Cultura do cancelamento: a "justiça" na era digital

"A internet concede às pessoas a ilusão de eliminar as diferenças com um cancelamento”, diz em entrevista o psicólogo Alessandro Bacchini, professor da UNAMA - Universidade da Amazônia

seg, 23/11/2020 - 16:15
Internet Cancelamento se tornou prática comum nas redes Internet

Tema de diversos debates na internet, o movimento conhecido como “cultura do cancelamento” tem chamado cada vez mais atenção. O fenômeno surgiu há alguns anos como uma forma de julgar e repreender atitudes consideradas condenáveis de pessoas que, em sua maioria, têm imagem pública. 

Intensificada no mundo virtual a partir de 2017, o “cancelamento” funciona como uma espécie de tribunal em que qualquer pessoa é punida e excluída da sociedade sem encontrar brechas para justificativa e sem oportunidades para mudança de comportamento e opiniões. A prática ganhou força em todo o mundo e no Brasil existem vários exemplos, como é o caso da blogueira e influenciadora digital Gabriela Pugliesi, que foi bastante criticada após dar uma festa em meio à pandemia do coronavírus em abril deste ano.

A nova tendência tem gerado questionamentos a respeito dos motivos que levam as pessoas a adotarem a postura de juízes e cancelarem alguém e quais os efeitos são gerados por ela. Do ponto de vista psicológico, o professor da UNAMA - Universidade da Amazônia e doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Rio Alessandro Bacchini explica que consequências sofrem aqueles que foram afetados pela cultura do cancelamento e como a sociedade no geral lida com ela. 

O que leva uma pessoa a adotar essa postura e condenar as outras?

Antes de tudo, é importante considerar que estamos diante de um fenômeno recente em nossa cultura com as redes sociais. Este movimento nos coloca num feed infinito de coisas que nos ensina a permanecer conectados por estarmos encontrando, cada vez mais, um espelho. Faz parte de uma psicologia de grupo em Freud (1923), com diálogo estabelecido com a antropologia, que nós nos unamos ao que consideramos igual e nos afastemos e mesmo odiemos o que nomeamos como diferença. O encontro com o outro é, portanto, potencialmente conflituoso. Ocorre que, com as redes sociais, adquirimos a ilusão de que estamos cercados por iguais e de que temos o poder mágico de eliminar as diferenças com um cancelamento ou uma exposição. 

De que maneira isso afeta o psicológico de quem sofre o cancelamento?

Quem sofre o cancelamento pode viver um processo assemelhado à morte de uma parte de si mesmo, seu avatar projetado nas redes sociais. No luto, a falta de interesse pelo mundo e a impossibilidade momentânea de eleger novo objeto amoroso são exemplos de atividades de afastamento a tudo que se liga à memória do que se foi. 

Quem reproduz a cultura do cancelamento e condena outras pessoas também é afetado psicologicamente?

É afetado pela ilusão de onipotência ao tratar o outro como algo que posso eliminar de minha vida, ao passo que o que mais me incomoda no outro tem a ver com o que há de mais íntimo em mim mesmo.

Apontar os erros de outras pessoas pelo cancelamento tem algum efeito?

Talvez o efeito mais recorrente seja o ressentimento pela exclusão.

Existem pontos positivos a respeito da cultura do cancelamento?

Talvez um efeito positivo seja o posicionamento de ideias e proteção de grupos que já vivem exclusão. Mas o autoisolamento pode ser um efeito indesejado desta cultura.

Quem sofre com isso pode posteriormente praticar o mesmo? 

Pode ser que uma pessoa repita este evento traumático em suas relações posteriores, sim.

Qual seria a melhor solução para lidar com isso?

As relações pessoais são imprescindíveis. Viver em relação é lidar com o acaso e com a alteridade em seu sentido radical: o outro é estranho por ser justamente muito familiar; somos seres falantes, portanto, inauguramos nosso lugar no mundo em um jogo de aproximação e afastamento com os outros. No entanto, separar não precisa significar cancelar, aniquilar.

Isabella Cordeiro e Karoline Lima.

 

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