Alunos 60+ driblam os desafios para permanecer na escola

Escola no Recife conta com turma da EJA em processo de alfabetização

por Elaine Guimarães qui, 08/09/2022 - 18:35
Júlio Gomes/LeiaJáImagens Sala de aula com uma turma da EJA Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Por volta das 18h30, os primeiros alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) chegam na Escola Municipal São Cristóvão, localizada no bairro da Guabiraba, na Zona Norte do Recife. Antes de ocuparem as salas de aula, a primeira refeição é servida - melão, pão e café é o cardápio da vez. Entre os estudantes está Isaura Domingos Ferreira da Silva, de 60 anos.

À reportagem do LeiaJá, Isaura relata que nunca frequentou uma escola sob a condição de estudante, tampouco os irmãos. "Meu pai nunca me deixou estudar. Eram 12 filhos que ele tinha e nenhum estudou, porque ele não deixava, muito por causa do preconceito. Ele dizia que mulher não era para estudar, só era para fazer menino e cuidar de casa", disse.

Aos 17 anos, ela deixou a cidade de João Alfredo, agreste pernambucano, para morar no Recife com o marido. Com as demandas da casa e dos dois filhos, Isaura não tinha tempo para os estudos. No entanto, ela reforça que fez questão que as crianças recebessem a educação escolar. Toda a formação básica deles, segundo Isaura, foi em instituições públicas.

"Eles nunca estudaram em [escola] particular, sempre foi a pública mesmo e eles tiveram um ensino muito bom", ressalta. Como mãe, ela viu os dois filhos ingressarem no ensino superior. "Meu mais velho estudava direito na UFPE. Ele estava perto de se formar quando foi assassinado". Isaura relembra que durante a formação acadêmica do filho, ele trazia sempre livros de história e que o sonho dele era vê-la alfabetizada.

"Meu filho sempre trazia livro pare me incentivar e ele dizia que o sonho da vida dele era me ver lendo e escrevendo. Quando ele morreu, ele foi assassinado durante um assalto ao ônibus que trazia os estudantes. Um colega reagiu e, como meu filho era militar, sobrou para ele."

Após cinco anos do falecimento dele, Isaura conseguiu se matricular na escola perto de casa, local onde também tem um comércio. "Meu comércio deixou de ser pequeno e eu tive que ir na Receita Federal assinar para mudar de microempresária para empresária. Lá, eu consegui assinar o meu nome completo", ressalta, orgulhosa.

A agora empresária, que não costuma faltar as aulas, não pensa em parar os estudos ao finalizar o ciclo da EJA e já traça planos para os próximos anos. "Eu já disse ao meu esposo que eu só saio daqui quando disserem que não tenho mais nada para estudar. Aí eu vou para o Tomé [outra escola]. Não vou parar não", conta.

Ao ser questionada sobre a possiblidade de realizar um curso superior, Isaura comenta que “está precisando” por conta do negócio. “Quem sabe um dia. Quem sabe, porque estou precisando por causa da minha casa de ração. Eu sei que se o meu filho estivesse vivo, eu teria subido mais uns degraus.”

Isaura Domingos Ferreira da Silva, de 60 anos. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

As questões familiares também afastaram Rita de Cássia Moraes, de 68 anos, da escola. Diferente de Isaura, Rita chegou a iniciar os estudos, mas abandonou quando tinha por volta dos 30 anos. Na escola, ela aprendeu a reconhecer as palavras e afirma que consegue ler bem, no entanto, escrever ainda é uma dificuldade. 

"Antes de começar aqui [Escola Municipal São Cristóvão], eu já reconhecia as letras, as palavras, conseguia escrever meu nome, mas eu sei mais ler do que escrever", confessa. Após o período mais crítico da pandemia da Covid-19, Rita de Cássia, que está aposentada, voltou presencialmente à sala de aula.

Com o avançar da idade, alguns problemas de saúde e mobilidade, Rita pensa em não dar seguimento aos estudos. "Eu estou pensando em ficar [na escola] só esse ano porque minha condição. Não dá mais pra minha idade, mesmo para o ano que vem", explica. A aposentada falou para a reportagem que tentou uma instituição próximo de onde mora, mas não há oferta da EJA. 

Rita de Cássia Moraes, de 68 anos. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

No passos de Paulo Freire

À frente da turma está a pedagoga Carolina Vejarano, que há dois anos trabalha com a Educação de Jovens e Adultos. Com experiência com alfabetização de crianças e adolescentes, Carolina aponta que sua principal inspiração é Paulo Freire. "Se existe um muso de inspirador para isso, tem nome e sobrenome: Paulo Freire. Existe um muso inspirador e é ele. Assim, eu sempre gostei de alfabetizar e sempre foi minha praia."

Respeitando as particularidades dos alunos, a professora frisa que a chegada à EJA encontrou uma realidade diferente. "Vi adultos que não tiveram a oportunidade de estudar porque a vida não permitiu, porque os pais não deixaram. Então, eu tento  trazer situações que sejam da vida deles, do cotidiano deles."

O trabalho de Carolina vai muito além das questões conteudísticas e passa, por exemplo, pelo resgate da autoestima dos estudantes. "A gente não está lidando com uma turma normal, a gente está lidando com pessoas que vêm cansadas do trabalho, que vêm cansadas das obrigações de casa, que vêm com autoestima baixa porque a maioria delas não teve oportunidade. Elas estão aqui porque não tiveram oportunidade. Então, elas acreditam muito que não são capazes", expõe. 

 Carolina Vejarano. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

"Para eles perceberem que as dificuldades que eles têm nada mais são do que questões relacionadas a pouca escolaridade que não tiveram, eu sempre falo com eles assim: eu alfabetizei muita criança e as crianças têm uma coisa que vocês não têm que é a rapidez. Criança pega tudo muito rápido, mas, o que que vocês têm, em relação a criança, que é vantajoso pra vocês? Vocês têm repertório de mundo. Então, vocês têm todo um repertório de vida que ninguém tira. Vocês conseguem ver as coisas de uma forma que a criança não vê. Então, essa é a parte que vocês têm a favor."

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