Cidade dos invisíveis: a vida e a dor de quem mora na rua
Projeto experimental da concluinte de Jornalismo Trayce Melo, da UNAMA - Universidade da Amazônia, vira série de reportagens sobre pessoas que não têm casa nem convivência familiar em Belém. Acompanhe.
Há pouco mais de um ano, Adriano Santos Loureiro, 35 anos, fugiu de casa porque recebeu ameaças de morte após uma briga com um vizinho policial. Foi uma decisão difícil, mas era a única forma de proteger sua vida. Desde então ele perdeu contato com a família. Impossibilitado de voltar, passou a viver na rua.
“Boto”, como Adriano é conhecido pelas redondezas do Ver-o-Peso, gosta muito de nadar. Foi daí que surgiu o apelido. Como não usa drogas, ele guarda o dinheiro que ganha reparando carros. “Boto” usa os trocados para comprar comida ou ajudar um de seus colegas com a refeição do dia. A rotina é bem simples: “Durmo, tomo café, almoço. Normal. Para mim eu acho normal. Às vezes reparo carros aqui”.
Em grandes centros urbanos, ou nas cidades pequenas, a situação de vida nas ruas é alarmante. Não se trata de um problema exclusivamente brasileiro. Ele está presente no mundo todo. Pessoas de diferentes vivências estão nessa condição pelas mais variadas razões. Há fatores, porém, que os unem: a falta de uma moradia fixa, de um lugar para dormir temporária ou permanentemente, e a ausência de vínculos familiares, interrompidos ou frágeis. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que, em 2015, o Brasil tinha 101 mil habitantes em situação de rua. Esses são os dados mais recentes. Com a crise e o aumento do desemprego, os índices podem ser bem maiores.
Adriano Santos Loureiro, o “Boto”, morador de rua de Belém, engrossa essa estatística. Nunca chegou a procurar um dos Centros POP da capital paraense - Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua. Diz que prefere ficar na rua. Não é muito de regras, e cada centro tem suas regras.
Ele conta que nunca sofreu agressão de agentes de segurança pública, só às vezes que os policiais mandam levantar e sair do local, geralmente na praça Waldemar Henrique, região central da cidade, onde se reúnem usuários de drogas. Certa vez, numa briga, saiu com o nariz quebrado. “Quando ele [outro morador de rua] veio me abordar, dei uma cotovelada nele e em seguida o policial me deu um soco”, relatou "Boto", rindo da situação.
Adriano é uma pessoa quieta, bem na dele. Não é muito de falar. Mas é gente boa e simpático. Percebi isso desde a primeira vez que conversei com ele na ação “Tem Palhaço na Rua”, organizada pela Trupe dos Palhaços Curativos. No dia da ação ele estava sentado isolado com sua marmita e um copo de suco, enquanto os outros interagiam e brincavam com a trupe dos palhaços.
Arrisquei conversar, com medo de ele não querer papo com ninguém, mas aos poucos ele foi desenrolando. Naquela noite marquei de voltar outro dia para fazer uma entrevista e ele topou a ideia. Falou que era para eu procurar pelo “Boto” na escadinha que fica ao lado da Estação das Docas, que ele estaria por lá.
Dito e certo, no dia da entrevista, com sol a pino, perguntei por “Boto” a uma vendedora ambulante em frente à Estação das Docas. Queria saber se ele realmente era famoso naquelas redondezas. “O ‘Boto’? Onde ele está? Deve estar nadando perto da escadinha”, respondeu a vendedora.
Foi quando olhei para a pracinha na beira da baía do Guajará e lá estava ele deitado em um banco. Ao redor havia outras pessoas sentadas no chão e em pé, conversando e rindo com dois policiais. Fiquei impressionada. Me aproximei de onde ele estava e perguntei se estava incomodando. Então ele se levantou, pegou sua mochila preta, colocou a camisa no ombro e fomos sentar em outro banco para fazer a entrevista.
Em 2018, “Boto” disse que presenciou a morte de mais de cinco conhecidos das ruas, por envolvimento com drogas. Quando questionei se tinha algum problema com drogas ou álcool, falou que bebia, mas nunca usou drogas nem fumou. Chegou a ter uma parceira. Durou seis meses o relacionamento. Mas ela bebia demais e isso desgastou a relação. Ele também perdeu o emprego um pouco depois, em uma estância, onde trabalhou durante dez meses. Depois disso, não conseguiu mais carteira assinada.
