Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas
Medida adotada em diversas universidades do país gerou polêmica e uma série de debates sobre raça e cor
Comissão de verificação de cotas gera protestos entre os reprovados / Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens
A Lei nº 12.711/12, sancionada em agosto de 2012, garante 50% das vagas disponíveis nas instituições de ensino superior e institutos federais de educação de todo país a estudantes que cursaram todo o ensino médio na rede pública; oriundos de famílias com renda bruta inferior ou igual a 1,5 salário mínimo per capita, subdivididas entre candidatos autodeclarados negros, pardos ou indígenas. Conhecida como “Lei de Cotas”, a iniciativa foi criada com o intuito de ampliar as oportunidades de ensino no Brasil.
As universidades brasileiras seguiam recomendações do Estatuto de Igualdade Racial para confirmar a cor dos concorrentes por meio do documento de autodeclaração, apresentado pelos estudantes na faculdade de destino após o resultado do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Entretanto, depois de denúncias de supostas fraudes realizadas na distribuição das vagas, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a diversas universidades do país que o fenótipo, e não a ascendência, deve ser o critério utilizado para validação.
Em entrevista ao LeiaJá no mês de novembro de 2018, a estudante de direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Karoline Ramos, de 23 anos, que utilizou o sistema de cotas raciais para ingressar na instituição, apontou possíveis irregularidades na confirmação das vagas por meio do documento de autodeclaração e cobrou a instauração de comissões de verificação na UFPE.
“Por meio das cotas raciais, a gente leva uma autodeclaração no momento da pré-matrícula após aprovação no Sisu, e não existe nenhuma análise da veracidade ou não dessa documentação, o que abre margem para muitas fraudes. É importante que os movimentos negro e indígena que compõe a faculdade se organizem para demandar que surjam comissões de verificação para as cotas raciais, visando evitar as fraudes. Muitas vezes, alunos que não se enquadram no perfil de índios, negros e indígenas, acabam utilizando essas cotas mesmo sem ter o perfil adequado. Isso acontece justamente pela falta de verificação”, disse Karoline à época.
Instauração das comissões
No dia 16 de janeiro de 2019, a pró-reitoria para Assuntos Acadêmicos (Proacad) da UFPE, juntamente com a Comissão de Elaboração do Programa de Combate ao Racismo Institucional, publicou o Edital PROCAD Nº 01/2019, que dava início às inscrições para os “interessados em participar, na condição de voluntários, das Comissões de Validação da Autodeclaração Racial”.
O documento estabelecia que as comissões deveriam ser compostas por um professor; um técnico da UFPE “vinculado a grupo de pesquisa, coletivos ou outras instância congêneres dedicados às relações étnico-raciais”; um estudante da UFPE matriculado em 2018.2, “vinculado a Grupo de pesquisa, Coletivos ou outras instâncias congêneres dedicadas às relações étnicos-raciais ou que tenha cursado disciplina sobre relações étnicos raciais” e um membro da sociedade civil vinculado “a grupo de pesquisa, movimentos sociais negros, coletivos ou outras instâncias congêneres dedicados às relações étnicos-raciais”.
As inscrições foram realizadas de 16 a 24 de janeiro. As análises e julgamentos dos voluntários inscritos foram feitos nos dias 25 e 26 seguintes. Posteriormente, os selecionados participaram da Oficina de Formação para atuação nas Comissões de Validação da Autodeclaração Racial. Ao final da formação, foram conferidos certificados aos participantes. Os trabalhos nas comissões foram realizados nos dias 31 de janeiro; 1º, 4, 13, 14 e 15 de fevereiro. Ao todo, dos 2,4 mil candidatos aprovados nas cotas étnicos-raciais, 280 foram reprovados pelas comissões de cotas nos campi Recife, Vitória e Sertão.
Entramos em contato com a ex-professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e psicóloga aposentada, Luciene Lacerda, que é membro das comissões da heteroidentifição da UFRJ. Luciene compõe a banca avaliadora que julga os candidatos que utilizam a autodeclaração para concorrer às vagas destinadas a negros e pardos nos concursos públicos realizados pela Universidade. Por meio de ligação telefônica, Luciene Lacerda detalhou como é realizado o procedimento de avaliação dos candidatos. Confira:
Protestos
Protesto dos alunos reprovados na primeira avaliação de cotas, realizado em frente à Reitoria da UFPEm no Recife / Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo
Após a divulgação do resultado das comissões realizadas na UFPE, um grupo de candidatos se reuniu em frente à Reitoria da instituição de ensino, localizada na Zona Oeste do Recife, no dia 12 de fevereiro, cobrando um posicionamento da entidade. Ao todo, 188 alunos reprovados entraram com recurso na instituição de ensino.
