Mirtes: 'Nunca mais volto a trabalhar de empregada'

Além da morte do filho de cinco anos enquanto ele estava aos cuidados da patroa, Mirtes trabalhou durante a pandemia e se infectou com a Covid-19. Ela e a mãe acreditavam ser tratadas como parte da família dos empregadores até o dia da tragédia em junho de 2020

por Jorge Cosme qui, 07/01/2021 - 08:00

 

No dia 22 de abril, o prefeito de Tamandaré, cidade do Litoral Sul de Pernambuco, Sérgio Hacker (PSB), gravou um vídeo dizendo que havia sido diagnosticado com Covid-19. "Eu me isolei em casa e segui todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde, como do Governo Federal e do Governo do Estado, de fazer o isolamento, e vou fazer assim pelo prazo determinado pelas autoridades", disse ele na gravação. É possível perceber o som de pratos no vídeo. Era a empregada doméstica Mirtes Renata de Souza Santana, que também havia descoberto que estava com a doença naquele dia.

Até então, Mirtes não era uma pessoa nacionalmente conhecida. Tornou-se após a trágica morte do seu filho, Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, que despencou do prédio de luxo Píer Maurício de Nassau, no bairro de São José, área central do Recife - mesmo edifício em que o prefeito gravou aquele vídeo sobre o seu diagnóstico meses antes -. Na tarde de 2 de junho de 2020, Mirtes havia levado Mel, a cadela de Sari Mariana Costa Gaspar Corte Real, primeira-dama de Tamandaré, para passear, deixando o filho aos cuidados da patroa. O menino, que queria encontrar a mãe, foi deixado sozinho dentro do elevador por Sari. Miguel saiu no 9º andar, de onde caiu de uma altura de 35 metros.

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Apesar de o serviço doméstico não ser considerado essencial na pandemia do novo coronavírus, Mirtes e Marta Maria Santana Alves, avó de Miguel, seguiram trabalhando para Sérgio Hacker e Sari Corte Real. Elas contam que não foram obrigadas a continuar trabalhando, mas sentiram que os patrões não ofereceram uma segunda opção. “Ela [Sari] disse ‘Vou para Tamandaré. Vamos?’, você vai dizer o quê? Você precisa do seu emprego”, conta Marta, de 60 anos e, portanto, integrante do grupo de risco da Covid-19. Mãe e filha dizem ter se infectado com a Covid-19.

Durante a pandemia, mãe e filha continuaram trabalhando e se infectaram com a Covid-19. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)

Marta trabalhava para o casal Hacker desde 2014. Inicialmente, ia dois dias da semana para passar as roupas e foi ficando. “Quando eu cheguei a primeira vez, eu me assombrei com a quantidade”, ela lembra. “Quando eu terminava um montante, que eu dava às costas, já tinha outro. E não era uma simples blusinha, eram blusas delicadas que meu salário não pagaria”. A avó de Miguel diz que quase todo o seu expediente era ocupado com o ferro de passar.

O apartamento no Píer Maurício de Nassau era grande. Sari precisava de alguém para fazer faxina, mas as pessoas costumavam desistir quando viam o tamanho do local. Mirtes estava em situação financeira crítica. Ela, que nunca havia trabalhado como empregada doméstica, decidiu aceitar a missão.

A mãe de Miguel deixava o garoto em uma escola próxima de onde mora e em seguida pegava um ônibus, um metrô e outro ônibus para chegar às 8h nas imponentes Torres Gêmeas, nome dado aos dois edifícios de luxo que transformam drasticamente a silhueta recifense do bairro de São José. Ela não tirava hora de almoço, pois assim conseguia largar às 16h e buscar o filho a tempo.

A principal tarefa dela no apartamento era cozinhar. A mãe ajudava com os serviços de limpeza, mas logo depois tinha que voltar sua atenção para a quantidade de roupa. As duas também cuidavam dos dois filhos de Sérgio e Sari. “Sari nunca teve paciência para as crianças”, afirma Marta.

Além do cuidado com as roupas delicadas, Mirtes e Marta precisavam ter um cuidado redobrado com a sala principal do apartamento. Sari não permitia que ninguém ficasse lá, nem as crianças, marido, visitas ou ela própria. Havia objetos de cristal, itens delicados e caros. Havia TV e havia sofá, mas ninguém podia assistir a algum programa ou sentar ali. "Ela recebia as visitas na cozinha. A sala era de enfeite, como um mostruário", lembra Marta. Mirtes ficou com o coração apertado quando quebrou a escultura de um elefante. "Eu disse que pagava, mas ela disse 'não se preocupe, daqui da sala você quebrou o mais barato'".

Durante todos esses anos trabalhando para Sari e Sérgio, Mirtes e Marta recebiam o salário pela Prefeitura de Tamandaré. O Portal da Transparência da cidade mostrava Marta como gerente de divisões na Secretaria de Educação, enquanto Mirtes constava como gerente de divisões na Manutenção das Atividades de Administração. Na realidade, elas não trabalharam para a gestão municipal nem um dia sequer. "No começo fiquei com pé atrás, mas é porque a gente não tinha outra opção. E tem outros funcionários da família deles que recebem pela Prefeitura", diz a avó de Miguel. Ela também teve que mudar o endereço eleitoral para Tamandaré, tornando-se mais uma eleitora do então prefeito. Continuava morando na mesma casa modesta no Recife, apesar do documento constar que ela morava na mansão dos Hacker. Mirtes também foi orientada a mudar o título, mas se recusou. 