A primeira passagem pela rua foi no ano de 2015. Estava cansado, não aguentava a vida e toda a pressão em casa, contou. No início, ficava desconfiado, com vergonha de ser reconhecido e não sabia muito bem como agir. Disse que não se importa com afeto. Não foi criado pela mãe, relatou, nem teve o seu amor. Passava a maior parte do tempo na rua porque o pai também não ligava para ele, afirmou. Sem amor e afeto na infância, acabou se acostumando a não ter. Quando falei da possibilidade de sair das ruas, ele disse: “Cara, eu queria, mas não sei quando. Não sei, só Deus Sabe!”
Os invisíveis
É bastante difícil quantificar o número de pessoas nessa situação no Brasil. A maioria dos censos leva em conta o local de moradia das pessoas e as que estão em condição de rua não têm essa constância, o que atrapalha a realização de pesquisas. Para o planejamento urbano, eles são realmente invisíveis, embora não seja difícil encontrá-los entre as principais rotas comerciais e turísticas das grandes cidades.
Na cidade de Belém do Pará, os principais cartões-postais da cidade e o centro histórico são os mais habitados por essas pessoas. Os chamados “moradores de rua” estão em situação de vulnerabilidade e acabam se tornando “invisíveis” aos olhos da sociedade.
Só no mês de fevereiro de 2018, em Belém, foram noticiados dois homicídios com pessoas em situação de vulnerabilidade. Os crimes ocorreram num intervalo de tempo de 12 horas e em áreas de intenso comércio: praça do Relógio (ao lado da pedra do Ver-o-Peso) e Entroncamento. Outra questão preocupante é a saúde. Pela falta de higiene muitos deles têm problemas bucais, sequelas de acidentes, ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e tuberculose.
Na última ação do projeto “Tem palhaço nas ruas”, iniciativa de jovens voluntários que distribuem amor e afeto a quem vive na rua, no mês de novembro, encontrei novamente o “Boto” sentado em seu banco, quieto, mas com companhia dessa vez. Era uma mãe e seus três filhos. Uma moça jovem, bonita e muito envergonhada. As crianças adoraram a presença dos palhaços. O mais velho tinha 7 anos, a do meio, 5 anos e a bebê, 3 meses de vida. Confesso que fiquei incomodada com o que estava vendo, mas ela dormia em seu carrinho toda aconchegada. Como Belém está no período de chuvas, a mãe disse que às vezes ela e os filhos dormem em albergue, se conseguem um trocado, mas tem dias que são mais difíceis.
Uma das maiores dificuldades é comprar fraldas, já que são caras. Sobre o pai, a menina de 5 anos contou que ele trabalha muito. Ela disse que estão esperando ele voltar.
A prefeitura registrou na Fundação Papa João XXIII (Funpapa) mais de 2.400 pessoas atendidas entre os anos de 2016 e 2017, segundo o Relatório do Serviço de Vigilância Socioassistencial de Belém. No município, atualmente, existem dois espaços de acolhimento institucional para pessoas adultas em situação de rua: CAMAR I, para acolhimento de pessoas somente do sexo masculino; e CAMAR II, que atende mulheres e famílias. A porta de entrada do serviço é o encaminhamento institucional realizado pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua - Centro POP, Centro de Referências Especializado da Assistência Social - CREAS e, em alguns casos, dos serviços na área da Saúde e de Conselhos de Direitos.
“Boto”, na entrevista, queria contar sobre a visita à casa da irmã, no almoço do Círio, em outubro. Ele estava com roupas novas e um corte de cabelo diferente, animado e cheio de novidades. Passar ao lado da irmã essa data deve ter sido especial, já que ele não a via fazia tempo. Ele também agora era um bom amigo para a jovem que chegou com os três filhos recentemente naquele lugar. Mas à casa da mãe, destacou, ele não voltou mais.
Reportagem: Trayce Melo.
Edição de texto: Antonio Carlos Pimentel.
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