Escola comunitária mantém viva memória de Mário Andrade

A iniciativa, mantida por meio de doações, era um desejo antigo de Joelma e do filho Mário Andrade, morto de forma arbitrária por um sargento reformado da PM-PE

por Elaine Guimarães ter, 22/08/2023 - 09:21
Júlio Gomes/LeiaJá Patrícia (à esquerda), Joelma (ao centro) e Marinalva (à direita) em frente ao Centro Comunitário Mário Andrade Júlio Gomes/LeiaJá

Algumas cadeiras escolares, organizadas em fileiras, uma lousa, mesas e uma estante totalmente preenchida por materiais escolares ocupam boa parte do Centro Comunitário Mário Andrade (CCMA), localizado há seis anos no Ibura de Baixo, na zona sul do Recife. O espaço não é grande, mas, por ora, é suficiente para atender 33 crianças da comunidade que estudam no contraturno, pela manhã ou tarde, na escola CCMA. Com menos de um mês de existência, a escola comunitária funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 11h e das 14h até às 16h, e recebe estudantes dos 4 anos até 14 anos de idade. À frente do projeto está Joelma Andrade, que mostra à reportagem, uma por uma, as fichas de inscrições dos alunos e das crianças que aguardam uma vaga na escola.

Com o aumento da procura, a necessidade de expansão é inevitável. Mas, ainda faltam recursos para uma reforma. Mesmo assim, a escola vai iniciar uma turma à noite, com adultos. “Essa turma à noite, até agora, tem sete inscrito. São as mães das crianças. Muitas não sabem ler, nem escrever. Diferente das turmas das crianças, as aulas da noite vão ser três vezes por semana”, explica à reportagem. Além da parte conteudista, a iniciativa oferece gratuitamente refeições saudáveis, conversas sobre temas como pedofilia, os perigos de soltar pipa, entre outros; e acolhimento. Aos sábados, há a oferta, também de forma gratuita, de curso de fotografia para adolescentes da comunidade.

Entrada do Centro Comunitário Mário Andrade. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

Parte dos alunos da Escola CCMA. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

Além de Joelma, a escola conta com as aulas da professora-voluntária Marinalva Miranda, a Tia Mari, como costuma ser chamada pelas crianças, e a enfermeira e voluntária Patrícia Nogueira. A instituição comunitária, mantida por meio de doações, era um desejo antigo de Joelma e do filho Mário Andrade, ou Marinho, como, por diversas vezes durante a entrevista, ela falou. Mário não viu o sonho do centro se realizar, tampouco a escola comunitária. “Meu filho sempre gostou de ajudar as pessoas. O sonho dele era ter um lugar para que as crianças e os adolescentes ficassem longe das coisas erradas”, conta Joelma ao LeiaJá. Por isso, falar sobre a escola CCMA, assim como do Centro, sem mencionar Mário soa contraditório. “Aqui é o coração de Mário”, frisa Joelma.

Joelma Andrade, idealizadora do centro; escola CCMA e mãe de Mário Andrade. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

No dia 25 de julho de 2016, Mário Andrade de Lima, com 14 anos na época, foi morto de forma arbitrária por um sargento reformado da Polícia Militar de Pernambuco. O adolescente e um amigo, de 13 anos, andavam de bicicleta quando, acidentalmente, bateram na moto do policial, que atirou nos adolescentes. O amigo de Mário foi atingido, mas sobreviveu após se fingir de morto. O ex-PM, Luiz Fernando Borges, foi considerado culpado pelo assassinato de Mário e condenado a uma pena de 30 anos.

As lembranças são latentes na memória de Joelma, que viu o filho ser vítima do extermínio da juventude preta e periférica. “Eu lutei muito para que o assassino de Mário fosse condenado. Foram anos para que, finalmente, ele fosse condenado. Eu lembro, como se fosse hoje, que no dia 10 de outubro de 2018 saiu a sentença após um longo período de luta. Lembro também que eu cheguei aqui no centro, que era a casa onde eu morava com Marinho e minhas duas filhas, disse que queria quebrar tudo para construir o espaço. Perguntaram se eu tinha certeza e minha resposta veio junto com algumas marretadas na parede”, relembra.

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Todos na comunidade conhecem a história de Joelma e Mário. “Do luto à luta” é uma frase uníssona e resume um pouco dos últimos seis anos do Centro Comunitário e, consequentemente, da idealizadora do espaço. Para manter a iniciativa, além das doações, a escola CCMA precisa de material humano. Sem ele, os poucos voluntários ficam sobrecarregados e as atividades se tornam limitadas. Através das redes sociais, Joelma sempre realiza chamamentos para novos voluntários e campanhas para arrecadar recursos para a manutenção do projeto.

O início da escola comunitária só foi possível porque Marinalva Miranda, após promover uma oficina de artesanato, afirmou que seria responsável pelas aulas. “É muito gratificante estar aqui. Quando eu dei a proposta de dar as aulas, disse a Joelma que assumiria e que isso não iria interferir em outras questões minhas. Não há nada que pague quando as crianças chegam aqui e dão aquele abraço”, ressalta a professora-voluntária da escola CCMA.

Patrícia Nogueira, que é enfermeira, salienta que a profissão abre possibilidades para a realização do trabalho voluntário na instituição. “Minha profissão, enquanto enfermeira, dá muito esse leque, dá muito esse espaço de você cuidar das pessoas, cuidar do ser humano. Então, eu sempre procurei fazer alguma ação (...) A Joelma, eu conheci através da história de vida dela. Infelizmente, teve que perder um filho de uma forma bem arbitrária, uma criança para, através dessa dor, transformar o luto em luta”.

Marinalva Miranda (à esquerda) e Patrícia Nogueira (camiseta roxa) são voluntárias na escola CCMA. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

Durante a conversa, Joelma Andrade comentou que Mário tinha também o sonho de ser empresário. “Ele dizia: mainha, eu vou ser empresário. Vou ser dono de uma fábrica de feijões”. No centro e na escola CCMA, a plantação de feijões de Mário segue germinando. Tio de um dos alunos, Sérgio Rafael Mendes Gomes destaca a importância do espaço.

Sérgio Rafael Mendes Gomes é tio de um dos alunos da escola comunitária. Foto: Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

“Desde o início do projeto, através das dela [Joelma], das redes sociais que a gente soube que haveria a escola. E foi de suma importância para gente, como para todos da comunidade, porque a gente tem noção que o Estado não consegue suprir todas as necessidades educacionais das crianças (...) eu percebo que meu sobrinho está mais disposto para estudar. Antes, ele não era de falar muito sobre o que fazia na escola, mas, aqui, quando ele chega em casa, sai falando como foi o dia no Centro”.

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