Dráuzio Varella: sem SUS, a pandemia seria uma 'barbárie'

Em entrevista, o médico também fez duras críticas ao governo de Jair Bolsonaro

por César Lui sex, 16/04/2021 - 10:53
Reprodução/BBC Brasil Médico deu entrevista à BBC Brasil Reprodução/BBC Brasil

Dráuzio Varella deu entrevista à 'BBC News Brasil' e avaliou um depoimento em que disse, um ano antes, que a pandemia da Covid-19 poderia resultar em uma “tragédia nacional”. O médico falou que há desorganização no Ministério da Saúde, culpou a postura do presidente Jair Bolsonaro, além de exaltar a figura do Sistema Único de Saúde (SUS).

Varella disse que toda a discussão sobre o tratamento precoce da doença foi armada intencionalmente para desviar a atenção das pessoas, bem como declarou que o ritmo da vacinação no Brasil pode ser considerado “ridículo”. "Se tivéssemos começado a vacinar em dezembro ou janeiro, não estaríamos com mais de três mil mortes diárias como acontece atualmente. O Brasil tem menos de 3% da população mundial. No momento atual, de cada quatro pessoas que morrem de Covid-19 no mundo, uma é brasileira. É uma mortalidade absurda", declarou. 

Há um ano, em entrevista, Drauzio disse que achava que iria acontecer uma “tragédia nacional”. “Eu achei que ia ser uma tragédia porque você tem uma epidemia de um vírus que se transmite por meio de gotículas que a gente elimina quando fala, tosse e espirra. E esse vírus, quanto mais próxima uma pessoa fica da outra, mais fácil de pegar. Quando se tem uma epidemia dessas, o ideal então era fechar e ter isolamento, que é o que começava a ser feito na Itália e na China. Isso é clássico na saúde pública, ninguém inventou nada agora. Isso é feito assim há milênios: afastar as pessoas, trancar, deixar em casa para proteger. Mas eu sabia que fazer isso no Brasil seria muito difícil”, comentou.

O médico afirmou que por já ter rodado o Brasil, pôde observar, um ano antes, que não teria como frear a pandemia no País, uma vez que grande parcela da sociedade não pode ficar presa dentro de casa, pois precisa sustentar a família. "Eu já rodei muito pelas periferias das cidades brasileiras por causa dos programas de televisão, e nós temos um cinturão de pobreza e miséria em volta de cada metrópole e até ao redor cidades menores. São pessoas que não têm condição de ficarem isoladas. Elas não têm condições porque dependem do trabalho diário para poder comer e levar alimento à família. Como é que essas pessoas iam fazer isolamento? Eu já imaginava naquele momento que teríamos um problema sério e que o Brasil ia ser fortemente assolado pela epidemia”, declarou.

O profissional também relatou que conseguia prever o Ministério da Saúde perdendo tanto prestígio e relevância, além de um presidente que, segundo Varella, faz tudo ao contrário do que deveria ser feito para não disseminar a pandemia no Brasil. "Se você acordar amanhã e disser: o que vou fazer para disseminar a epidemia no Brasil. Você sairia sem máscara e faria aglomerações. É a única coisa que você poderia fazer para disseminar a epidemia. E foi o que ele (Jair Bolsonaro) fez, e é o que ele tem feito. Eu não previ que isso pudesse ter um impacto tão grande. E a epidemia foi ficando cada vez pior”, criticou.

Sobre a intensa troca de ministros da Saúde, Varella disse que é sempre uma troca política. “Quando você tem uma epidemia, você tem que ter um governo central que decida combater a epidemia. A decisão de combater a epidemia é política. É o presidente da República que tem que tomar essa decisão. E aí o que ele faz? Bom, ele é o presidente, ele não tem obrigação de ser formado na área da saúde. Ele então escolhe um ministro da Saúde que tenha. O ministro da Saúde não precisa ser um médico, um especialista naquela área. Mas precisa ser uma pessoa com formação para se cercar dos profissionais competentes que possam definir a orientação. E aí o ministro da Saúde impõe essas medidas e o presidente da República apoia. Nós não tivemos nada parecido com isso”, concluiu. 

Varella citou a relação de poder entre o ministro e o presidente. Para o médico, Bolsonaro conduziu o combate desde o início e não os que estavam encarregados disso. “Na verdade, quem conduziu o combate à pandemia foi o presidente da República. Um ex-ministro disse claramente: um manda, outro obedece. O que está acontecendo agora? A mesma coisa. O que você pode cobrar do atual ministro da Saúde, se ele não pode falar a favor do isolamento social e tem que manter essa enganação que é o tratamento precoce? Ele não pode dizer para parar com essa história de hidroxicloroquina, ivermectina... Ele simplesmente não pode fazer isso. Ele tem que dizer que os médicos possuem o direito de prescrever. Quer dizer, ele está numa situação em que foi escolhido para obedecer o presidente da República e esse é o problema todo”, disse.

Sobre a indicação de remédios como Cloroquina e Ivermectina, Varella disse que só aqui no Brasil esse argumento foi armado dessa forma, porque, segundo ele, até Donald Trump tentou fazer isso no Estados Unidos, mas lá os médicos podem ser punidos de forma legal pela justiça comum, caso prescrevam algo que não é indicado para o tratamento da enfermidade. “Essa discussão foi armada justamente para isso. Ela foi armada para desviar a atenção, não aconteceu por acaso. Nós temos um presidente que adotou medidas para as pessoas saírem na rua e pegar o vírus. E ele deu exemplo de medidas assim. O que ele podia dizer? 'Pode ir à rua, não seja maricas, forme aglomerações'. Mas se você ficar doente, pode ser que você não ache vaga na UTI". Ele não poderia dizer isso, não é mesmo? Então qual foi a estratégia? Se você ficar doente e pegar o vírus, faça o tratamento precoce com cloroquina ou ivermectina. Quando o presidente teve Covid-19, ele deu exemplo disso. Ele pegou um copo d'água e disse: 'Já tomei um comprimido de cloroquina, estou me sentindo melhor. Vou tomar o segundo agora'. O que ele estava querendo? Enganar as pessoas. Enganar. Em outras palavras, a mensagem era: se você pegar o vírus, é só tomar isso aí que você vai ficar bom e está acabado. Não precisa se preocupar”, declarou Varella.

O médico falou também sobre a existência do SUS e se não houvesse, a pandemia teria sido uma “barbárie”. “Se não tivéssemos o SUS, seria a barbárie. As pessoas estariam morrendo nas ruas. Para dizer a verdade, eu acho que o SUS me surpreendeu. Ele reagiu muito melhor do que as possibilidades que tinha. Com a criação de leitos de UTI, de leitos hospitalares, de programas de atendimento. Eu sinceramente acho que o SUS teve uma atuação impecável. Eu não consigo dizer que vi algum desleixo. Teve essas coisas de desvios de dinheiro, claro. Mas não são coisas que o SUS fez, mas bandidos que se aproximam do serviço público. Me parece que pela primeira vez, os brasileiros entenderam o que é o SUS. Porque até agora a impressão dos brasileiros era que o SUS era aquela bagunça, que você vai ao pronto-socorro, não é atendido, fica em maca no corredor. Agora nós vimos o que aconteceu. Agora, os brasileiros têm uma dimensão do que é o SUS. Eu acho que isso pode ser uma das boas consequências da epidemia, se é que a gente pode dizer assim. Ela chamou a atenção para a importância do Sistema Único de Saúde no Brasil”, finalizou.

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