2020: o ano em que o Nordeste ficou sem São João
Tradicionais festas juninas não acontecerão por conta da pandemia do coronavírus e o sofrimento de quadrilheiros e quadrilheiras tem sido inevitável
O ano de 2020 ficará marcado na história da humanidade como um dos mais difíceis desde que o mundo é mundo. A pandemia do coronavírus, que assolou o planeta, deixará um rastro de mortes e enlutados, sem falar nos novos hábitos e medos da população mundial. No Brasil, a crise de saúde veio acompanhada por uma grave crise política, com reflexos notáveis na economia e no desenvolvimento do país. Além disso, a necessidade de se fazer o isolamento social, como estratégia de contingência ao vírus, impactou o modo como estudamos, trabalhamos e até nos divertimos. Com a realização de shows, espetáculos e festas proibidos, uma das características mais marcantes dos brasileiros foi tolhida: a alegria.
Para os nordestinos, então, esse momento ficará marcado como o ano em que não houve São João, uma das festas mais esperadas e amadas por essas bandas do país. O ciclo junino foi o primeiro grande evento sociocultural brasileiro diretamente impactado pelo coronavírus e sua não realização vem sendo sentida desde o fim do Carnaval, quando ainda nem se sabia ao certo como estaríamos em meados de maio e junho. Para aqueles que fazem as festas juninas acontecerem de fato, como os quadrilheiros e quadrilheiras, ‘pular’ esse período do ano tem sido ainda mais sofrido e a consciência da importância dessa pausa divide espaço com a dor que ela causa em cada um deles.
Quadrilha Junina Lumiar, conhecida como a Broadway do São João. Foto: Cortesia.
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Anarriê
Quando chegou de fato à terras pernambucanas, o coronavírus encontrou quadrilhas juninas em plena preparação para o São João 2020. Os grupos costumam passar meses em uma preparação que começa com bastante antecedência, tão logo acabe o Carnaval. A Junina Lumiar, do bairro do Pina, por exemplo, abriu sua temporada de ensaios ainda no ano anterior, no dia oito de dezembro.
Com o avanço da crise de saúde, a vencedora do Concurso de Quadrilhas Juninas promovido pela Prefeitura do Recife de 2019- conhecida como a Broadway do São João, se viu obrigada a parar as atividades. “A Lumiar já vinha num processo bem adiantado do seu espetáculo 2020 e lamentavelmente, a gente teve que interromper por esse motivo; o mundo tá se deparando com essa situação desagradável. Nós já estávamos iniciando produção de figurino, já estávamos em estúdio de gravação, já tínhamos feito praticamente toda a base do repertório e tudo foi interrompido”, diz Fabio Andrade, marcador e presidente do grupo, há pouco mais de duas décadas.
Fabio é marcador e presidente da Junina Lumiar. Foto: Cortesia
Assim como a atual campeã, cerca de 90% dos demais grupos pernambucanos já tinha seus espetáculos em processo adiantado de desenvolvimento. A necessidade de interromper as atividades foi um baque para todo o movimento junino, como comenta Michelly Miguel, presidente da Federação de Quadrilhas Juninas e Similares de Pernambuco (Fequajupe) e da União Nordestina de Entidades Juninas (Unej). “Foi muito doloroso ter que parar todos os trabalhos e ainda mais sem saber quando voltaríamos. A primeira parada foi a suspensão dos ensaios, ali já começou a aflição”. Fabio complementa: “Quando iniciou o processo mais forte da pandemia e vieram os decretos, foi bem difícil e complicado. Tivemos que parar tudo, os trabalhos e os ensaios. Inicialmente, houve uma comoção muito grande, uma saudade já dos ensaios, porque é um dos períodos mais importantes pra quem dança quadrilha”.
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Caminho da roça
O calendário anual desses brincantes foi totalmente modificado pela pandemia. Além da paralisação da produção dos espetáculos e dos ensaios, as apresentações e eventos que começam a partir do mês de maio - como os pré-juninos, lançamentos de temas de cada quadrilha e festas que levantam recursos financeiros para a manutenção dos grupos -, foram todos cancelados. O fim do ‘sonho junino’ de 2020 repercutiu até na saúde emocional dos brincantes. “Hoje nós temos quadrilheiros com depressão, com crise de ansiedade, quadrilheiros tristes em casa. tá sendo bem complicado, bem pesado”, lamenta a presidente da Fequajupe.
Mas os impactos vão além da frustração pessoal e tristeza de cada brincante. A paralisação das quadrilhas juninas também causa um forte impacto econômico em suas comunidades. Cada grupo movimenta uma cadeia produtiva que envolve os mais diversos profissionais, como costureiras, maquiadores, coreógrafos, marceneiros, designers, músicos, cabeleireiros e soldadores, entre outros. Os próprios ensaios, que acabam sendo verdadeiros eventos, e as festas, geram renda, de maneira direta e indireta, com a comercialização de alimentos e bebidas, entre outros. “A gente tem um peso enorme no comércio do grande Recife em relação ao material que a quadrilha usa. Tem quadrilhas que usam 100 mil reais em material então, tudo isso tá parado”, diz Michelly.
Alavantú
Parar o sonho de um ano inteiro, de maneira tão abrupta e ainda por cima, diante do contexto de uma pandemia como esta, pode repercutir seriamente na saúde mental de uma pessoa. O psicólogo Claudio Marinho de Albuquerque fala sobre os problemas que esse momento podem gerar e como é possível atravessá-lo de forma mais saudável.
Preparar para o viva
Michelly Miguel é presidente da Fequajupe e da Unej. Foto: Cortesia.
Para minimizar o sofrimento, e a falta que o ciclo junino já está fazendo entre os quadrilheiros, as redes sociais serão fortes aliadas. “Com certeza (vai haver) muitas postagens, muitas lives, deve acontecer muita coisa pra tentar acalentar o coração, pra gente não perder a esperança”, diz o marcador da Lumiar, Fabio. Essas coisas já vêm sim, acontecendo, como a exibição de pré-juninos passados e lives nas redes da Fequajupe. Em junho, o canal no YouTube da federação terá uma programação especial, inclusive com um seminário online e um workshop para os amantes da cultura junina.
O ano de 2020 ficará marcado na memória de cada quadrilheiro e quadrilheira como um período duro e triste, mas certamente, as lembranças não serão mais fortes do que o amor que cada um deles tem por sua quadrilha e por essa tradição nordestina tão forte em nossa cultura. É o que se pode sentir pela fala de Fabio: “Nós somos muito apaixonados pelo que fazemos, é muito visceral, é de dentro pra fora. A vontade, o desejo que 2021 chegue rápido são conversas que acontecem diariamente. Isso tá acontecendo no movimento todo. Acredito que quando isso passar, que a gente tiver oportunidade de voltar, a coisa vai ser muito linda, vai ser muito forte. Vai ser uma festa linda, o quadrilheiro vai delirar, ele vai levar alegria pro mundo”.