Dia Nacional da Adoção: Uma verdadeira escolha de vidas
Neste Dia Nacional da Adoção, conheça histórias de famílias que decidiram fazer uma verdadeira escolha de vidas
Aceitação legal de uma criança como filho; adotação, perfilhação, perfilhamento, é o significado da palavra ‘adoção’ de acordo com dicionário, mas o ato não se resume apenas em palavras como aceitação ou acolhimento, ele vai muito além disso. Celebrado em todo 25 de maio, o Dia Nacional da Adoção completa 20 anos neste 2022.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados neste ano, existiam 3.751 crianças e adolescentes disponíveis para adoção em todo o Brasil, sendo 279 crianças de até dois anos, outros 2,6 mil com 8 anos ou mais e 742 adolescentes com mais de 16 anos. Destas que aguardam uma família, 54,1% dão pardos, 27,3% são brancos, 16,8% são pretos e 0,8% não tiveram a etnia informada. Ainda de acordo com os números, 17,6% têm problemas de saúde e 17,4% algum tipo de deficiência. mais da metade das crianças e adolescentes têm irmãos
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, 26,1% dos candidatos a adotantes (pessoas que querem adotar) desejam crianças brancas, 58% querem crianças de até 4 anos de idade, 61,5% não aceitam adotar irmãos, 57,7% só querem crianças sem nenhuma doença e apenas 4,54% aceitam adotar maiores de 8 anos.
Atualmente, Pernambuco ocupa o 6º lugar no ranking de estados que mais realizam adoções no País, e 149 crianças e adolescentes estão aptas ao processo. Enquanto isso, o número de pretendentes para adotar é de 948, o que deveria encorajar, mas o ‘obstáculo’ é adotar crianças mais velhas ou adolescentes. Dos 948 interessados em adoção no estado, apenas 14 pretendem adotar adolescentes.
Um dos exemplos do real significado de adoção e que vai de encontro a estatística estadual é a família do advogado Felipe Valentim, de 35 anos, que tem dois filhos, Rayane e Rian, de 15 e 19 anos respectivamente. Ambos são irmãos biológicos, que foram adotados juntos por Felipe e a sua ex-esposa, Eduarda.
Ao LeiaJá, Felipe contou que a adoção foi bastante pensada e estudada, “foi uma verdadeira escolha de vida” em vários âmbitos da vida. “Para a minha descoberta como ser humano e para aqueles que viessem a ser meus filhos, considerando o universo de pessoas que não têm qualquer oportunidade de vida, como também porque sempre considerei a filiação genética como adotiva, absolutamente idênticas. Porque, no final das contas, biologicamente ou não, escolhemos amar e acolher as pessoas ao nosso redor”, afirmou. “Não se tratou de opção por exclusão”, ressaltou ele, que disse que podia ter filhos biológicos mas não foi a opção do casal à época.
Valentim revelou que a ideia inicial era adotar uma criança de até 7 anos de idade, mas que tudo mudou após ele ter visto os números de crianças e adolescentes disponíveis e adotantes interessados, como mencionado anteriormente. “Com isso, resolvemos partir para um universo até então diferente da maioria. Dois irmãos, com idade a partir de 11 anos de idade, considerando nossa disposição de conhecer realmente as histórias deles. Até porque, sempre considerei que, seja qual for a história de vida de qualquer pessoa, havendo disponibilidade emocional de parte à parte, ela pode ser mudada a partir do momento que outros estímulos sejam dados, a partir da comunicação, educação, passagem de valores, e principalmente, afeto”.
Foi quando tiveram o conhecimento da Unidade de Acolhimento de Afogados da Ingazeira (UAA) pela TV. “E vimos Rian e Rayane passando no programa "Encontro" de Fátima Bernardes, num dia em que a juíza Hélia Viegas (coordenadora da Comissão Estadual Judiciária de Adoção de Pernambuco - Ceja) foi ao programa e as cartas dos meninos foram lidas, falando sobre seus sonhos de vida, por conta de um programa da Ceja para ajudar na chamada "adoção tardia" (de adolescentes). Depois disso, entramos em contato com o Ceja e promovemos um Natal no centro de acolhimento de Afogados da Ingazeira em 2017. Na oportunidade, conhecemos Rian e Rayane, e veio na gente a certeza de adotar os dois”, explicitou.
