Sangue do meu sangue: o elo da hemofilia na Família Vidal

No Dia Mundial da Hemofilia, celebrado nesta quarta-feira (17), conheça a Família Vidal e a união formada com o tratamento feito em casa

por Victor Gouveia qua, 17/04/2019 - 11:15

Essa até podia ser uma história triste, se o amor dos pais pelo filho não convertesse a angustia em superação. Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Nem uma doença genética rara conseguiu romper a união de uma família. Os pais de Francisco, de 6 anos, descobriram a condição pouco depois do seu nascimento e, nesta quarta-feira (15), comemoram o Dia Mundial da Hemofilia, exaltando a qualidade de vida e o bem-estar do filho. Eles garantem que a liberdade para uma rotina distante das sequelas só foi adquirida com o tratamento feito em casa.

A banheira com sangue

“Você pode no mais simples dos acidentes, morrer”, explicou o diretor de Produtos Estratégico e Inovação da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) Antônio Lucena. Sem cura, a hemofilia faz com que os pacientes demorem mais a estancar um sangramento, independente da intensidade da lesão. Hemorragias externas e internas - sobretudo nas articulações - são inevitáveis em um organismo com dificuldades na produção do Fator VIII recombinante, umas das proteínas necessárias para a coagulação sanguínea. "Têm dias que ele acorda sem pôr o pé no chão ou sem querer mexer o braço. A gente já sabe que tem um sangramento por ali", contou a advogada Priscila Vidal, mãe do pequeno Francisco. Essencialmente hereditária, a hemofilia tipo A é a mais recorrente e atinge um em cada 10.000 homens; Francisquinho é mais um dos 464 hemofílicos de Pernambuco que consegue vencê-la diariamente como um super-herói, pelos olhos da irmã Clarinha, de três anos.

Durante um banho aos seis meses, o menino deu seu primeiro alerta aos pais. Com as águas da banheira manchadas de sangue após um golfo, a mãe percebeu que o filho estava doente. Com o susto, foi-lhes recomendado uma hematologista e após o complexo exame de Cascata de Coagulação veio o diagnóstico da hemofilia tipo A, ou seja, Francisco tem menos de 1% de fator recombinante no corpo. Porém, a confirmação foi obtida ainda durante a coleta, devido a intensa hemorragia em seu braço. "Já era meio que a prova que ele tinha hemofilia", contou o gerente de projetos Tiago Vidal, pai do garoto.

Mesmo atentos, só depois da análise do resultado foi percebido alguns detalhes diferentes no filho, como o umbigo que demorou a cair e as equimoses que apareciam do nada em seu corpo. "A gente foi ligando as coisas e vendo que fazia sentido. Daí, começamos a pesquisar e mergulhar no universo da hemofilia", relembrou Tiago. Por Francisco, o casal tornou-se pesquisador do assunto com o objetivo de traçar uma terapia que garantisse uma rotina tranquila baseada no amor.

Devidamente protegido, o menino levado é o super-herói da irmã. Júlio Gomes/LeiaJáImagens

A profilaxia e o início de uma vida plena

Há aproximadamente três anos, em dias alternados, Francisquinho recebe o fator recombinante VIII que lhe falta através de um acesso na mão esquerda. O tratamento, também conhecido como profilaxia, faz com que o corpo mantenha pelo menos 30% do nível comum, o que evita sangramentos espontâneos. "Traz segurança para uma vida plena. A gente só pode ter esse dia a dia por conta do tratamento. Ele pula, brinca, corre", afirmou o pai sobre os benefícios da medicação, enquanto a esposa brinca, "se machuca também".

