onde a concentração de renda também é a maior do Brasil. Na comparação com o mesmo trimestre de 2020, quando a pandemia da Covid-19 chegou ao país, o indicador cresceu 6,5 pontos percentuais.

Também parte desse número, a mãe Islaine Thais, de 21 anos, mora com seus dois filhos, Alan e Alana, de seis e cinco anos, respectivamente. Foi abordada enquanto pesquisava o preço das carnes, junto a amigas que conhece do próprio Mercado de Cavaleiro, também bairro onde se criou e mora até hoje. Para conseguir colocar comida na mesa, diz que pega bicos como babá de crianças, faxineira, cuidadora de idosos e até mesmo como atendente do mercado, quando surge alguma vaga. Segundo ela, está desempregada desde antes da pandemia, mas costumava ser mais fácil sobreviver. Islaine diz que “não é que a renda caiu pela metade, ela não existe” e que, por outro lado, os preços de tudo estão “pela metade do triplo”. Hoje, vive do suporte da mãe e do pouco que o trabalho informal e esporádico lhe rende, além dos benefícios que adquiriu por direito.

Auxílio Emergencial

Thais também costumava receber as parcelas do Auxílio Emergencial, criado na pandemia. Por ser mãe, começou recebendo as levas de R$ 1.200, mas recentemente o valor tinha se aproximado dos R$ 400. No último mês, o benefício foi suspenso. O Bolsa Família era de R$ 170, já que a jaboatonense é mãe de dois, mas este também foi suspenso. Só a resta ir para a ponta do lápis e escolher entre o que é menos importante na lista das despesas básicas e fundamentais ao lar.

“Estou ‘botando’ só um quilo de cada, né? Feijão está quase R$ 10, o óleo também. Eu não pago luz e nem água, mas pago aluguel. Junto o que ganho do Bolsa e minha mãe sempre me ajuda com alguma coisa. Às vezes meus filhos pedem alguma coisa, eu digo “quando eu tiver dinheiro, compro” e quando dá, coloco, porque criança sempre quer novidade. Estou marcando para ir no CRAS e ver como fica a minha situação”, relata.

Ela também relata que precisou fazer ajustes nas compras para dar conta de alimentar a família. “Quando compro, compro o que dá. Ou alimento, ou lanche, e eu prefiro o alimento porque enche o bucho. Às vezes compro galinha [que já é mais barata que a carne de boi], mas às vezes não dá, aí compro sasichinha, porque vem mais, e faço uma mistura: arroz, feijão e salsichinha. Tá precisando substituir tudo, porque está tudo um absurdo”, lamentou.

Inflação alta

Em outubro, a inflação da Região Metropolitana do Recife registrou o maior índice do ano: 0,82%. Este foi o quinto aumento seguido, consolidando tendência de alta nos preços de produtos e serviços. Em relação a setembro, o crescimento foi de 0,04 ponto porcentual (p.p), sendo a quinta menor variação mensal entre as 16 localidades pesquisadas. Os dados também são do IBGE. E como a inflação influencia no poder de compra da população, a cesta básica segue disparada, como uma das mais caras do país. No Grande Recife, a aquisição desses itens básicos tem impacto em 52,1% do salário mínimo do consumidor. Em setembro, a cesta chegou a custar R$ 566,40, passando para R$ 573,11 no mês de outubro.

No acumulado do ano, Recife registra a segunda maior inflação entre as capitais do país, com variação de 3,62%, ficando atrás apenas de Campo Grande (MS), que tem variação acumulada de 4,36%. Nos últimos 12 meses, o crescimento da inflação na RMR é ainda maior: 4,77%. Nas duas variações acumuladas, os indicadores superam a média brasileira, que marcou inflação de 2,22% no ano e 3,92% nos últimos 12 meses.

Também em outubro, ficou definido que o Procon Pernambuco terá ação conjunta para monitorar a inflação e abusos de preço em estabelecimentos do estado. O órgão acredita que a intervenção pode diminuir a impressão final ao consumidor, sobretudo dos mais pobres.

A ideia é uma fiscalização para mapear e penalizar estabelecimentos com preços abusivos, e aqueles com irregularidades no armazenamento e refrigeração de alimentos, que podem impactar na qualidade da segurança alimentar. A iniciativa deve ser realizada junto ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e à Polícia Civil.

“Vamos instalar imediatamente um procedimento administrativo de fiscalização pelo Procon, comunicado também ao Ministério Público, que vai participar conosco, e vamos chamar aqueles segmentos onde se observa evidente abuso (de preços); aqueles que estão praticando delitos, como vender produtos vencidos ou desligar as máquinas dentro das gôndolas do supermercado, das lojas de supermercado, vendendo produtos, muitas vezes, descongelados”, afirmou o secretário de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, Pedro Eurico ao LeiaJá.

A realidade de quem vende

Apesar da impressão no consumidor, também não está fácil segurar as pontas do lado de quem vende. O repasse aumenta junto com a inflação e, do lado de dentro do balcão, famílias que dependem do comércio lidam com movimentação instável, insatisfação do consumidor, alta concorrência e aumentos constantes no preço da ração animal e das carnes repassadas para venda.

