Estudante trans alça voos que transcendem o ‘cistema’

Aos 19 anos, Luana, que é mulher trans, comemora o respeito e o acesso ao espaço acadêmico

por Maya Santos dom, 08/03/2020 - 08:35
Rafael Bandeira/LeiaJáImagens Ser mulher trans em um espaço acadêmico é a 'maior conquista' para uma estudante Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Com olhar atento e empoderamento de seus direitos, Luana Maria da Luz Barbosa, 19, que é mulher trans, transcende o ‘cistema’ rumo a uma trajetória que usa a educação para alçar voos altos e ocupar espaços estratégicos na sociedade. Neste domingo (8), comemoramos o Dia Internacional da Mulher. A data tem a ver com a conquista de direitos das mulheres, sejam cis [pessoas que se identificam com o sexo biológico] ou trans [pessoas que têm identidade de gênero oposta a biológica]. 

Driblando as estatísticas

Em 2019, no Brasil, foi registrado um aumento da violência direta no cotidiano das pessoas transsexuais e travestis, chegando a 11 vítimas agredidas por dia no país. As informações são de acordo com o Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras, realizado pela Associação Nacional de Travesti e Transexuais.  

Esse dado reflete nas oportunidades e caminhos percorridos por pessoas transsexuais e travestis, sobretudo para mulheres pertencentes a esse grupo. A trajetória de Luana, que começa em sua casa, bem antes do ingresso no Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), Campus Recife, localizado no bairro da Cidade Universitária, traz como contraponto as dificuldades superadas através da educação, tendo como motores o amor da família e a persistência nos objetivos traçados.

Diferente de algumas histórias, Luana tem o apoio da família desde do início do processo de afirmação da identidade como mulher trans. A mãe da estudante, Maria José Vieira, nos conta que a compreensão e apoio da família são as principais fórmulas para lidar com a situação e fala com orgulho sobre as conquistas da filha.

“Aos 17 anos eu decidi ser mãe, era meu sonho, deixei de estudar e ir à faculdade para cuidar dos meus filhos. Não foi fácil entender que meu filho se via como uma mulher. Mas respeito a identificação e do mesmo jeito que lutei por ela antes eu continuo a lutar. Incentivando para que ela estude e isso me enche de felicidade por ela batalhar por uma vida melhor”, comemorou. Em casa, esse sentimento é coletivo, pois o pai de Luana compartilha do mesmo pensamento e se orgulha da filha que tem. 

Desafios no espaço acadêmico

Para as mulheres trans, a valorização da sua identidade de gênero é uma das garantias de direitos dentro da sociedade. Desde 2016, o executivo federal vem editando normas nesse sentido, a partir do decreto Nº 8.727. Em 2019, ficou assegurado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o regulamento sobre o uso do nome social de pessoas trans e travestis e o reconhecimento da identidade de gênero nos serviços e órgãos do judiciário brasileiro. A medida é válida para todo território do país, nas instâncias municipal, estadual ou nacional. 

Nos último três anos, durante o processo de retificação dos documentos, Luana enfrentou algumas dificuldades que marcam a jornada de superações e empoderamento dos direitos previsto por lei. Uma desses desafios se deu no ambiente acadêmico, local onde ela presenciou momentos de transfobia. A jovem relata que foram situações em que se sentiu desrespeitada, mas se manteu empoderada no ambiente acadêmico.

Após aprovação na instituição de ensino, a estudante teve contratempos em sua matrícula, devido às documentações que já tinham sido retificadas. O obstáculo foi superado através de medidas administrativas que ajudaram a estudante a acessar o espaço de ensino, com as devidas retificações do nome social em sua matrícula, em uma semana. “A não captação [do nome retificado em documento] me fez passar por transfobia no ato da matrícula, funcionários alegando que eu era uma pessoa falsa, pois o nome que passei foi o nome antigo. E eu levei os meus documentos todos atualizados”, desabafou. 

Em atitude aos acontecimentos, o IFPE, que desde 2015 promove ações dentro da unidade para conscientizar todo o campus sobre o respeito à diversidade, passou a reforçar as campanhas realizadas. Como exemplo, há o artigo 9 da resolução nº 39/2015, que tem como ação afirmativa o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero. Os conflitos são tratados através do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais.

Agora, no segundo período do curso técnico em saneamento ambiental, a estudante demonstra empolgação com os desafios e sente o respeito de todos na instituição, desde os alunos aos professores. “Sou a única na sala e umas das poucas no Campus. A relação com todos meus colegas é única e recebo total carinho e respeito de todos”, comemorou. 

A contribuição para o grupo LGBTQ+

Luana, que nasceu e foi criada no Ibura, bairro da Zona Sul do Recife, participa ativamente de debates e ações afirmativas que assegurem os direitos da população lésbica, gay, bissexual, transsexuais, travesti, queer e soro positivo (LGBTQ+), sobretudo para as mulheres trans que vivem em situação de marginalização por parte da sociedade civil. “Eu participo do coletivo Favela LGBTQ+, que é um coletivo da favela do Ibura, favela de onde eu vim e tenho orgulho”, enfantizou.

"A gente [coletivo] foca, principalmente, em trazer as temáticas da população trans e travestis. Que é a temática que está bem abaixo do ‘tapete’. A gente [coletivo] procura sempre trabalhar com arte, porque arte é onde a gente [pessoas trans e travestis] mais se encontra. Porque nosso corpo é uma arte viva”, destacou Luana.

Para além das contribuições ao grupo LGBTQ+ em movimento sociais, a estudante reserva tempo para outras atividades como integrante do Núcleo de Gênero e Sexualidade, no IFPE. Sem contar que, para ajudar outras pessoas a entenderem a importância de corpos trans ocuparem os espaços acadêmicos, a discente ainda criou um canal do YouTube, para falar sobre a formação técnica que está cursando e como essa formação pode influenciar o mundo atual. 

Pelo direito de um futuro melhor

O afastamento das mulheres trans e travestis de espaços acadêmicos e de oportunidades de emprego é motivado pelo preconceito direcionado ao grupo. A situação fica ainda mais complicada quando elas não têm apoio da família. E por muitas vezes o caminho “predestinado” é a prostituição.  

Como forma de incentivar outras mulheres, a estudante de saneamento ambiental decidiu reunir os conhecimentos adquiridos em sala de aula e compartilhar através da internet. Em seu canal de YouTube, Luana explica a importância do curso técnico e as áreas de atuação, usando esse meio de comunicação como uma ferramenta de aproximação com outras mulheres trans. Ela se intitula como uma porta dentro do campus, para que sua amigas possam acreditar em um futuro diferente, saindo da posição de marginalização, trilhando uma história de ascensão social e respeito à existência.

 "A maior conquista é eu estar aqui dentro [na instituição de ensino], porque a gente sabe que e a maioria das mulheres trans e travestis está na prostituição”, comenta.  

Não há dados oficiais para mensurar a quantidade de mulheres trans que estão, ou não, em espaços acadêmicos, mas o esvaziamento é um ponto abordado com frequência quando tratamos do assunto. Mesmo com essas dificuldade, Luana não desiste e sonha com sua graduação no curso de farmácia. “Eu pretendo fazer o curso superior, farmácia, e pretendo trabalhar nessa área de meio ambiente mesmo", reforçou.

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