Salvamento, cartas, doações e um especial Dia das Crianças

Olindense Reginaldo Souza é conhecido por carregar uma cruz com a palavra 'paz'; nesta sexta-feira (12), ele promove evento para crianças de comunidade, o Alto da Saudade, e distribui brinquedos, exceto aqueles que remetem a armas

por Marília Parente sex, 12/10/2018 - 08:43

Reginaldo segurando sua "cruz". (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)

Oito de outubro de 1996. Um garoto desafia o perigo e salta das pedras da Praia dos Milagres, na Orla de Olinda - Região Metropolitana do Recife -, para o mar. Desacordado, após uma possível pancada na cabeça, ele engoliu muita água rápido. “Eu e mais dois caras carregamos o menino até a orla, mas teve gente que disse: ‘deixa ele aí, está morto’. Eu insisti, tome respiração boca a boca e ele arrotando no meu rosto. O danado viveu”, lembra o artesão Reginaldo Souza. O grupo conseguiu conduzir o garoto, que àquela altura já tinha sido identificado como “Mário”, ao hospital, mas nunca mais se reencontraria com ele.

“Eu quase não fui à praia naquele dia. Alguma coisa me carregou para lá. Um ano depois, para lembrar desse milagre, organizei o primeiro Dia das Crianças do Alto da Saudade”, conta Reginaldo. Fruto do acaso ou não, o evento chega à sua vigésima edição na tarde desta sexta-feira (12), com doação de brinquedos e atividades infantis, graças ao esforço de seu realizador.

O dia de Reginaldo começa cedo. Às quatro horas da manhã, ele já está na rua para “garimpar”, como gosta de falar, sua matéria prima. “Não gosto de chamar ‘catador’, porque o pessoal pensa logo que a gente é drogado. Prefiro dizer que sou garimpeiro, porque garimpeiro garimpa tudo. Muitas roupas e acessórios que uso achei no lixo, não tenho vergonha de dizer”, explica. Garrafas pet, cabos de vassoura e até resto de asfalto, nas mãos de Reginaldo, viram maracas, ganzás, balões e carrinhos. O trabalho com brinquedos artesanais surgiu como alternativa para complementar a renda familiar. “Antigamente, a luta para sobreviver era muito grande, se não fosse a maré aí embaixo para catar caranguejo, a gente não comia. Nunca tive emprego de carteira assinada, mas todo mundo tem uma criança dentro de si. Agora, vendo e exponho minha arte, a gente tem que transformar nossa dificuldade em criatividade”, coloca.

Reginaldo distribui cartas para os vizinhos e transeuntes pedindo doações para crianças carentes. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)

Depois da criação do Dia das Crianças da comunidade, Reginaldo passou a conciliar o “garimpo” com uma prosaica distribuição de cartas. Em envelopes- curiosamente, específicos para transporte aéreo-, as letras ainda desajeitadas de quem retomou a quarta série em 2018, depois de décadas fora da escola, resumem os destinatários: “para meus amigos e pessoas de bom coração”. Em seu interior, uma folha ofício A4, formaliza: “Faça uma criança feliz doando um brinquedo”. “Muita gente critica, não sabe como é difícil pedir, ando para caramba. Vou encontrando amigos e conhecidos e dando as cartinhas. Quando eles não me entregam os brinquedos, dão dinheiro para eu ir comprar”, completa.

Quem garante o sucesso nas arrecadações é o prestígio do artesão na comunidade. Reginaldo causa euforia por onde passa por carregar, seja no carnaval de Olinda ou em outras celebrações importantes para o calendário da cidade, uma cruz, que sustenta a palavra “paz”, confeccionada com tampas de garrafas pet.

“Eu fiz a ‘paz’ para um evento chamado ‘Reciclando em Folia’, que não existe mais. De primeiro, eu só andava com a paz com medo, porque o homem é um predador. Se você sai com uma coisa muito forte, intimida”, coloca. Segundo o artesão, o coração vermelho feito de garrafas representa o amor que Maria teve por Jesus, enquanto a pombinha confeccionada com simplicidade, remete ao Espírito Santo. “O povo fala muito de sua cruz, mas não tem coragem de carregar. Jesus é o príncipe da ‘paz’, tenho força para carregar a minha cruz, porque ele está dentro de mim. Saio para todo canto com a ‘paz’ porque ela precisa ir a todos os lugares”, explica.

Reginaldo em uma das festas que promoveu. (Acervo pessoal)

Além de brinquedos, o Dia das Crianças de Reginaldo conta com doações de confeitos, refrigerantes e quase tudo que agrada a garotada. “Exceto armas de brinquedo, tipo revólver e espada. Com isso, nosso objetivo é o de semear a paz entre as crianças”, defende. Aos 55 anos de idade, Reginaldo demonstra preocupação com o debate político do país sobre facilitar a concessão do porte de armas. “Não devemos desmanchar o que foi construído. A gente vê o que acontece em outros países. Crianças entrando nas escolas e matando colegas, adultos devastando tudo no trabalho”, opina.

Dificuldades

Com bom humor, o artesão vence o cotidiano adverso. Quando volta do “garimpo”, Reginaldo precisa confeccionar os brinquedos em seu apertado ateliê, não à toa jocosamente apelidado por ele de “Tomara que Não Chova”. Em uma das ladeiras do Alto da Saudade, o cômodo é a único acesso para sua casa, que não possui porta para a rua. “Antigamente eu tapava, mas hoje em dia não tenho medo”, comenta.

As sessões de trabalho são organizadas entre tarefas domésticas como cozinhar e dar banho na esposa, Ceci, convalescente do segundo AVC que sofreu. “Fiquei quase sem condições de fazer a festa das crianças, mas existe luz no fim do túnel. Hoje está ruim, mas quando você acredita, amanhã fica bom”, crava. Constantemente abordado pelos pequenos, sedentos por informações do evento, Reginaldo contou com a ajuda dos amigos. “Tivemos pessoas doando material. O projeto das crianças é um direcionamento que Deus colocou na minha vida para promover a paz. A paz é tudo”, conclui.

No ateliê "Tomara que não Chova". (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)

Resgate dos brinquedos artesanais?

Reginaldo não é o único a acreditar nos brinquedos artesanais como forma de promover o desenvolvimento infantil. A comerciante Line Chian, do Mercado de São José, Centro do Recife, observa que alguns pais procuram artigos do gênero para presentear seus filhos. “Eles querem mostrar como se brincava na época deles e dar outras opções, que não sejam eletrônicas, aos filhos”, relata. A vendedora vizinha, Letícia Silva, discorda. “As crianças passam aqui e ficam muito interessadas, mas alguns pais não compram por medo de eles perderem o interesse se encontrarem um brinquedo mais moderno fora daqui”, acrescenta.

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