No Mercado de Cavaleiro, o Box do Vanderson é um dos mais antigos e o que, até o momento, consegue manter o preço mais competitivo entre as poucas lojas destinadas à venda de carne dentro da estrutura. Sabrina Layza, de 18 anos, é atendente desde pequena no estabelecimento, que pertence aos seus pais. Apesar da pouca idade, já tem muita experiência dentro do mercado, e relata que jamais presenciou uma situação parecida anteriormente. Durante o seu expediente, diz que recebe e dispensa pedintes do começo da manhã até o fim da tarde, quando o negócio fecha. Os clientes passam desacreditados e com frustrações, o que faz a pesquisa de preço, muitas vezes, ser só uma olhadinha e o destino de voltar para casa com mãos vazias.

“Tudo aumentou. Antes, carcaça e pé acumulavam no fim do dia. Hoje, são dois dos primeiros itens a sair das prateleiras. O que mais aumentou foi o filé de peito, que a gente vendia a R$ 12 e agora está R$ 18. A galinha inteira também, que era R$ 7 e agora é R$ 11. O fígado era R$ 7 e está por R$ 10. Os preços variam, mas nunca baixam. São desses aí que você está vendo, para pior”, relata.

A atendente diz que repassar os reajustes para o consumidor é uma “faca de dois gumes”. O preço da compra aumenta e implica no aumento do repasse, mas nem sempre é possível reajustar de acordo com o necessário, porque uma casa decimal a mais e a clientela já não é a mesma.

“Como comerciante, a gente sente bastante. Aqui no mercado a gente tinha o preço mais em conta. A gente já vendeu galinha inteira a R$ 6. Até os clientes antigos estão sentindo bastante, porque está muito apertado. Às vezes eles chegam aqui e ficam contando as moedas para comprar, às vezes nem levam a galinha inteira, levam pé, a carcaça, que são mais em conta”, continua.

Prejuízos

E o que acontece com o produto que não sai do balcão? De acordo com Jaqueline e Luane Barbosa, de 48 e 25 anos, a carne estraga ou é revendida em cortes, mas a certeza do prejuízo quase sempre existe. Mãe e filha são atendentes no box Rocha Aves, loja do Mercado de Afogados, no Recife. O negócio é de família e única fonte de renda da casa que possui quatro moradores — mãe, filha, o pai e um outro filho. Segundo a atendente mais nova, a maior impressão tem sido a da energia elétrica que, com sua taxação em pico no país, é inimiga dos dias menos produtivos no comércio.

“As mercadorias estragam, porque sobra muita coisa. O clima não ajuda, aí a carne esquenta e depois não presta mais. A gente tá correndo pra congelar um monte de coisas, mas com cortes. Cortamos pra conseguir vender. Não tem condições de guardar esse volume em freezer, a energia tá muito cara”, diz Luane. Assim como Sabrina, do Mercado de Cavaleiro, a mais nova da família dos Barbosa nota que partes menos valorizadas, como o pé de galinha, têm saído bem mais da prateleira, apesar do preço mais alto — antes, costumavam sobrar.

“A parte que está saindo mais é o pé. Mesmo ele estando com um valor maior — era R$ 2,50 a R$ 3, agora está por R$ 6, mas acho que os pedidos estão saindo menos no geral. Aqui a gente ainda consegue ter uma flexibilidade porque o preço é abaixo do mercado. Imagina para quem recebe uma renda mínima? Para comprar uma galinha inteira por R$ 30. Um assalariado vai poder comprar isso quantas vezes na semana? A pandemia impactou muito o pessoal. Antes o pessoal comprava carne defumada, que está custando em torno de R$ 35, hoje quase ninguém compra. Compram salsichão, compram asinha”, continua a mulher.

Quando é possível, ela e seus familiares separam o que sobra e está em bom estado, e destinam à população em necessidade. Segundo a mãe, Jaqueline, a quantidade de pessoas pedindo ajuda é algo jamais visto no mercado, que há décadas presencia cenas do tipo. Nem sempre quem pede faz parte da população de rua; a classe média em Pernambuco tem feito parte, como nunca, das concessões nos hábitos alimentares.

“Muitas pessoas aparecem pedindo, principalmente mãe e filho, pela manhã. Ficam mais de dez pessoas no balcão, quando encosta alguém pra comprar. Sempre tem alguém abordando, pedindo dorso, asinha (de frango), para levar pra mesa, dizendo que não tem o que comer. Aparecem senhoras pedindo para os netos que estão com dificuldade. Assim que abrem os portões, às cinco horas da manhã, já tem gente pedindo nos estabelecimentos. Isso já é antigo, mas com a pandemia, a dificuldade aumentou. Vem gente cedinho pegar os papelões e os plásticos que a gente descarta, pra vender. Vejo que aparecem pessoas no geral, com dificuldade, mas também aparecem pessoas de rua. Quando a gente se aproxima e vê, essas pessoas têm uma casa, tem uma vida, mas vêm realmente porque estão passando por dificuldades”, finaliza.

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