“Passamos o final de semana em contato com o centro, e com eles, sempre em conjunto com as responsáveis pelo local, e depois disso, conseguimos obter decisão judicial no nosso processo de adoção para iniciar a aproximação”, detalhou o advogado.
De acordo com ele, como os filhos eram de Afogados da Ingazeira e eles de Recife, a Justiça concedeu a possibilidade deles já morarem com a família no estágio inicial com acompanhamento rotineiro do Fórum de Camaragibe, para consolidar a fase de adaptação em adoção efetiva. “Ela veio em 2018, quando a adoção foi consolidada. Passamos por todas as etapas normais do processo [que durou seis meses]: abrimos uma habilitação, fizemos o curso de preparação para adoção, fomos inscritos no Sistema Nacional de Adoção. Mas como nosso registro englobava crianças de 11 anos, e que podiam ser irmãos, logo que o processo de habilitação foi encerrado, já tínhamos a possibilidade de conhecer os meninos lá em Afogados da Ingazeira”.
Questionado sobre a mudança no perfil, Felipe salientou que foi pelo entendimento de que a adoção poderia ser feita com crianças mais velhas ou adolescentes. “E uma coisa fundamental, foi conhecer várias histórias da Ceja, de adolescentes que queriam ser adotados. O tempo nunca foi o fator. Quando conhecemos as histórias deles vendo o programa Encontro e de outros casos da Ceja. E depois passamos a entender que seria possível a adoção de irmãos para evitar separação”.
A filha mais nova, Rayane Colaço, que foi adotada com 11 anos e atualmente tem 15 anos, contou como foi saber que seria adotada junto com seu irmão. “O nosso maior medo sempre foi sermos adotados por famílias diferentes, até porque quando ia algum casal lá, eles não queriam irmãos, queriam crianças pequenas de berço ou de 4 ou 5 anos. Como a gente era um pouco maior, nosso medo sempre foi sermos adotados separadamente por conta da idade. Ficamos muito felizes quando a gente soube que iríamos ser adotados pela mesma família porque sempre fomos muito apegados desde antes de ir para o Lar. Saber que o casal queria adotar os dois e não um só e que eless tinham a ideia de que separar um irmão do outro seria uma dor foi muito bom”.
Rian Colaço, que foi adotado com 14 anos e hoje tem 19 anos, compartilha o mesmo sentimento que a irmã, “eu sempre sonhei em ser adotado com ela”. “Meu maior medo era ser adotado separado e estar com ela foi muito bom porque sempre vivemos muito juntos e temos um vínculo muito grande. Quando recebemos a notícia de que seríamos adotados juntos eu fiquei muito feliz em saber que sempre vou estar com ela. Eu tinha medo de que a gente fosse desmembrado ou morasse em locais muito longe que nos impedisse ter vínculo; seria muito difícil de me adaptar”, confessou.
O pai, Felipe Valentim, expressou que após o processo da adoção finalizado a ideia de família por escolha foi consolidada. "Mas só na prática, depois do dia a dia, de cada um dos problemas, de nos conhecermos um pouco por dia, de entender como cada um é e precisa, e da criação do amor mesmo, que vem naturalmente, é que tive certeza desse modelo de constituição familiar”, finalizou.
