Vítimas relembram torturas de Ustra durante a ditadura
Ex-coronel, chefe do DOI-Codi, é responsável por cerca de 50 mortes e centenas de violações
Pela primeira vez em quatro anos, o Ministério da Defesa do Brasil não comemora o aniversário do golpe militar de 1964. Geralmente, a celebração é adicionada à ordem do dia e lida em batalhões e quartéis ao redor do país. Neste dia 31 de março, que marca 59 anos desde o golpe, três vítimas do ex-coronel e torturador Carlos Brilhante Ustra revelaram os episódios de violência dos quais fizeram parte durante a ditadura. Os depoimentos foram publicados na coluna do jornalista Chico Alves, do UOL.
Ustra, que morreu em 2015, foi um coronel do Exército Brasileiro, ex-chefe do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo. O órgão tinha como atividade principal a repressão a grupos de oposição à ditadura militar, especialmente “agitadores” de esquerda, artistas e professores.
Em 2008, Ustra tornou-se o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante a ditadura militar. Ele chegou a ser homenageado, mais de uma vez, pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), quando era deputado federal e também após o ex-mandatário assumir o Planalto.
Um dos relatos publicados pela coluna menciona o dia em que duas crianças, de quatro e cinco anos, assistiram a mãe ser torturada após ter sido estuprada. A mulher é a jornalista Amelinha Teles, hoje com 78 anos. Ela foi sequestrada por agentes da ditadura e levada para o DOI-Codi de São Paulo, junto com o marido, Cézar, e com Carlos Nicolau Danielli. Nicolau foi um dos dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCB), do qual Amélia também fez parte.
O episódio se passou em dezembro de 1972, ano em que Carlos Nicolau morreu. As vítimas ficaram reféns do DOI de 28 de dezembro a 14 de fevereiro, por 48 dias.
Os depoimentos
Amelinha relatou que, primeiro, os agentes do DOI-Codi tiraram o seu marido e o colega de partido do carro no qual foram sequestrados. A ação aconteceu na Vila Clementina, bairro nobre da Zona Sul de São Paulo. Os homens foram agredidos com chutes e socos no estômago e no rosto. A sessão de tortura foi comandada por Ustra, que à época era major e utilizava os codinomes "Doutor Silva" e "Doutor Tibiriçá".
A jornalista diz que chegou a questionar Ustra diretamente sobre as agressões, mas levou um tapa na cara e foi levada à sala de tortura junto aos outros dois.
"Passei por diversos tipos de torturas. Tinha choque elétrico na vagina, no seio, na boca, no ouvido. Tinha palmatória, com uma madeira toda furada, de maneira que a pele vai soltando. Fui espancada por vários homens, além dele. Naquela primeira noite mesmo eu fui estuprada por um deles que era Lourival Gaeta, que tinha o codinome Mangabeira", compartilhou Amelinha.
Segundo a vítima, cerca de oito homens participavam das sessões, enquanto obedeciam a ordens de Ustra. "Um dia, Ustra foi buscar em casa meus dois filhos, Edson, de 4 anos, e Janaína, de 5 anos, e minha irmã, Criméia, grávida de oito meses. Ele espancou a minha irmã. E teve a desfaçatez de levar meus filhos para dentro de uma sala onde eu estava sendo torturada, nua, vomitada, evacuada", completou Teles.
Outras vítimas
O segundo relato publicado neste dia 31 pertence a Gilberto Natalini, médico e ex-vereador paulistano. Hoje ele tem 71 anos, mas à época, tinha apenas 20 anos e estava no início da faculdade de medicina. Foi preso pelo DOI também em 1972. Apesar de ser opositor, não era vinculado à luta armada e nem a organizações políticas.
"Alguns dias depois, já comecei a apanhar. Eles batiam, davam socos, tapas, choque no corpo, na orelha. Eu sem roupa. Em uma noite, o próprio Ustra me colocou descalço em cima de duas latas grandes. Jogou água no chão e ligou os fios elétricos, para dar choques. Além disso, me batia com um cipó", disse o ex-político.
Os episódios de Natalini são similares aos do ex-guerrilheiro Emilio Ivo Urich, hoje com 75 anos. Ele fez parte da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e tinha 23 anos quando foi preso, antes dos demais, em 20 de novembro de 1970.
"Na chegada já mandaram que eu tirasse a roupa, lá no pátio. Subi imediatamente para uma sala de tortura. Fui recebido pelo Ustra e passei a ser torturado. Me perguntavam onde estava Yoshitane Fujimori", disse.
Fujimori foi um guerrilheiro que coordenava ações de inteligência à época. "Nos primeiros 15 dias fui muito torturado pelo Ustra e pelas outras equipes apenas com o objetivo de dizer onde estava o Fujimori. Não queriam saber se eu tinha assaltado banco, se eu tinha sequestrado alguém. Eu ficava à disposição dos torturadores 24 horas. Tomei a decisão de não entregar Fujimori, porque se entregasse ele teria que entregar outros. Há 15 anos processei o Estado brasileiro por danos morais, por conta das torturas, e ganhei. Nesse processo está comprovado que eu era torturado até três vezes por dia", finalizou Ivo.