Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior
Sistema cotista luta pela diversidade nas salas de aula. De 2014 a 2015 o número de alunos negros e pardos nas universidades públicas brasileiras teve um aumento de apenas 3,6%
André de Souza, aprovado em odontologia na UFPE através da política de cotas raciais. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Em 1997, apenas 1,8% dos jovens entre 18 e 24 anos que se declararam negros havia frequentado uma universidade, segundo o Censo da Educação Superior. De lá pra cá, muitas conquistas foram alcançadas no que diz respeito à inclusão de pessoas negras e pardas nas universidades brasileiras, mas a disparidade entre brancos e negros ainda é bem visível, de acordo com dados obtidos na 'V Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Estudantes das Universidades Federais'.
Em 2003, ano em que a pesquisa passou a coletar informações relacionadas à cor e raça, o número de pretos e pardos nas universidades era 20,2% menor que o percentual de brancos, conforme gráfico a seguir:
Só em 2000, 112 anos depois da libertação dos escravos do Brasil, o Estado do Rio de Janeiro, de forma pioneira, deu um passo em direção às políticas de cotas, reservando, pela Lei N° 3524/2000, 50% das vagas da rede pública estadual de ensino universitário para estudantes que tenham cursado, integralmente, os níveis fundamental e médio em instituições da rede pública - partindo do pressuposto de que mais de 70% dos alunos de escolas públicas no Brasil, segundo Mônica de Oliveira, ex-integrante da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), são negros ou pardos -.
Alice Leal, 22, estudante do sétimo período de comunicação visual na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ingressou na instituição por meio da política de cotas raciais. A aluna, autodeclarada parda, contou ao LeiaJá que já presenciou casos em que pessoas aprovadas pelo sistema cotista tiveram suas habilidades e conhecimentos questionados por alunos não cotistas.
“Na época da escola eu até cheguei a escrever redações contra as cotas raciais. Depois, quando adquiri maturidade, percebi que estava incluída naquele grupo”, revela. Sobre os investimentos na educação básica, necessários para permitir que jovens de baixa renda, em sua maioria, negros e pardos, tenham melhores oportunidades, “muita gente fala, mas a gente nunca vê acontecer”, desabafa a estudante.
Caso UnB
Em 2003, a Universidade de Brasília aprovou o 'Plano de Metas Para a Integração Social, Étnica e Racial', assinado pelos professores Rita Laura Segato e José Jorge de Carvalho, que estabelecia que 20% das vagas do vestibular deveriam ser destinados a estudantes negros. Desde a implementação da política, em 2004, até 2018, quase 3.500 estudantes negros ingressos pelas cotas raciais concluíram a graduação. Em 2017, o número de ingressantes que se autodeclararam negros chegou a 33,53%, de acordo com o levantamento do Decanato de Planejamento, Orçamento e Avaliação Institucional (DPO) da UnB.
“A sociedade brasileira foi formada sobre pilares de superioridade racial. Foram quase 400 anos de escravidão. Esse tipo de preconceito assinala que algumas raças ou etnias são superiores às outras, seja pela cor da pele, pensamentos, crenças, classe social, inteligência ou cultura”, disse, em 2018, em entrevista a site do governo federal, a advogada Mônica Matos, especialista em direitos humanos e secretária-adjunta da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF).
Em Pernambuco, de acordo com a 'V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) graduandos (as) das IFES', realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), que coleta dados sobre o perfil dos estudantes desde 2003, apenas 11,6% dos universitários pernambucanos se declararam negros - três vezes menos que alunos brancos, que representam 35,5% dos universitários no Estado.
A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) será a nova casa de André de Souza, 20 anos, que vai estudar odontologia. Oriundo de um bairro desfavorecido da Zona Norte do Recife, André conta que não sentia motivação por parte da escola que estudava, além das dificuldades que precisou enfrentar para conseguir continuar frequentando o cursinho pré-vestibular comunitário, que, segundo ele, foi de extrema importância em sua aprovação.
Um dos pontos defendidos pelos que se posicionam contra as políticas de cotas raciais é que não existe a possibilidade de identificar a raça ou etnia do candidato devido à grande mistura e miscigenação da população brasileira. Em 2019, a UFPE criou uma banca étnico-avaliadora denominada Comissão de Validação de Autodeclaração Racial, responsável por comprovar a declaração dos candidatos pretos e pardos selecionados no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e a situação financeira do grupo familiar desses alunos.
Também na UFPE, Marjory Williams, 21, aluno de farmácia, defende a política de cotas como forma de ingresso nas instituições de ensino superior. Marjory, que nasceu em Belém de São Francisco, no semiárido pernambucano, participa de grupos de militância pela comunidade negra, pobre e marginalizada na capital pernambucana. Ao LeiaJá, ele também contou sobre sua avó, a primeira mulher negra de sua cidade natal a concluir formação acadêmica além do ensino médio.
Uma instituição frequentada, historicamente, por brancos, em sua maioria, hoje, a Faculdade de Direito do Recife (FDR) vê uma maior diversidade em seus corredores. Gente preta, parda, branca, indígena e amarela. São estudantes que preenchem as salas de aula de uma das principais escolas da lei no país. Emanuely Soares, de 23 anos, aluna do sexto período de direito na FDR, conta que, nas turmas anteriores à política de cotas, é visível a preponderância branca nas salas de aula. “A gente chega aqui [na FDR] e vê alunos brancos procurando os nomes de seus pais e tios nas placas com as turmas de formandos que ficam espalhadas pela universidade. Esse é um lugar que as famílias deles já estão acostumadas a frequentar”, comenta.
Emanuely faz parte do primeiro grupo negro da história da FDR, denominado Grupo de Estudos Afrocentrados Baobá, que busca, sobretudo, estabelecer uma identificação entre os estudantes negros e os autores estudados durante a graduação.
Diferentes visões sobre as cotas raciais
Nesta mesma Faculdade de Direito, em fevereiro de 2017, foi aprovado o trabalho de tese de dourado “A inconstitucionalidade material do objeto racial da Lei de Cotas nº 12.711/2012: uma violação à ideologia da Constituição Federal do Brasil de 1988”, da advogada Gina Gouveia. A jurista se opõe às cotas raciais por acreditar que elas reforçam a discriminação e racismo sofridos pelas minorias.
Sobre as bancas avaliadoras, Gina falou ao LeiaJá que “os critérios são totalmente subjetivos". "Já aconteceu um caso de dois irmãos, filhos de pai negro e mãe branca, um ser aprovado e o outro não. Ambos são negros, mas um tem a pele mais clara", acrescenta a advogada.
Para Gina, “outras cotas, por exemplo, como a que contempla renda, avalia critérios mais objetivos". A advogada diz também que “os métodos de aplicação do processo seletivo exibem um 'Estado extremamente preconceituoso e discriminatório'".
De acordo com a ex-diretora da Seppir, Mônica de Oliveira, “o sistema de cotas precisa não só ser preservado como também ampliado, assim como as políticas de assistência para permanência na universidade”. Ainda segundo a especialista, “a falácia de que o sistema de cotas iria diminuir a qualidade de ensino das universidades brasileiras não passa disso”.
Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:
1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior
2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas
4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas
5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas
6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo
7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios
8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico
9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular