Nova Tatuoca: a insatisfação de quem foi expulso por Suape

Moradores foram retirados da ilha em que viviam para obras na área portuária. Eles relatam dificuldades financeiras e problemas sanitários no habitacional para onde foram realocados

por Jorge Cosme seg, 27/05/2019 - 07:15

Seu Biu é uma figura simbólica para os antigos moradores da Ilha de Tatuoca. Severino Caciano da Silva é conhecido como o último a permanecer na ilha localizada na área portuária de Suape, no Litoral Sul de Pernambuco. Foi ali que cresceu e construiu a vida e o bar com o qual conseguia sobreviver. Brigou muito para não sair. Saiu em 2016. Morreu no ano seguinte. O falecimento foi uma decorrência direta de sua retirada, segundo os antigos moradores da região insular e atuais residentes da Vila Nova Tatuoca.

A Vila Nova Tatuoca foi construída em 2014 no município do Cabo de Santo Agostinho para 75 famílias que moravam na Ilha de Tatuoca. As casas são de alvenaria, têm terraço, sala, dois quartos, cozinha, banheiro e área de serviço. De maneira geral, é um vilarejo de pessoas cheias de saudade de em que viviam. E insatisfeitas com o lugar onde moram.

Não foi só Seu Biu que faleceu por causa da mudança, conta Edson Silva, presidente da associação dos moradores de Nova Tatuoca. A mãe do vice-presidente do grupo tirou a própria vida após um quadro de depressão. Já a genitora de Edson não gosta de falar da ilha porque sempre chora.

O pescador Rodrigo da Silva era enteado de Seu Biu. Foi um dos que correu para a ilha ao saber que, após anos resistindo, o dono do bar finalmente estava sendo retirado e a casa derrubada. “Ele já saiu de lá doente e veio a falecer por causa de Suape pressionando ele a sair. No dia que tiraram ele, estava o pessoal de Suape armado. Tiraram ele à força. Pegaram ele, jogaram numa caminhonete. Eu estava lá”, se recorda Rodrigo. Após a transferência, Seu Biu era visto algumas vezes na costa do Cabo de Santo Agostinho, olhando o antigo lar a distância.

Quando as obras de dragagem começaram na ilha, as águas que eles consumiam ficaram impróprias. Esse foi o primeiro golpe para que as pessoas começassem a deixar a área. “A partir do momento que ele [Suape] tirou a gente de Tatuoca, já tirou a nossa origem, não é? Porque a pessoa que nasceu e se criou ali dentro, sabia todo lugar ali como a palma da nossa mão”, resume o pescador. Segundo Rodrigo, as pessoas se sentiam intimidadas e coagidas porque eram abordadas por seguranças armados.

Edson caminha pelas ruas da vila apontando os problemas com os quais convive. A estação de tratamento não funciona, muitas casas estão com água retornando pelo ralo, uma grande barreira atrás da casa ocasiona em lama cujas marcas se veem nos muros e quintais de algumas residências e as tampas de esgoto concentram água suja. Os parques para as crianças também estão tomados por lama e grama alta.

Inconformado, Edson não mede críticas. “Fizeram casa para animais morarem” e “Suape é um câncer incurável” são algumas das opiniões que ele emite em tom seguro. Guarda municipal, Edson diz que os moradores que cresceram vivendo da pesca e da venda de frutas lutam para sobreviver. 

“Hoje eles vivem de ‘oia’, fazem massa para construção, são ajudantes de pedreiros”, resume Edson. Vários não abriram mão do que sabiam fazer e continuam pescando. A segurança patrimonial impede que se aproximem da Ilha de Tatuoca para pescar, ainda assim, se arriscam em pescas noturnas. Com mais de 40 anos vividos na ilha, Edson conta nunca ter presenciado pessoas de lá envolvidas com criminalidade. Desde a mudança, três pessoas próximas foram presas por tráfico de drogas.

Benedito Elias da Silva, de 62 anos, lembra dos dias na ilha, de fartura de peixes, crustáceos e frutas. “Agora não tem mais essa fartura. Foi tudo destruído, dragado, aterrado, desmatado. Se a gente pegava naquele tempo 20 kg, hoje a gente pega cinco, três. Quando pega uns dez para pegar outros dez vai ter tempo”, resume. Além das dificuldades financeiras, a diminuição de peixes é outro problema na ponta da língua de qualquer residente de Nova Tatuoca, sempre culpando Suape pelo ocorrido. Benedito reconhece que a casa de alvenaria é melhor que a antiga de taipa e que é bom estar em um lugar mais movimentado, perto de serviços. Quando compara os dois momentos, entretanto, opta pela vida insular.

Muitos ali não pagam as contas, dizem que não têm condições. “Sempre tinha uma ‘mixariazinha’, hoje a gente tem dívida”, diz Benedito, seguido de um sorriso. “Tem gente que não consegue pagar R$ 100 em uma conta”, afirma o pescador Rodrigo, lembrando que as famílias ainda não receberam os títulos das casas. Além disso, os residentes demonstram frustração, pois o estaleiro que seria construído lá após a saída deles nunca existiu.

Suape

O LeiaJá conversou com Leonardo Cerquinho, presidente do Complexo Industrial Portuário de Suape há pouco mais de quatro meses. Cerquinho destaca que melhorias estão sendo planejadas, mas lamenta acusações das famílias. “Todos os acordos foram homologados na Justiça. É difícil falar em coação, isso se daria em frente a um juiz? Afirmar isso seria praticamente inferir que a Justiça faz parte dessa coação”, opina. “Eu não vivi essa época, da saída das famílias, de qualquer forma, Suape não coaduna com qualquer comportamento inadequado da guarda patrimonial. A gente pede que as pessoas registrem e nos informem. Vamos tomar medidas imediatas”.

Sobre as irregularidades de esgoto e lama, Cerquinho e a assessoria de Suape prometem soluções com datas. “A estação de tratamento é feita para tratar dejetos líquidos. Infelizmente, houve despejo de fralda, absorvente, materiais físicos pelo ralo e isso danificou a estação. A gente já está fazendo o termo de referência, a licitação, para reformar a estação de tratamento, inclusive dotar ela de níveis que não permitam a passagem desses artigos sólidos. Expectativa que de dois a três meses a gente tenha isso resolvido. Com isso, vamos entregar a estação à Compesa [Companhia Pernambucana de Saneamento]”, prometeu Cerquinho.

Suape também elaborou um edital para contratação de projeto executivo de contenção de encostas na vila. O processo licitatório deve durar 30 dias. A previsão é que as obras de intervenção na localidade comecem em setembro, no período do verão.

Cerquinho ainda defende que o estoque de peixe caiu no mundo inteiro. “E não há evidências de que o estoque caiu mais em Suape do que, por exemplo, em colônias pesqueiras de Jaboatão ou Recife. Ainda assim a gente entende que obras de dragagem e a movimentação de navios pode eventualmente, sim, atrapalhar o processo. Por conta disso, desde 2012 que nós pagamos uma bolsa de R$ 400 por mês mais cesta básica para 128 pescadores da colônia de Gaibú”, completa.

O presidente de Suape lembra que o terreno foi escolhido pelas próprias famílias e que também houve indenização pelas casas e plantios no total de R$ 2.868.466 - essa indenização considerada de valor baixo pelos moradores. O valor de compra do terreno foi de R$ 5,5 milhões. Cerquinho acrescenta: “É importante dizer que a área vai ser porto no futuro, é só questão de tempo. Quando a gente estava planejando tudo isso, Pernambuco estava crescendo 10% ao ano, a expectativa era de uma série de projetos numa velocidade muito rápida. Mas a área de Tatuoca pertence ao porto organizado de Suape e ela, necessariamente, um dia vai se tornar porto”.

Questionada sobre o título dos imóveis, Suape informou ter criado um instrumento jurídico para garantir a exploração do imóvel, por prazo indeterminado, denominado “concessão de direito real de uso”. O instrumento jurídico teria o objetivo de garantir o direito à moradia e evitar a especulação imobiliária no local. “Em tratativa com os representante dos moradores, a administração de Suape foi informada que eles não tinham interesse em assinar o referido documento. Suape continua à disposição dos moradores para celebrar o termo contratual”. Cerquinho não conhece o caso de Seu Biu.

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