A angústia de quem teve a vida marcada pelos deslizamentos

Sobreviventes relatam sobre a morte de familiares e suas perdas na área mais atingida pelas chuvas na Região Metropolitana do Recife (RMR)

qua, 08/06/2022 - 13:51

As chuvas torrenciais que caíram sobre o Jardim Monte Verde, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (RMR), mudou radicalmente a vida dos sobreviventes. Famílias foram despedaçadas pela avalanche de lama e o sentimento de vazio entristece o olhar dos que perderam sonhos alcançados ao longo da vida. O risco de novos deslizamentos não é contestado por quem já se acostumou com o perigo das barreiras, mas, para os moradores, é insuficiente diante da incerteza de reconstruir a vida distante do lar.  

Sem água na torneira, Edson Lima lava as panelas há poucos metros de uma encosta prestes a cair. O semblante cansado observa as rachaduras e revela os dias árduos que cavou para achar o irmão. No sábado (23), ele foi acordado pela notícia de que a casa de Jeferson havia sido soterrada. Ainda era por volta das 6h30, quando correu para pedir ajuda ao pai e ao irmão Anderson.



Edson comentou que já havia pedido para o irmão sair de casa. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

A chuva persistia e as barreiras encharcadas não ofereciam qualquer segurança para as buscas. Mesmo assim, a família estavas unida entre os destroços para encontrar Jeferson, quando um segundo deslizamento aconteceu. "A gente foi lá tentar socorrer e a barreira caiu em seguida, jogando Anderson contra a parede que levou para o outro lado de onde era a casa. A gente ficou procurando ele, pensando que ele estava enterrado também, mas ele mesmo conseguiu se escapar de baixo da lama e saiu por trás da outra casa com a perna cortada e a rótula do joelho toda rachada", relatou Edson. 

Quatro dias de buscas 

Certo de que Jeferson não estava mais vivo e que o outro irmão já estava a caminho do Hospital da Restauração, no Recife, ele voltou os esforços para salvar os vizinhos que ainda estavam em risco. Foram quatro dias de buscas entre os escombros e o barro até que Jeferson, de 38 anos, foi encontrado por equipes de resgate.

"Ele ainda tava em cima da cama. A cama dele veio parar na cozinha da outra casa, atravessando a parede do quarto e a parede da sala do vizinho", descreveu. Edson lembra do irmão com carinho e enfatiza que procurava proteger o irmão, tanto que pediu para que deixasse a casa antes do incidente. "O negócio dele era só trabalho e casa. Era um cara tranquilo que gostava de criar passarinho", relembrou.

Um pássaro sem ninho

Na mesma rua, Laércio Marcelino vê um alagado se formar em frente à sua casa pela lama acumulada. Sem ter sido atingido pelo deslizamento, ele abre a porta todas as manhãs e se encontra diariamente com o local da tragédia. O barulho das raízes das árvores se arrebentando em segundos e a onda de barro que percorreu cerca de 25 metros, carregando troncos e obrigando as pessoas a fugir de dentro de casa são lembranças ainda presentes.

"Foi uma coisa aterrorizante. Eu há 40 anos estou aqui e acredito que isso foi abuso de corte de pé de barreira. A gente vê claramente que é a natureza restaurando o seu lugar”, ponderou. Outra lembrança é a fuga às pressas com a esposa para a casa de amigos, onde foi recebido aos prantos pela vizinha. "Ela chorando, nervosa [disse]: 'vamos sair daqui'. Eu disse: 'tenha calma porque eu já disponibilizei a nossa casa como amortecedora", conta.





Láercio teme que um novo deslizamento destrua sua casa. Júlio Gomes/ LeiaJá Imagens

Laércio diz que conhecia pelo menos 15 vítimas e que hoje abriga um espírito de refugiado. Com a casa ameaçada por um novo deslizamento, aos poucos, ele retira os móveis e prepara a saída definitiva. "Eu tenho isso aqui como o que foi guardado pelo Senhor", comenta enquanto alisa as paredes com quem se despede. “Você sente que perdeu algo, mas não é algo como uma família que morreu, que é uma coisa natural de saber que todos vão perder. Você perdeu algo que não era para perder”, lamenta.

Ele resume a frustração e compara a incapacidade para reverter a condição com um pássaro vítima de desmatamento. "Eu estou me sentindo como um pássaro que está na floresta, que tem um ninho e voou para procurar comida, mas na volta, os homens tinham cortado a árvore. Já vínhamos voando na direção e quando chega perto não encontra mais o ninho e os filhotinhos”, sintetizou.

As perdas de Edson e Laércio não os direciona para longe da Rua Serra da Boa Esperança, onde constituíram família e os planos de reforma após o inverno. Os dois expõem o desejo de permanecer em Jardim Monte Verde, mas, caso os imóveis sejam condenados, reivindicam indenizações justas. “Todo mundo tá saindo contra a vontade. Eu mesmo não vou sair”, reluta Edson. 



Sobe o número de vítimas das chuvas

Até essa terça-feira (7), 129 mortes foram confirmadas em razão das chuvas que atingem Pernambuco há cerca de 17 dias. A última vítima foi um adolescente de 13 anos, soterrado na Zona Norte do Recife. O número de desalojados subiu para 119.523 pessoas e o de desabrigados passou para 9.134 pessoas. Apesar dos períodos ensolarados, a expectativa é que chova pelo menos até esta quinta-feira (9). A Codecipe atende 24h pelos telefones 3181-2490 e 199.

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