A professora e artesã Jaciara Aquino também faz parte do ponto fora da curva das estatísticas. Ela, que sempre teve a ideia de adotar, a consolidou depois que casou. Segundo ela contou à reportagem, o plano inicial era ter dois filhos biológicos e o terceiro pela via adotiva, mas com o passar do tempo “fomos percebendo que engravidar ia ser mais difícil do que pensamos. "Nos acostumamos com a ideia de que eu não engravidaria, mas deixamos somente duas crianças mesmo em nosso perfil de habilitação para adoção. Demos entrada no processo em novembro de 2017. A partir daí nos indicaram as reuniões do Gead Recife. Havia um número obrigatório de frequência. No final entregamos as declarações de frequência para serem anexadas ao nosso processo. Essas reuniões foram maravilhosas. Aprendemos muito mesmo. Abre nossa mente nos vários aspectos da adoção”, disse.
Mesmo tendo alterado o perfil para dois filhos, após ver fotos na página do Facebook do Ceja, de um grupo de três irmãos, a ideia mudou novamente. “A mais velha já tinha 14 e era um grupo de três irmãos. Poucos se habilitam para adolescentes e praticamente inexiste quem se habilite para mais de duas crianças. Conversamos, meu esposo e eu, e resolvemos entrar em contato para saber mais sobre eles e conhecê-los. Tivemos que alterar nosso perfil que era de duas crianças entre 3 e 8 anos, para três de até 16 anos, pois a de 14 já ia fazer 15. Deu tudo certo e adotamos os três, somos uma família desde 2019”.
Rafaela, de 17 anos, Gabriel, de 14 anos, e Vitória, de 9 anos levaram para a vida de Jaciara e do marido, Robson Aquino, uma outra perspectiva de vida e de vivência em conjunto. “Hoje penso família, não somente eu, ou só o casal. Pensamos em cinco. Me preocupo com coisas comuns como saúde, alimentação e educação, mas também com as amizades que tem e que ainda vão ter. Quero ensinar autonomia mas muitas vezes me sinto insegura. Mas vejo que é com toda mãe, seja biológica ou por via adotiva”, afirmou.
Ela contou que o processo do isolamento da pandemia foi de certa forma mais leve por estar sempre com a casa cheia. “Achei que eles iam sofrer mais, mas talvez por estarem também juntos o emocional de um acaba se apoiando no do outro mesmo sem eles perceberem. Ouvi casos de adolescentes que até fugiram de casa nessa pandemia e nesses casos foi pelo isolamento. Mar de rosas? Não, claro que não, mas temos nos apoiado mutuamente. Às vezes me veem cansada e sempre tem um gesto ou um carinho de um deles ou dos três. Apesar de não serem muito agitados, a casa está quase sempre movimentada. Queria poder dar mais coisas a eles, mas acredito que são felizes. É o que vejo neles e isso acalma meu coração”, desabafou.
Respeito a história de vida do outro
A psicóloga, coordenadora do Grupo de Apoio à Adoção do Paulista e coautora do Projeto Universo Adotivo, Emilene Frere, afirmou que desde quando começou a atuar na área, há 11 anos, a demanda de pais aumentou significativamente. “O mais interessante nessa mudança é que o perfil da criança desejada mudou muito, mudou para melhor. Quando comecei, o perfil era menina branca, sem irmãos, de 2 anos de idade no máximo. Acompanhei casos de crianças com 4, 5 anos tratados como adoção tardia, a gente dava esse nome porque já tinha uma idade que não era muito procurada pelos adotantes. O primeiro caso que acompanhei de adoção de casal de irmãos eles tinham 4 e 5 anos, duas crianças negras, e ela com doença tratável, e foi uma alegria ter conseguido uma família para eles, porque não era um perfil tão desejado”.
Emilene detalhou como funciona o processo da pesquisa no perfil da criança e do adolescente. “As pesquisas são feitas inicialmente no município que residem, se não tiver pessoas no perfil, vão ser procurados pretendentes no estado que a criança mora e em estados vizinhos. Essas crianças que mencionei foram adotadas por um casal de Santa Catarina, e hoje se colocar o perfil dessas crianças no Sistema Nacional de Adoção (SNA) imediatamente terão pessoas de Pernambuco interessadas e possivelmente até uma fila de pessoas. Felizmente mudou muito esse perfil que se deve a muitas questões”.
