Pandemia da Covid-19: medo, perdas e novos hábitos

"Estamos marcados pela pandemia e uma série de fatores que vamos levar muito tempo para digerir", diz a psicóloga Maria Eduarda Brandão Vaz

por Alice Albuquerque seg, 14/03/2022 - 17:43
Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens Após dois anos de pandemia em Pernambuco é possível perceber que há uma disparidade na convivência das pessoas Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens

O primeiro caso de Covid-19 registrado no Brasil foi no dia 26 de fevereiro de 2020, de um homem de São Paulo que havia viajado para a Itália. Não demorou muito e os dois primeiros casos foram registrados em Pernambuco, no dia 12 de março, de um casal que também veio da Itália, o segundo epicentro da Covid-19 do mundo na época.

De lá para cá já são dois anos de pandemia. O que deveriam ser apenas 15 dias de isolamento social, passaram a ser 40, que aumentou cada vez mais. Medidas de flexibilixação afrouzaram e se enrijeceram, e até então "ainda" existem pessoas que cumprem o isolamento total com medo de pegar o vírus, mesmo com as medidas já estando mais flexíveis. 

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Os profissionais de saúde e outros profissionais ligados à àrea não puderam tirar férias durante um grande período de pico de casos e mortes da Covid-19 em Pernambco, como ocorreu recentemente, quando o Governo do Estado anunciou suspensão das férias de médicos e outros profissionais de saúde publicada em Diário Oficial para valer a partir de 1º de fevereiro deste ano.

A enfermeira Thais Moura contou ao LeiaJá que trabalhou diretamente com pessoas com Covid-19 tanto na rede pública quanto na privada e que foi no início da pandemia, quando a situação estava mais crítica, mas a vacina trouxe alívio. “Hoje me sinto aliviada. Não completamente acreditando que vai acabar tão cedo, mas sabendo que hoje temos a esperança das vacinas que chegaram para fazer com que os sintomas fossem mais leves e houvesse uma diminuição significativa de mortes. Saber que as famílias já não perdem mais as pessoas que amam como perdiam antes me tranquiliza”. 

Thais revelou que por ter passado por tantas turbulências neste período por estar na linha de frente, consegue enxergar melhor o mundo. “Pude estar próxima trabalhando em setor crítico tanto na iniciativa privada quanto na pública. Era bem árduo o trabalho, a gente não sabia com o que estava lidando e, aos poucos, a ciência foi se descobrindo e se redescobrindo para que nós pudéssemos prosseguir na nossa atuação profissional. Esse período de turbulência me fez olhar mais para o outro, já que tivemos que fazer por quem nunca vimos, ter a empatia de cuidar para que a gente não perdesse as vidas e dar o máximo de si para que cada paciente pudesse sair e voltar para as suas casas”. 

“Por vários momentos choramos em equipe por perdas, cansaço, por estar longe da família. Foi um período totalmente conturbado emocionalmente", disse. Moura afirmou ter tido que passar cerca de três meses longe da família , e que foi um período de mais dor por conta disso. “Tive que me afastar da minha família, da minha filha, da minha mãe. Passei cerca de três meses sem vê-las, foi bem complicado ficar só por um período. Doía mais ainda o medo de não saber o que estava lidando e o medo de não saber o que podia transmitir para elas. Ficar só foi doloroso, mas o medo de se aproximar de quem amamos e acabar contaminando era maior ainda”, detalhou a enfermeira. 

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Para ela, todo o caos da pandemia pôde mostrar, de positivo, um maior cuidado das pessoas. “Tivemos muitos aprendizados. Podemos ver as pessoas se cuidando mais, cuidando mais da saúde, e estudos indicam que as pessoas passaram a procurar se exercitar mais, melhorar alimentação, saúde mental. Aprendemos a cuidar do nosso lar, do nosso corpo e da nossa mente. As pessoas aprenderam a ter mais higiene. As modificações que vieram, foram para ficar”, afirma.