Apesar dessas situações, elas sentiam que a convivência com os patrões era muito melhor do que as histórias que ouviam de outras empregadas domésticas do mesmo prédio: muitas só podiam comer depois que a patroa almoçasse e tinham pratos e copos separados. Ela e Mirtes viviam uma experiência diferente, não havia distinção de comida, bebiam nos mesmos copos e comiam nos mesmos pratos que os patrões. O tratamento que elas tinham parecia especial diante dos relatos das outras. "Eu pensava 'sou tratada como se fosse da familia'", lembra a avó de Miguel. 

Mirtes recorda também que elas eram convidadas a participar das festas dos filhos dos patrões. E quando visitavam a família dos Hacker, Sari alertava Marta que ela não era obrigada a ir à cozinha dos outros. "Os familiares de Sérgio são acostumados a tratar muito mal os funcionários. Ela não admitia que tratassem mal mainha", diz a mãe de Miguel.

 Antes da tragédia com o neto, Marta diz que acreditou ser tratada como se fosse da família dos patrões. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)

No período da pandemia, entretanto, mãe e filha continuaram trabalhando mesmo não exercendo um serviço considerado essencial. Com as aulas presenciais suspensas por causa da Covid-19, a família Hacker foi para Tamandaré. Mirtes, Marta e Miguel acompanharam. O expediente continuou iniciando às 8h, já o horário de largar não era mais bem estabelecido. Elas ouviram dos patrões que um dos motivos da ida era manter o isolamento - o que não se cumpriu -. "Sempre tinha gente de fora na casa", lembra a avó de Miguel. 

Mirtes, Marta e Miguel tiveram a Covid-19, elas contam. Marta diz que teve a doença, mas que na época achou ser qualquer outra coisa. Teve sintomas brandos, como febre, dor de cabeça, tosse e moleza. Continuou trabalhando. Na mesma época, Miguel apresentou febre, tosse e diarreia. Avó e neto só confirmaram que tiveram a doença dias antes da tragédia de junho, quando um sobrinho de Sérgio Hacker apresentou diagnóstico positivo. Preocupado com a saúde da filha, o prefeito de Tamandaré testou todos da casa. 

O quadro mais grave foi de Mirtes, que apresentou sintomas cerca de uma semana antes da mãe e do filho. Ela sentiu febre, tontura, tosse, dor no corpo, perdeu o olfato e o paladar. Ligava todo dia antes de dormir para Miguel, que estava em Tamandaré com a avó. Teve medo de morrer. Mesmo com a saúde comprometida, ela continuou trabalhando, mas reduziu a intensidade. "Eu fazia uma coisa ou outra e deitava. Em menos de uma semana perdi seis quilos", se recorda Mirtes. 

Era ela quem ia buscar as encomendas que chegavam para o apartamento. De manhã e de tarde saía com a cachorra. Foi alertada de que moradores do prédio estavam incomodados com ela circulando pelo local mesmo doente. "O pessoal me olhava com olhar de reprovação. Eu tentava descer em um horário que não tivesse movimento".

Miguel voltou de Tamandaré na segunda-feira, 1º de julho. Estava animadíssimo. A mãe lembra que ele foi brincar na rua à noite, para matar a saudade dos amigos. No dia seguinte, ela levou o filho ao trabalho. Era o último dia de Mirtes como empregada doméstica, o último dia de Miguel vivo.

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Refletindo agora sobre os momentos nos quais elas se sentiram como parte da família, mãe e filha chegam a uma conclusão diferente. Não mais acreditam que eram vistas como iguais. "Eu vim entender que ela tratava a gente assim porque a gente priorizava as vontades dela, dava tudo no agrado dela", pondera Marta. "Ela apagou tudo que fez por mim lá atrás. Não adianta me abraçar e não abraçar meu filho". Mirtes complementa a mãe: "A bondade que ela fazia não dava o direito de fazer o que fez com meu filho. Tudo que ela fez antes foi anulado no dia que ocorreu aquilo".

"É mais fácil eu ir para o sinal vender água do que trabalhar na casa de outra pessoa", diz Mirtes. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)

"Não volto mais a trabalhar de empregada doméstica. Apesar que um patrão não é igual a outro, mas eu não quero mais ter essa experiência. É mais fácil eu ir para o sinal vender água do que trabalhar na casa de outra pessoa", afirma Mirtes. Após o ocorrido, ela passou a viver de doações. Em novembro, a ex-empregada doméstica anunciou que vai fazer o curso de direito em 2021 e que pretende ajudar pessoas que sofrem com a "morosidade da Justiça". "Missão que Miguel me deu", disse. 

No dia da morte de Miguel, Sari chegou a ser presa em flagrante, mas pagou fiança de R$ 20 mil e pôde responder ao processo em liberdade. Posteriormente, após análise das câmeras de segurança, a Polícia Civil indiciou a primeira-dama por abandono de incapaz que resultou em morte. As gravações mostravam que o menino entrou várias vezes no elevador querendo encontrar a mãe, sendo retirado por Sari. Na última vez, a primeira-dama apertou o botão da cobertura e deixou ele sozinho, voltando para o apartamento, onde fazia as unhas com uma manicure. Miguel apertou em alguns botões e saiu no nono andar, de onde caiu. O Ministério Público de Pernambuco a denunciou com agravamento da pena, pelo crime ter sido contra criança e em meio à conjuntura de calamidade pública.

Em 3 de dezembro, no Recife, ocorreu a primeira audiência de instrução e julgamento do caso. Na ocasião, foram ouvidas oito testemunhas de acusação, entre elas, Mirtes, Marta e o pai de Miguel, Paulo Inocêncio da Silva. Sari estava presente, mas não foi interrogada. Uma nova audiência será marcada para, então, o juiz proferir a sentença.

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