Míriam Leitão relata tortura sofrida durante a ditadura
Grávida do primeiro filho, presa por militares e trancada em uma sala escura com uma jiboia. Em relato concedido ao jornalista Luiz Cláudio Cunha e publicado nesta terça-feira, 19, no site do Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br), a jornalista Míriam Leitão, de 61 anos, contou sobre as torturas sofridas durante o período em que esteve presa no 38º Batalhão de Infantaria do Exército, no Espírito Santo, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973.
"Tenho noção clara que fiquei apenas no prefácio do livro de horrores que aconteceu no Brasil (durante a ditadura militar de 1964 a 1985). Relativamente ao que outros (presos políticos) passaram, vivi muito menos", disse Míriam ao jornal O Estado de S. Paulo. "Não acho que minha história seja importante, mas as Forças Armadas precisam reconhecer que erraram. A democracia precisa que haja esse reconhecimento", afirmou.
Trechos do depoimento formal, arquivado pela Justiça Militar, foram publicados no livro "Brasil: Nunca Mais", de 1995, que reúne relatos de presos políticos. A diferença é que, agora, Míriam decidiu contar com as próprias palavras as torturas sofridas na instituição militar.
À reportagem do Estado, ela disse que não foi movida por um "sentimento pessoal de raiva, mas pela noção de que as instituições democráticas precisam que as Forças Armadas reconheçam que pessoas morreram dentro das instituições militares".
Em 3 de dezembro de 1972, Míriam e o então marido, Marcelo Netto, iam à praia quando foram capturados. O grupo de homens os levou para o Forte de Piratininga, em Vila Velha, cidade vizinha a Vitória, capital do Espírito Santo. Ao chegar à unidade militar, Miriam e Marcelo foram separados. Os militares a levaram para uma sala escura onde hoje funciona o anfiteatro do forte. Marcelo permaneceu preso por 13 meses.
No anfiteatro, a jornalista, então com 19 anos, conta ter sido obrigada a tirar a roupa e ameaçada de estupro coletivo enquanto era interrogada. Um militar identificado por ela apenas como Dr. Pablo - que depois descobriram ser o coronel Paulo Malhães, morto em abril deste ano - chegou ao local com uma cobra jiboia, ironicamente chamada por ele de Miriam.
A jovem filiada ao PCdoB disse ter permanecido horas sozinha, nua, grávida de um mês (informação que disse ter passado aos torturadores), sem poder se mexer, em ambiente completamente escuro, com medo de que a cobra percebesse o movimento e a atacasse.
"Dr. Pablo voltou, depois, com os outros dois (militares), e me encheu de perguntas. As de sempre: o que eu fazia, quem conhecia. Me davam tapas, chutes, puxavam pelo cabelo, bateram com minha cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue molhou meu cabelo. Ninguém tratou de minha ferida, não me deram nenhum alimento naquele dia", contou Míriam a Cunha.
Depois de três meses, ela deixou o 38º Batalhão. Emagrecera 11 quilos. Estava "deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol". Precisava se recuperar rapidamente para proteger o bebê, que poderia ter sequelas. Vladimir nasceu saudável, em agosto.
No sétimo mês de gestação, Míriam prestou depoimento na 2ª Auditoria da Aeronáutica, no Sumário de Culpa, no jargão militar, "o único momento em que o réu fala". Diante dos juízes militares, ela relatou as torturas sofridas nos três meses de prisão, mesmo depois de ter recebido recomendações de amigos para não falar nada, pois poderia voltar a ser presa.
"Era arriscado denunciar. Tive que decidir sozinha e denunciei que fui torturada", relembrou.
Em 2011, a jornalista voltou ao anfiteatro do Forte e instintivamente se posicionou no mesmo local onde foi colocada pelos militares há 42 anos.
"Quando entrei tive a sensação que estava vendo uma tela dividida: metade era o que tinha vivido no passado; na outra metade, o que vivia naquele momento. Foi uma viagem interna". De férias, a jornalista escreve um novo livro "sobre o futuro do Brasil, enquanto nosso passado ainda está em aberto".G