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Faltando pouco para o primeiro Dia das Crianças sem Miguel, a sala da casa de Mirtes, no Barro, Zona Oeste do Recife, está lotada de brinquedos. São 100 ao todo, que ela vai distribuir neste domingo (11) no Centro Comunitário Mário Andrade de Lima, no Ibura, bairro periférico na Zona Sul. A tarefa coube a ela de forma inesperada. 

Mirtes Renata Santana de Souza faz parte há dois anos do Coiotes Corredores, um grupo de atletas amadores que corre todas as quartas-feiras no 2º Jardim de Boa Viagem, também na Zona Sul da capital. Mensalmente eles fazem uma ação solidária para alguma instituição. A pessoa que realizaria a distribuição do Dia das Crianças teve que viajar e coube a Mirtes fazer a entrega.

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"A ficha está caindo aos poucos", diz Mirtes, que na sexta-feira (9), enquanto separava os brinquedos nas grandes sacolas, ficava imaginando quais o filho gostaria de receber. No Dia das Crianças, Mirtes costumava comprar um presentinho e levar o garoto para passear em algum lugar da escolha dele.  

Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu no dia 2 de junho ao cair do nono andar, uma altura de cerca de 35 metros, do edifício de luxo Píer Maurício de Nassau, que integra o conjunto conhecido popularmente como "Torres Gêmeas", no bairro de São José, centro do Recife. A tragédia ocorreu durante os poucos minutos em que a mãe, que continuava trabalhando de empregada doméstica durante a pandemia do novo coronavírus, se ausentou para levar Mel, a buldogue da patroa Sarí Gaspar Corte Real, para passear. Miguel queria ficar com a mãe enquanto Sarí queria fazer a unha. Não suportando a desobediência do menino, a patroa, primeira-dama de Tamandaré, apertou o botão da cobertura e o deixou só no elevador. Miguel saiu no 9º andar, de onde caiu.

Desde então, Miguel não mais passeou pela casa de bicicleta, para reclamação da mãe, pois não pode ficar correndo de bicicleta pela casa. Não mais brincou de Uber, empurrando os carros pelo chão de cerâmica. Não mais usou o vão do rack como garagem de seus carros. Ou gritou "ei, amigo" para os garis que passavam perto de sua casa, se pendurando no caminhão, algo que ele queria muito poder fazer. Ou puxou o banco com a estampa do Chaves para o meio da sala, entre a avó e a televisão. "Miguel, saia da frente", dizia Marta Maria Santana Alves. "A senhora está vendo a tv ou o celular?", rebatia o garoto, com a resposta na ponta da língua.

Miguel veio ao mundo com o rosto igual ao que a mãe havia sonhado. 4 quilos e 530 gramas, 52 cm, às 7h42 da manhã de 17 de novembro de 2014. A mãe fala todos esses números com a fluidez de quem conta até 10. Miguel nasceu "grande e roliço" no Hospital João Murilo de Oliveira, em Vitória de Santo Antão, a 76,5 km de Orobó, cidade em que a mãe morava.  "Ele era lindo, lindo, lindo", ela recorda. 

Mirtes sempre achou o nome Otávio forte, nome de médico. "Doutor Otávio, Doutor Miguel Otávio", as pessoas falariam. O sonho dela era ver o filho médico, com um futuro melhor do que o seu e por isso gastava muito com ele. Era escola, hotelzinho, plano de saúde, tratamento psicológico quando o menino ficou agressivo no período da separação dos pais, e fonoaudiólogo, devido à língua presa. No Moda Center de Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste, ela pagou R$ 400 em roupas para o filho e comprou nada para si. 

O 'Miguel' foi sugestão da madrinha, por causa do Arcanjo Miguel. Mirtes também costumava frequentar a capela de São Miguel Arcanjo na cidade de Bonança. "Dei nem chance do pai dele optar pelo nome", Mirtes lembra. O então companheiro dizia que escolheria o nome se fosse menina, ela concordou, mas acredita que decidiria o nome da garota do mesmo jeito.

 

Os Coiotes Corredores conseguiram arrecadar 300 brinquedos. Um terço desses será entregue no Sertão também neste domingo. Outros 100 serão levados por Mirtes e Marta para o Centro Comunitário Mário Andrade. Os últimos 100 devem ser distribuídos para crianças do UR-05, também no Ibura, no domingo seguinte, dia 18.

Mirtes comprou brinquedos para a ação, mas não mexeu nos de Miguel. Brinquedos, roupas e sapatos estão todos guardados. A mãe diz que quer chegar em casa e encontrar tudo do jeito que o filho deixou. "Eu não consigo me desfazer de nada dele ainda. Meu coração não deixa tirar nada do meu filho daqui". Os carros seguem na garagem do rack, logo abaixo da TV. Mirtes diz que está faltando o carro de polícia, que ficava mais à esquerda e que provavelmente Miguel deixou no hotelzinho e ela vai buscar para colocar de volta. O menino gostava muito daquele carro. Queria ser policial. A mãe tinha que levá-lo todo ano para o desfile de Sete de Setembro. Miguel ficava encantado vendo os soldados marchando. Pedia o colo da mãe para conseguir ver o mais de perto possível.

