Manifestação resgata história de museu que foi prisão
Em Belém, protesto contra a ditadura militar iniciada em 1964 teve como palco a praça em frente à Casa das Onze Janelas, antiga 5ª Companhia de Guarda da 8ª Região
O professor Aluízio Lins Leal e a cientista social Eneida Cañedo Guimarães dos Santos se reencontraram com a história diante do prédio do museu Casa das Onze Janelas, em Belém. No último dia 31 de março, Aluizio e Eneida participaram de protesto contra o movimento militar que, há 55 anos, derrubou o presidente João Goulart. Com microfone na mão, Aluizio gritou palavras de ordem na porta do prédio onde esteve preso.
“Realmente, eu fui ‘hóspede’ daquela cela da primeira janela junto à porta de entrada, quando aqui ainda era a 5ª Companhia de Guarda da 8º Região Militar. E que era comandada por um major, Douglas Farias de Sousa”, falou Aluizio, apontando para a direção da janela de seu antigo cárcere.
Eneida Cañedo, que por anos, devido à perseguição feita pelos militares, assumiu o pseudônimo de Isabel, relatou a sua experiência como membro de movimento estudantil e a perseguição que os militares promoviam contra os estudantes e opositores do governo. “No movimento universitário continuei a minha atuação militante e estive tanto no Centro Acadêmico da minha escola como, também, no Diretório Central dos Estudantes da Universidade Católica de Goiás. A perseguição era toda hora. Naquele momento, quando (ocorreu) o assassinato do Edson Luís, em todas as capitais, as lideranças estudantis lideraram passeatas sem medo daquelas botas dos militares que viviam fazendo terror”, disse a mestra em Ciências Sociais.
O ato contra o Golpe de 1964, que deu início à ditadura militar, ocorreu, em Belém, na manhã e na tarde de 31 de março, um domingo. Em resposta à orientação do presidente da República, Jair Bolsonaro, de comemorar a data nos quartéis, diversos grupos civis organizaram-se para manifestar o repúdio à homenagem ao governo antidemocrático que durou 21 anos.
Organizado pelo coletivo Comunicadores Pela Democracia, o protesto em frente à Casa das Onze Janelas teve um objetivo em particular: lembrar o local onde ficaram encarcerados presos políticos.
Um dos representantes do coletivo, Max Costa, afirmou que o evento resgata a história brasileira. “A ideia desse ato é mostrar que dia 31 de março não é uma data de comemoração. É uma data de repúdio e de protesto para mostrar que a nossa democracia brasileira está ameaçada. Não podemos aceitar que um presidente como Jair Bolsonaro venha comemorar um período marcado por prisões, torturas e perseguições”, disse Max.
Estiveram representados na manifestação a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA), Conselho Regional de Psicologia, Conselho Regional de Serviço Social, Instituto Paulo Fonteles, Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Federais de Ensino Superior no Estado do Pará e Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará, além de estudantes.
“Acho que é importante que a gente se posicione em situações desse tipo. É importante ocupar as ruas no período que a gente anda vivendo, um período muito delicado em que a gente percebe que a democracia, que antes já não muito bem fortalecida e não estava muito bem estruturada, agora está mais fragilizada ainda”, afirmou Íris Viana, estudante de Museologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Os nomes de vítimas do regime foram citados no protesto, como o do estudante do curso de Engenharia Química César Moraes Leite. Na época com 19 anos, César foi morto durante uma aula da disciplina de Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB) sobre “violência e porte de arma”, no bloco F da Universidade Federal do Pará (UFPA), no dia 10 de março de 1980.
O professor Aluízio Leal relatou como se deu o processo de encarceramento do qual foi vítima e citou o nome de alguns dos seus companheiros de cela. “Tinha várias pessoas que hoje são nome na nossa história, como Bené (Benedito) Monteiro e Ruy Barata. Estive preso com eles, é claro que com uma diferença de idade enorme. Porque eu era moleque, estudante do primeiro ano de matemática ainda. A minha prisão se deveu a minha militância e na cela estavam reunidos todos aqueles que ousavam sonhar com a liberdade”, disse o ex-preso político, hoje doutor em História Econômica.
A manifestação também contou com um minuto de silêncio e reavivou clássicos da música popular brasileira. Teve igualmente a presença de poesia e testemunhos. A oração ecumênica foi conduzida pelo padre Paulinho, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e Antônia Brioso, representante da Paróquia Evangélica de Confissão Luterana em Belém.
O padre da Pastoral da Terra lembrou do assassinato de estudantes, indígenas, intelectuais e religiosos, como frei Tito de Alencar Lima. Após isso, propôs a transformação do então Museu de Arte Casa das Onze Janelas em memorial às vítimas da ditadura em território paraense. “Olhando para essa casa, por que não ousar transformá-la num memorial paraense da verdade? Colocando aqui os nomes dos paraenses perseguidos, torturados e eliminados pela ditadura militar. Como na Cidade de Guatemala, ao redor da Catedral da praça central”, propôs o religioso.
Antônia Brioso relembrou do surgimento da Paróquia Evangélica de Confissão Luterana em Belém na década de 1980. “A nossa igreja surge nos anos 80. Surge não como uma igreja, mas como movimento contra ditadura. Nós tivemos uma pastora, Marga Rothe, que se foi há alguns anos e que era um misto de pastora, ativista e militante. Nós temos um galpão lá atrás em que hoje é a casa pastoral, mas também é um memorial. Ali se faziam, se pintavam as faixas e camisas, porque era uma igreja, ninguém desconfiava disso. Depois a pastora Marga descobriu que já estavam de olho e havia sempre um carro lá na frente da igreja querendo saber, entender aquelas entradas e saídas de tantos jovens”, relatou, explicando de onde vem o compromisso da Igreja Luterana de Belém com a defesa da democracia brasileira.
Segundo a pesquisadora Mariana Lorenzi, do Fórum Permanente, revista digital vinculada à Universidade de São Paulo (USP), a Casa das Onze Janelas foi construída para servir de residência para o senhor do engenho de açúcar Domingos da Costa Bacelar, em meados do século XVII, e era originalmente chamado de Palacete das Onze Janelas, nome que vem do fato de possuir onze janelas em sua fachada.
Em 1768, o edifício foi vendido para o governador do Grão-Pará, Francisco Ataíde Teive, e após reformas feitas pelo arquiteto italiano Antônio José Landi se tornou um hospital militar chamado “Hospital Real”.
O hospital militar funcionou no local até 1870, quando o prédio começou a ser usado para outras atividades militares, abrigando o Corpo da Guarda e a Subsistência do Exército até o final do século XX.
Reportagem de Wesley Lima.