Com o aprimoramento da tecnologia dos remédios à base de sangue ou plasma, "o hemofílico já não precisa ter sequelas para ser tratado. Fazemos um tratamento contínuo, e isso faz com que o paciente tenha uma qualidade de vida comparada a uma pessoa comum", reiterou o diretor da Hemobrás, ao comentar sobre as dificuldades que outrora vinham da desinformação. Desgastado, o casal não aguentava mais figurar o hemocentro, quando Priscila conseguiu uma vaga para o curso de profilaxia domiciliar oferecido pela Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope). "Ela pega ele se mexendo, é craque!", brincou Tiago, ao citar a habilidade da esposa; já que ela comanda a aplicação, enquanto ele fica responsável pela preparação, geralmente auxiliado por Clarinha.

Com um sentimento tão raro quanto sua condição, sempre que Francisco recebe o fator, ouve as explicações dos pais. Tanto que ele tem consciência do que pode ou não fazer e evita atividades de contato físico na escola em dias que não foi medicado. "Quando se machuca, ele já diz: 'mamãe, dá o fator'. Ele tem a consciência de que a gente consegue levar para ele esse benefício. É um desafio para qualquer mãe, mas a gente consegue vencer", relatou.

Os hemoderivados deram liberdade a Francisco

A partir do tratamento preventivo feito pela própria mãe, os pais já classificam Francisco como "virado", enquanto ele curte o prazer de ser criança jogando futebol, brincando de corrida ou até mesmo de bicicleta. "Temos confiança no tratamento. A gente sabe que o que aparecer, vamos driblar", relatou a mãe, que continuou, "às vezes a gente até se emociona quando vê ele descendo de escorrego, correndo e até caindo. Mas continuando e dizendo pra gente que tá tudo bem e quando se machucar, resolve com o fator. Isso é muito gratificante, ver ele ativo".

A rotina do tratamento sem dúvidas reafirma o elo entre a família e permite que Francisquinho planeje um futuro. O que antes era angustiante, com as idas ao hemocentro, foi metamorfoseado em união e afeto. Cada gota de sangue é tão importante quanto cada momento vivido. Assim, a Família Vidal vive dia após dia com a certeza de que uma história de superação começou a ser escrita.

Antônio Lucena acredita em um futuro positivo na cura da hemofilia no Brasil, “temos células para trabalhar pelo menos 100 anos. Daqui há 100 anos, essa tecnologia já foi ultrapassada e a gente vai estar, certamente, corrigindo a hemofilia no feto. Não deixando que ele nasça com esse tipo de problema”, finalizou.

O diretor da Hemobrás exalta o trabalho de parceria realizado com os hemocentros. Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Suporte oferecido pelo Estado

Os hemoderivados chegam aos pacientes através das políticas públicas do Ministério da Saúde, como o Programa Nacional da Hemofilia e a Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) entre a Hemobrás e um laboratório internacional. Como o medicamento é produzido fora o país, a PDP permite que até 2023 - ano previsto para a inauguração da fábrica própria em Goiana, Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco - a tecnologia do laboratório seja transferida à empresa nacional, para que o produto seja fabricado no Brasil. É estimado que essa parceria tenha economizado R$ 5,2 bilhões para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Com o fornecimento da Hemobrás, cabe aos hemocentros espalhados pelo país repassar o produto aos pacientes. Só no ano passado, o Hemope - principal hemocentro de Pernambuco - forneceu 40.357 milhões de UIs (Unidades internacionais) do Fator VIII à população. Atualmente, o Brasil tem um padrão de fornecimento de medicamentos hemoderivados comparável ao dos países desenvolvidos.

Nesta quarta-feira (17), unidades de saúde e laboratórios festejam em prol da conscientização e reacendem a luta pelos direitos dos hemofílicos. "Esse dia é um marco, onde é celebrado o reconhecimento de onde chegamos. É quando a gente lembra do passado, para tentar não voltar a ele e continuar na busca por melhorias, garantindo o que a gente tem hoje", explicou o diretor da Hemobrás. No Recife, capital pernambucana, a programação ocorre na sede do Hemope, localizada na Rua Joaquim Nabuco, nº 171, no bairro das Graças, Zona Norte do Recife. No local, está prevista uma manhã de palestras, lanche e muita diversão com recreação para as crianças.

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