Além dos brinquedos, Mirtes e Marta vão levar bolo, refrigerante e ingredientes para fazer cachorro-quente. O Centro Comunitário também vai distribuir sacolinhas de doces e máscaras de proteção. "Para mim vai ser uma satisfação ver uma criança feliz por ganhar um brinquedo desse. No sorriso das crianças eu vou ver o sorriso dele. Não é fácil, mas vai ajudar, acho que vai aliviar um pouco a dor que eu sinto, ver outras crianças sorrindo, satisfeitas, felizes, como Miguel era", comenta Mirtes.

No mês passado, ela foi convidada para receber cestas básicas em uma escolinha de futebol perto de onde mora. Ao chegar lá, foi abraçada pelas crianças. "Foi tão gostoso aquele abraço. Parece que Miguel tinha falado com eles: 'abraça a minha mãe, minha mãe está precisando'". Um menino fez um gol e correu para abraçá-la. "Esse gol é pra senhora", disse o garoto, que se chamava Miguel, ela soube posteriormente. "E aquilo mexeu tanto comigo", lembra.

Marta ficou preocupada ao saber que a filha teria que lidar com uma casa cheia de brinquedos. Seria uma provação. "Depois de uma morte dessa, cada um tem um sentimento, pode ter rancor. Ela poderia se recusar a receber. Mas se você cria o ódio, a raiva, você só anda para trás", diz a avó de Miguel.

O Centro Comunitário Mário Andrade de Lima, onde ocorrerá a distribuição dos presentes, foi criado por Joelma Lima com a ajuda de movimentos sociais. O local recebe o nome do filho de Joelma, que foi assassinado aos 14 anos por um ex-sargento da Polícia Militar em julho de 2016 sem qualquer chance de defesa após ter batido a bicicleta na moto do policial. O ex-sargento foi condenado a 28 anos e seis meses de reclusão, não sem antes Joelma promover vários atos, como interdição de via e vigília, cobrando justiça, que o caso não caísse em esquecimento e contra as tentativas de criminalizarem seu filho.

Mirtes e Joelma se aproximaram após a tragédia com Miguel. "O centro está dando forças a Mirtes para ela ver que, por mais difícil que seja a gente estar sem nossos filhos, tem outras crianças que precisam receber amor, receber carinho. Uma certeza eu tenho, que ela vai sentir Miguel ali na presença dessas crianças assim como eu sinto Mário", diz Joelma.

Sarí Gaspar Corte Real é ré por abandono de incapaz com resultado morte com as agravantes de cometimento de crime contra criança e em ocasião de calamidade pública. A audiência de instrução e julgamento está marcada para 3 de dezembro. No dia da tragédia, Sarí chegou a ser autuada em flagrante por homicídio culposo, mas foi liberada após pagar fiança de R$ 20 mil.

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A Justiça de Pernambuco condenou o ex-sargento reformado da Polícia Militar (PM) Luiz Fernando Borges a 28 anos e seis meses de reclusão pelo homicídio de Mario Andrade de Lima, de 14 anos, e pela tentativa de homicídio de um adolescente de 13 anos. O julgamento, que já havia sido adiado em outras duas oportunidades, foi realizado nesta terça-feira (6) no Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano, em Joana Bezerra, área central do Recife. O crime ocorreu no dia 25 de julho de 2016 no Ibura, bairro periférico da Zona Sul do Recife. Desde a data, Joelma Lima, mãe do garoto que faleceu, participou de protestos e atos cobrando justiça para o caso, virando um símbolo no combate ao genocídio negro nas áreas pobres.

“Hoje tenho certeza que meu filho pode descansar em paz, assim como eu e as irmãs dele. É um sinônimo de ‘a gente pode’. O bom é saber que a gente pode, a gente consegue. Não foi fácil, foi muito sofrimento. Mas é um alívio saber que eu consegui fazer a justiça para meu filho”, disse Joelma, ao término do julgamento. Familiares e coletivos populares estiveram presentes para dar apoio à mãe de Mario.

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O júri começou por volta das 9h. A tese do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), responsável pela acusação, era de homicídio duplamente qualificado por motivo fútil, que impossibilitou ou dificultou a defesa da vítima, e tentativa de homicídio qualificado pelos mesmos motivos. “A acusação que foi apresentada em plenário foi totalmente recepcionada pelo conselho de sentença, o acusado foi condenado tanto no homicídio consumado com duas qualificadoras quanto na tentativa de homicídio e duas qualificadoras, ou seja, a sociedade recifense deu uma resposta e a sociedade venceu”, comentou o promotor Guilherme Castro.

