Nos Estados Unidos, direito a armas ainda vive impasse
Os EUA, diante de quase 40 mil mortes violentas anuais, mantêm a divisão entre favoráveis à restrição, que acreditam que isso beneficiaria a segurança pública, e defensores do direito constitucional de ter arma
Mais arma do que gente. No país onde o número de armas (393,3 milhões, estima a organização Small Arms Survey) supera a população (325 milhões), nem o recorde de mortes violentas nem os massacres cada vez mais frequentes parecem ser capazes de impulsionar uma política mais restrita. Os Estados Unidos, diante de quase 40 mil mortes violentas anuais, mantêm a divisão entre favoráveis à restrição, que acreditam que isso beneficiaria a segurança pública, e defensores do direito constitucional de ter arma. A presidência, um congresso dividido e a Suprema Corte não indicam mudanças significativas para os próximos anos.
Lá, há o direito à posse de arma para ser mantida em casa, além de normas estaduais para portá-la livremente nas ruas e compras facilitadas até em supermercados. Parece ser o mundo ideal para boa parte dos ativistas pró-arma brasileiros, cujo discurso encontra eco no presidente Jair Bolsonaro.
Além do decreto assinado na semana passada, que facilitou a posse, ele promete ainda atuar junto ao Congresso para mudar o Estatuto do Desarmamento, o que poderia aproximar a realidade brasileira da americana. Com isso, surgem questões sobre efeitos na violência urbana, nas políticas de segurança e no direito à legítima defesa.
A experiência americana tem mostrado, segundo especialistas ouvidos pelo Estado, que se caminha para um consenso acadêmico sobre como as armas se relacionam com as taxas de criminalidade. "Pesquisas confiáveis desde os anos 1970 mostram que a prevalência da posse de arma não tem efeito mensurável nas taxas de roubos. Mas a prevalência da posse tem sim efeito direto na taxa de homicídios: aumento nas mortes", diz o professor Philip J. Cook, da Universidade de Duke, na Carolina do Norte.
O número de mortes violentas por arma de fogo nos EUA em 2017 chegou a 39.773, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano. Dois terços são suicídios, enquanto a outra parte é de homicídios dolosos. As taxas de mortes (12 por 100 mil habitantes), suicídios (6,9) e homicídios (4,6) são as maiores desde 1999, ano mais antigo da base de dados.
Apesar das estatísticas, o tema ganha destaque de fato após episódios em que atiradores fazem vítimas, como em escolas e universidades. Nos últimos anos, massacres têm motivado jovens a reforçarem o movimento antiarma. Pesquisa Gallup de 2018 mostrou que 67% dos americanos eram favoráveis a ter mais restrição - o maior porcentual desde 1990. Em 2010, a taxa estava no mais baixo nível: 44%.
"É indiscutível que se o acesso a armas for restringido, crimes cometidos com elas, como homicídios e roubos majorados, além de suicídio - olhe para Austrália ou Japão -, serão reduzidos", aponta o professor John J. Donohue III da Universidade de Stanford, na Califórnia. "Há perguntas a serem feitas: a população apoia as restrições? A taxa de crime está baixa (para realizar restrições)? A polícia é efetiva para fazer valer as medidas restritivas? Isso não é sempre alcançável." Para ele, o direito constitucional de ter arma deve ser relativizado à luz dos efeitos na segurança da sociedade.
Mas para a National Rifle Association, que representa o lobby pró-armas nos EUA, além dos republicanos do Congresso, com respaldo popular, a preservação desse direito não pode ser deixada de lado.
Especialistas lembram que, quando o debate é sobre políticas de segurança pública, mais vale aprimorar a eficácia dos sistemas de justiça criminal e carcerário - do que liberar arma. "Policiais honestos e bem treinados são o mais importante para combater a criminalidade. Quando cidadãos começam a portar mais armas, bandidos respondem portando ainda mais", diz Donohue. "Para enfrentar bandidos armados é importante que a polícia prenda, que os tribunais condenem e sentenciem à prisão", complementa Cook.
Prudência
O professor de Duke reconhece que ter arma em casa representa risco à própria família, que cresce com fatores como abuso de álcool, doenças mentais e antecedentes de violência doméstica. Mas não desconsidera o valor da arma se a situação exigir. "Se invasões a casas são comuns, pode ser prudente para a família que não se encaixa nesses fatores de risco ter uma arma. Nesses casos, deve ser tratada na dimensão do risco que apresenta e, no mínimo, ser mantida trancada."
Professor da Universidade Federal de Minas, Cláudio Beato lecionou em 2017 e 2018 na Universidade de Columbia, em Nova York. Ele pondera sobre comparações entre o Brasil - onde a taxa de homicídios é maior que 30 e a circulação estimada de armas, de 17,5 milhões - e os EUA. "Na comparação entre os desenvolvidos, os EUA são sim um país violento. Mas o contexto institucional, com alta capacidade de identificar criminosos, processá-los e colocá-los na cadeia, é muito diferente do brasileiro." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.