Ela ressaltou a importância do trabalho dos grupos de apoio de adoção com a desconstrução de mitos, tabus e preconceitos. “Quem ainda tinha medo de, sendo uma pessoa branca e adotar uma pessoa negra pelo receio de como aquilo ia ser visto pela sociedade, não existe mais. A adoção interracial é super normal e a sociedade vem cada vez mais aceitando, respeitando, compreendendo e colocando a adoção nese lugar de uma filiação natural”.
O Grupo de Apoio à Adoção (Gead) é um espaço gestacional para famílias que buscam na adoção a possibilidade de exercer a maternidade ou paternidade. O grupo é formado por mães, pais e pretendentes à adoção que prestam serviço voluntário para o preparo psicossocial de adotantes no período do pré-adoção, com reuniões mensais e apoio no suporte após a chegada dos filhos no pós-adoção. O grupo também trabalha mitos e preconceitos que ainda veiculam na sociedade em relação ao instituto da adoção.
Questionada sobre o impacto da procura dos pais e das mães pela psicoterapia no processo pós e pré adoção Emilene ressaltou: “impacta demais, impacta muito, mesmo antes dessa relação ser constituída”. Ela explicou que os pais recebem um telefonema informando que tem uma criança ou adolescente no perfil desejado disponível, e é quando acontece a primeira visita à distância, para não gerar expectativa na criança ou no adolescente.
“O número que vem aumentando e que me chama a atenção, é de pais que estão em aproximação e já procuram por terapia. Isso fala do entendimento desse pai, da disponibilidade dele de acolher a história desse filho. Eu falo até empolgada, porque é lindo ver essa entrega, esse cuidado, essa atenção. Nós temos uma lacuna muito forte socialmente, do cuidado com a saúde. Nós temos um olhar da saúde física, todo pai que receber um filho da adoção vai procurar um pediatra, ou um hebiatra e vai olhar o cartão de vacina. Mas ninguém leva a terapia, e perceba, é extremamente prudente esse cuidado com a saúde física, super adequado”, afirmou.
Freire chamou atenção para a consciência da dor do outro. “É uma criança/adolescente que você sabe que sofreu perda, que tem um luto pra cuidar de sua família de origem, amigos do acolhimento que ele não vai mais ver, de educadores sociais que ele se vinculou e não vai mais ver, de irmãos biológicos, que às vezes precisa se separar. Existe uma dor posta, que esse pai tenha consciência disso. Mas essa negligência não culparia essas pessoas. Eles vivem na cultura que a gente não precisa cuidar dessas coisas, se der amor tudo bem. Mas muitas vezes é preciso de um apoio profissional para essa superação”.
“Não precisa de tanto, vejo crianças tão dispostas a resiliência, a ressignificar a história delas, que nem é um processo terapêutico muito longo. Elas estão sedentas de construir algo bonito, algo melhor com a nova família, a depender também do que viveram. Terão algumas que terão complexidade maior na história da vida, e junto vem a complexidade de superar essa história”, completou.
Para ela, uma grande problematização na adoção acontece quando adultos procuram crianças para atender às suas expectativas. “Mas essa criança precisa ser acolhida e respeitada na sua história. Então, o primeiro erro fatal que pode acontecer é tentar acabar com a história dessa criança, é tudo que ela tem”.
A profissional destacou a importância do respeito com a história e as vivências do outro. “O correto seria acolher, oferecendo o suporte adequado. Se ela aparecer com uma desnutrição, um problema no desenvolvimento físico ou motor, vai procurar um médico. Mas se ela vem com uma violência, um abandono não vai se procurar uma terapia. Que sentido teria isso? Esse discurso precisamos levar forte para os pretendentes de adoção, que esse passado existiu, que não precisa ser tabu e existem profissionais para darem conta disso. Não tem porque não oferecer esse suporte a criança”.