Há quem ainda não se sinta segura



Há dois anos que a videojornalista Kety Marinho ainda não se sente segura para tirar a máscara fora de casa, como em um restaurante, por exemplo, mesmo com as três doses da vacina. "A pandemia mudou muito os meus hábitos. Nos seis primeiros meses não saí de casa para nada, tudo eu comprava e recebia em casa. Depois, criei um pouco de coragem para sair, comprei máscaras pff2, que são as que me sinto mais segura para usar até hoje e me aventurei a ir ao supermercado. Depois desses dois anos, eu não voltei a frequentar restaurantes porque não tiro a máscara fora de casa para nada, nem para beber água", disse.

Kety contou que a volta do trabalho presencial sem o esquema de escala voltou, o que triplica a sua atenção e cuidado com a Covid-19. "Pode parecer um exagero, mas com o retorno do presencial, eu preciso ficar lá numa faixa de seis a oito horas, e fico sem beber água, sem fazer nada. Se sentir sede, vou no meu carro, porque eu sei que no carro não tem problema porque só entra eu, e bebo. Não me sinto segura em tirar a máscara principalmente porque vejo muita gente sem usar. É uma doença respiratória, eu prefiro me cuidar para não ter nenhum problema". 

Começar a fazer terapia foi o que ajudou muito Kety nos tempos mais nebulosos e ajuda de um modo geral, para a vida. "Precisei fazer terapia, acho que quem não faz deveria fazer, porque centra muito você", declarou. "No começo foi muito complicado. Apesar de ser uma pessoa caseira, eu não senti muito por esse lado, mas o fato de não ir ao supermercado, feira livre, poder escolher as coisas que eu queria e ficar a mercê da escolha das pessoas foi complicado. Além do fato de que algumas pessoas vinham fazer entregas e ficavam tirando onda dizendo que eu ia acabar pegando mesmo dentro de casa, e todas as pessoas que entram na minha casa precisam usar máscara e higienizar os pés. Eu moro em casa, na frente tem um quintal e tudo eu recebo lá. Dentro da minha casa, ninguém", expôs.

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A videojornalista relatou ter tido um problema na pia de casa que a fez se mudar para um apartamento no período que estavam fazendo o conserto. "Para se ter ideia, tive um problema na pia que ela arriou e ficou no chão até recentemente. Aluguei um outro apartamento para poder fazer a reforma aqui de casa, que estava mofada por conta de infiltração na casa do vizinho. Fui para outro apartamento e deixei a casa sozinha com as pessoas que vieram pintar. Eles resolveram tudo, foi quando a pia foi colocada de volta no lugar", disse.

"Ainda estou preocupada porque muita gente ainda não está vacinada, e ainda não estamos livres do vírus. Se as pessoas continuarem sem se vacinar, vamos continuar tendo esse vírus por muito tempo por aí, e eu não me vejo sem usar máscara", pontuou. 

No entanto, com o passar do tempo e a flexibilização das medidas de convivência, Marinho disse ter se encontrado com um grupo de amigos em um bar, mas sem tirar a máscara. "Ficamos sem nos encontrar durante a pandemia, mas mês passado retornamos aos encontros, que são sempre em alguns bares. Eles comem, bebem, fazem tudo, mas eu sigo sem tirar a máscara. Eu vou participar, porque a pessoa tem que viver", salientou. 





Era da urgência

Levando em conta todo o abalo psicológico que a pandemia atrelada ao isolamento, mortes em grande quantidade, pobreza, miséria causou na população, a psicóloga Maria Eduarda Brandão Vaz, CRP 02/22764, informou que o que mais ficou evidente na população dentro do contexto pandêmico foi o aumento da ansiedade.