A principal queixa dos candidatos presentes no local era a falta de variedade racial nas comissões julgadoras. Alguns estudantes afirmaram que a banca avaliadora era formada apenas por pessoas negras. Candidato reprovado na primeira avaliação, Guilherme Feitosa, de 19 anos, aprovado em primeiro lugar para o curso de física por meio da cotas raciais, que se declara pardo, afirma que o processo não é confiável e que as reprovações foram injustas.
“Posso dizer que a primeira comissão de verificação não foi confiável. Digo isso por conta de tantas reprovações injustas que ocorreram, inclusive a minha. Eu tenho traços de pessoa parda, a lei das cotas me cobre, tanto as pessoas negras quanto pardas. E tenho caraterísticas de pessoa parda, a cor da minha pele não é branca, pode não ser negra, mas com certeza é uma cor mais escura. Os traços faciais também, alguns traços indígenas, alguns traços negros, enfim. Por isso eu considero, sim, injusta a minha reprovação”, diz.
Feitosa relata que ao entrar em uma sala do campus para ser julgado pela comissão, os integrantes da banca avaliadora “não perguntaram nada, só pediram para assinar a autodeclaração enquanto era (eu) filmado com um celular próximo do rosto”.
De acordo com o pró-reitor de assuntos acadêmicos da UFPE, Paulo Góes, a reprovação dos estudantes depende da decisão de todos os membros da comissão. “Para o candidato ser rejeitado, é preciso que a decisão da banca avaliadora seja unânime”, crava.
Após diversos protestos e cobranças por parte dos candidatos, a UFPE decidiu realizar uma nova avaliação com os estudantes que entraram com recurso contra a faculdade. Em nota emitida no dia 12 de fevereiro, a instituição informou as datas, horários e o local das reavaliações. “Todos os candidatos que recorreram serão reavaliados nos dias 21 e 22 deste mês, apenas no Corpo Discente, no Campus Recife, das 8h às 12h e das 14h às 17h”, informou a UFPE por meio da assessoria de comunicação.
Tentamos entrar em contato com estudantes que foram aprovados no processo de reavaliação, entretanto, nenhum se dispôs em comentar como foram feitas as avaliações.
Colorismo na universidade
A instauração das comissões acendeu o debate sobre raça e cor no ambiente universitário. Alguns estudantes classificam as comissões como “tribunais de etnia”, enquanto outros declaram os julgamentos “racistas’. A coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Universidade de Brasília (UnB), Renisia Garcia, pondera que o requisito mais importante para o candidato ser aprovado na comissão é ser identificado pelos demais como pessoa negra.
“Nós temos fraudes nas cotas. Pessoas brancas de cabelos lisos e de olhos azuis burlam o processo conscientemente. Por isso, as bancas de verificação precisam ter pessoas qualificadas, sabendo que quem deve ocupar aquela vaga é uma pessoa negra, fenotipicamente assim reconhecida. Não se trata de autoclassificação, auto nomeação, é heteroidentificação, é a sociedade ver a pessoa como negra, e esse é o encaminhamento da banca”, afirma.
Ainda segundo Renisia, candidatos que não são negros e tentam utilizar as cotas raciais para ingressar na universidade podem ser classificados como racistas. “Ao tentar burlar as políticas afirmativas, as vagas reservadas às pessoas negras, sendo essas pessoas brancas, tentando entrar como negras, estão sendo altamente racistas e referendando a desigualdade social”, diz.
De acordo com a coordenadora do Neab da UnB, as comissões de verificação de cotas garantem o uso correto do dinheiro público destinado à universidade. “Não tenho a mínima dúvida que a instauração das comissões foi uma melhoria na política de cotas. As bancas de verificação são extremamente necessárias para que o dinheiro público seja destinado ao demandatário a quem ele está direcionado: pessoas negras”, conclui.
Luciene Lacerda, integrante da banca avaliadora da UFRJ, destaca que as comissões de verificação avaliam o fenótipo dos avaliados e, concomitante a isso, se suas características fenotípicas poderiam levá-los a serem vítimas de racismo. Confira:
Representante do Coletivo de Estudantes “Negrxs” da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Niterói, a estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Nalui Mahin, destaca que as comissões garantiram que a população negra ocupasse vagas em cursos na universidade. “No início das comissões, a gente observou que houve um percentual de mais ou menos 15% de pessoas que não eram consideradas aptas para ingressar na universidade por meio das cotas, ou seja, eram pessoas brancas. E esse percentual representa cerca de 200 vagas destinadas às pessoas negras. Sem as comissões, seriam cerca de 200 vagas de negros e indígenas, ocupadas por pessoas brancas”, pontua Nalui.
Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:
1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior
2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas
3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior
5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas
6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo
7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios
8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico
9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular