Periferia vence e ex-PM é condenado por morte de jovem
Luiz Fernando Borges recebeu sentença de 28 anos e seis meses de reclusão por homicídio qualificado de Mario Andrade e pela tentativa de homicídio de um adolescente de 13 anos
A Justiça de Pernambuco condenou o ex-sargento reformado da Polícia Militar (PM) Luiz Fernando Borges a 28 anos e seis meses de reclusão pelo homicídio de Mario Andrade de Lima, de 14 anos, e pela tentativa de homicídio de um adolescente de 13 anos. O julgamento, que já havia sido adiado em outras duas oportunidades, foi realizado nesta terça-feira (6) no Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano, em Joana Bezerra, área central do Recife. O crime ocorreu no dia 25 de julho de 2016 no Ibura, bairro periférico da Zona Sul do Recife. Desde a data, Joelma Lima, mãe do garoto que faleceu, participou de protestos e atos cobrando justiça para o caso, virando um símbolo no combate ao genocídio negro nas áreas pobres.
“Hoje tenho certeza que meu filho pode descansar em paz, assim como eu e as irmãs dele. É um sinônimo de ‘a gente pode’. O bom é saber que a gente pode, a gente consegue. Não foi fácil, foi muito sofrimento. Mas é um alívio saber que eu consegui fazer a justiça para meu filho”, disse Joelma, ao término do julgamento. Familiares e coletivos populares estiveram presentes para dar apoio à mãe de Mario.
O júri começou por volta das 9h. A tese do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), responsável pela acusação, era de homicídio duplamente qualificado por motivo fútil, que impossibilitou ou dificultou a defesa da vítima, e tentativa de homicídio qualificado pelos mesmos motivos. “A acusação que foi apresentada em plenário foi totalmente recepcionada pelo conselho de sentença, o acusado foi condenado tanto no homicídio consumado com duas qualificadoras quanto na tentativa de homicídio e duas qualificadoras, ou seja, a sociedade recifense deu uma resposta e a sociedade venceu”, comentou o promotor Guilherme Castro.
O advogado de defesa foi Maurício Gomes da Silva. Especialista em casos envolvendo policiais, o advogado assumiu a defesa de Luiz Fernando a dez dias do julgamento, após o advogado anterior sair do caso. Sua tese consistia em defender o ocorrido como legítima defesa putativa, alegando que a conjuntura fez com que o policial cometesse o crime acreditando estar diante de assaltantes. “O processo é cheio de falhas e defeitos e depoimentos contraditórios. Isso tudo foi relatado, mas o conselho de sentença entendeu de outra forma”, opinou. Durante sua exposição, o advogado chegou a comparar o ex-PM com Jesus Cristo, ao destacar que ambos foram vítimas da opinião pública. O réu utilizou do direito ao silêncio e, assim como em todas as fases do processo, não se pronunciou. O MPPE vai entrar com recurso para pedir aumento de pena, enquanto a defesa vai apelar para que haja ainda absolvição do cliente.
Mesmo com a dor de rever o dia da morte do filho várias vezes através do discurso do promotor, Joelma se mantinha confiante durante todo o dia. “Uma mãe não desiste”, ela comentou ainda antes de entrar na sala do júri. “O vazio vai ficar, a falta dele vai sempre ter, a ferida vai ficar aqui em mim sempre, não vai sair. Mas hoje eu tive motivo para comemorar. Eu não pude comemorar no aniversário do meu filho [primeira data para ocorrer o julgamento, que foi adiado], eu não pude comemorar no aniversário da minha filha [segunda data, quando houve novo adiamento]. Mas hoje, seis de novembro, mês da Consciência Negra, eu tenho o que comemorar”, complementou já após a sentença.
Conforme os autos, Mario e o amigo andavam de bicicleta quando colidiram com o policial que trafegava em uma moto em uma avenida do Ibura. Uma segunda pessoa, que o promotor acredita ser também policial, passava no local na hora e realizou três disparos para o chão para fazer com que os jovens parassem. Esse homem fez uma revista nos menores e comprovou que eles não estavam armados e não ofereciam perigo. Ainda assim, Luiz Fernando teria solicitado que o rapaz deixasse o local pois ele permaneceria resolvendo a situação sozinho. Um morador da área também teria conversado com o ex-PM para convencê-lo a liberar os garotos - esse morador teve o depoimento exibido pela acusação durante o julgamento. Apesar disso, Luiz Fernando, após ligar para a polícia informando ter detido dois ‘suspeitos’, resolveu agir por conta própria. A primeira ação dele foi desferir uma coronhada na cabeça de Mario, que começou a sangrar. O menino foi baleado quando estava deitado. O segundo adolescente correu e foi atingido duas vezes na nádega e uma de raspão no antebraço, tendo se salvado após se esconder em uma área de mangue. O acusado, então, teria voltado e atirado mais uma vez em Mário. Pessoas que estiveram com o réu naquela data disseram que ele estava alcoolizado.
Mario contribuia com a renda da mãe, que vende lanches. Ele estudava, trabalhava de manhã com venda de gás e de noite em uma lanchonete. Gostava também de compor rap. Era considerado promissor no taekwondo, porém acabou se afastando. Foi enterrado com a faixa preta do seu mestre. Durante o processo, três professores do garoto foram ouvidos e, de forma unânime, destacaram o bom comportamento dele.
Após a morte do filho, Joelma liderou atos como interdição de via e vigílias. Ela precisou enfrentar situações de estresse como conflitos durante os protestos entre participantes e não-participantes e ouvir pessoas querendo criminalizar seu filho pela própria morte. Consciente, ela diz que o resultado do júri popular é uma vitória para todas as pessoas das periferias. “Estou mostrando à sociedade que eu, morando em uma periferia, pobre, negra, estou conseguindo, que a justiça vai ser feita”, sentenciou.
Confira a nota do movimento Justiça para Mário Andrade, que deu apoio suporte à Joelma e promoveu atividades na temática do combate ao genocídio da juventude negra ao longo desses mais de dois anos:
Hoje damos mais um passo numa luta que já durava mais de dois anos. O ex sargento reformado que executou Mário foi condenado há 28 anos e 6 meses de prisão em regime fechado. Essa luta por justiça significa um grito contra o extermínio dos jovens negros e contra o terror que o Estado, atraves de seu braço armado que é a PM impõe a nossas comunidades.
A justiça é um braço do genocídio e infelizmente trabalha diretamente encarcerando e criminalizando nossos jovens. Por isso hoje é um dia tão importante. É o dia em que uma mãe negra conseguiu honrar a memória de seu filho. Não podemos nos enganar. Se não fosse a luta de Joelma o próprio judiciário incriminaria Mário. O judiciário não está do nosso lado, mas hoje toda uma estrutura racista teve que se curvar a uma mãe preta e a toda uma comunidade de maioria negra.
Contra o genocídio do povo negro, nenhum passo atrás!
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