"Em um momento aonde tudo é tido como urgente, imediato, fomos convocados a estar dentro de casa por questão de sobrevivência. Essa é uma grande diferença: viver em home office e trabalhar no contexto de casa é/pode ser uma escolha, mas na pandemia não teve escolha, foi e está sendo por questão de sobrevivência. Foi toda uma adaptação que resultou no sentido da ansiedade, no receio de como dar conta desse contexto, se haveria ou não desligamento do emprego, dificuldade em estabelecer uma rotina (o que por sua vez influencia no sono, na alimentação, na autoestima), atender demandas emergentes e na sensação de não produzir o suficiente". 

"Estamos marcados pela pandemia e uma série de fatores que vamos levar muito tempo para digerir. Foram muitas perdas, envolvendo desde a vidas de pessoas chegando ao falecimento, até perda de empregos e da qualidade de vida.

"O que podemos afirmar, nesse momento, é que o cuidado com a saúde, de forma integral, ajuda muito a olhar para a vida com outro sentido. Voltar ou iniciar uma rotina, à medida do possível, respeitando as regras de convivência pois ainda estamos em contexto pandêmico, faz parte por exemplo de você cuidar do seu âmbito social. E também, lidar com a flexibilidade desse momento, fazendo o possível que cabe dentro de cada um, afinal todo mundo está vivendo esse novo de alguma forma", estimulou a psicóloga. 

Todo o "abre e fecha", medidas flexibilizadas e mais restritas causadas pela oscilação de casos durante a pandemia gerou uma certa desesperança em parte da população, como explicou Maria Eduarda. "Essa questão da expectativa (ou a quebra dela) fica muito registrada em alguns discursos. Acredito que faz parte de uma desesperança por tantas “idas e vindas”, dos lutos desse momento e das crises econômicas, políticas e emocionais que ainda vamos passar. Estamos marcados pela pandemia, de fato".

"Mas o que fica muito forte é que, mesmo diante desse discurso de desesperança, muitas pessoas procuram se adaptar ao que estão vivendo e de “adaptação em adaptação”, vamos ressignificando essas novas fases e criando um sentido diferente para a nossa vida. De alguma forma essa “desesperança” é renovada mas também guardada em algum lugar com a chegada de uma nova conquista como a vacina, a liberação de alguns lugares, escolas, universidades". 

De acordo com Brandão, a pandemia gerou uma reflexão sobre a modalidade de vida das pessoas. "Essa “era da urgência” ficou mais evidente e estamos entendendo mais do que desaprendemos a esperar. Tudo de forma muito imediata, em excesso, adoece. E nesse sentido vejo pessoas procurando mais ajuda profissional, seja na área de saúde mental ou não, se interessando mais em cuidar de si, buscando compreender seus limites e processos".



"Ainda romantizamos muito o fato de que “quando uma coisa ruim acontece, sempre temos que tirar algo de bom”, mas na verdade ninguém quer aprender sofrendo justamente porque dói. A realidade, então, é buscarmos mais nos perguntar o que está ao nosso alcance, quais as possibilidades temos e como podemos contribuir para uma evolução (interna e externa) de forma mais orgânica, sem tantas emergências e adoecimentos. Não é ficar buscando um lado positivo em tudo, mas perceber o que nos convoca a mudança e, com certeza, a pandemia nos convocou e continuará nos convocando por bastante tempo a olhar para elas". 

Ela incitou, ainda, que a procura por ajuda profissional e atenção à saúde são importantes. "Acredito que ninguém vai passar pela pandemia sem se sentir afetado em algum âmbito da sua vida, portanto, faço um convite de que continuemos atentos para nossa saúde, para nossos sentimentos e para a ajuda ao próximo. Não hesitem em procurar ajudar profissional, a buscarem informações em fontes confiáveis e a focar em medidas de proteção já que é a única coisa que podemos manter sob controle nesse momento", orientou. 

Recentemente, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que o avanço da vacinação contribui para acabar com o "caráter pandêmico da Covid-19" e sinalizou que o governo avalia alterar o status de pandemia para "endemia", tornando a Covid-19 como doenças típicas, que se manifestam com frequência em determinada região, mas que a população e os serviços de saúde já estão preparados, como acontece anualmente com o surto de gripe, por exemplo. 

 

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