O advogado de defesa foi Maurício Gomes da Silva. Especialista em casos envolvendo policiais, o advogado assumiu a defesa de Luiz Fernando a dez dias do julgamento, após o advogado anterior sair do caso. Sua tese consistia em defender o ocorrido como legítima defesa putativa, alegando que a conjuntura fez com que o policial cometesse o crime acreditando estar diante de assaltantes. “O processo é cheio de falhas e defeitos e depoimentos contraditórios. Isso tudo foi relatado, mas o conselho de sentença entendeu de outra forma”, opinou. Durante sua exposição, o advogado chegou a comparar o ex-PM com Jesus Cristo, ao destacar que ambos foram vítimas da opinião pública. O réu utilizou do direito ao silêncio e, assim como em todas as fases do processo, não se pronunciou. O MPPE vai entrar com recurso para pedir aumento de pena, enquanto a defesa vai apelar para que haja ainda absolvição do cliente.

Mesmo com a dor de rever o dia da morte do filho várias vezes através do discurso do promotor, Joelma se mantinha confiante durante todo o dia. “Uma mãe não desiste”, ela comentou ainda antes de entrar na sala do júri. “O vazio vai ficar, a falta dele vai sempre ter, a ferida vai ficar aqui em mim sempre, não vai sair. Mas hoje eu tive motivo para comemorar. Eu não pude comemorar no aniversário do meu filho [primeira data para ocorrer o julgamento, que foi adiado], eu não pude comemorar no aniversário da minha filha [segunda data, quando houve novo adiamento]. Mas hoje, seis de novembro, mês da Consciência Negra, eu tenho o que comemorar”, complementou já após a sentença.

Conforme os autos, Mario e o amigo andavam de bicicleta quando colidiram com o policial que trafegava em uma moto em uma avenida do Ibura. Uma segunda pessoa, que o promotor acredita ser também policial, passava no local na hora e realizou três disparos para o chão para fazer com que os jovens parassem. Esse homem fez uma revista nos menores e comprovou que eles não estavam armados e não ofereciam perigo. Ainda assim, Luiz Fernando teria solicitado que o rapaz deixasse o local pois ele permaneceria resolvendo a situação sozinho. Um morador da área também teria conversado com o ex-PM para convencê-lo a liberar os garotos - esse morador teve o depoimento exibido pela acusação durante o julgamento. Apesar disso, Luiz Fernando, após ligar para a polícia informando ter detido dois ‘suspeitos’, resolveu agir por conta própria. A primeira ação dele foi desferir uma coronhada na cabeça de Mario, que começou a sangrar. O menino foi baleado quando estava deitado. O segundo adolescente correu e foi atingido duas vezes na nádega e uma de raspão no antebraço, tendo se salvado após se esconder em uma área de mangue. O acusado, então, teria voltado e atirado mais uma vez em Mário. Pessoas que estiveram com o réu naquela data disseram que ele estava alcoolizado.

Mario contribuia com a renda da mãe, que vende lanches. Ele estudava, trabalhava de manhã com venda de gás e de noite em uma lanchonete. Gostava também de compor rap. Era considerado promissor no taekwondo, porém acabou se afastando. Foi enterrado com a faixa preta do seu mestre. Durante o processo, três professores do garoto foram ouvidos e, de forma unânime, destacaram o bom comportamento dele. 

Após a morte do filho, Joelma liderou atos como interdição de via e vigílias. Ela precisou enfrentar situações de estresse como conflitos durante os protestos entre participantes e não-participantes e ouvir pessoas querendo criminalizar seu filho pela própria morte. Consciente, ela diz que o resultado do júri popular é uma vitória para todas as pessoas das periferias. “Estou mostrando à sociedade que eu, morando em uma periferia, pobre, negra, estou conseguindo, que a justiça vai ser feita”, sentenciou.

Confira a nota do movimento Justiça para Mário Andrade, que deu apoio suporte à Joelma e promoveu atividades na temática do combate ao genocídio da juventude negra ao longo desses mais de dois anos:

Hoje damos mais um passo numa luta que já durava mais de dois anos. O ex sargento reformado que executou Mário foi condenado há 28 anos e 6 meses de prisão em regime fechado. Essa luta por justiça significa um grito contra o extermínio dos jovens negros e contra o terror que o Estado, atraves de seu braço armado que é a PM impõe a nossas comunidades.

 A justiça é um braço do genocídio e infelizmente trabalha diretamente encarcerando e criminalizando nossos jovens. Por isso hoje é um dia tão importante. É o dia em que uma mãe negra conseguiu honrar a memória de seu filho. Não podemos nos enganar. Se não fosse a luta de Joelma o próprio judiciário incriminaria Mário. O judiciário não está do nosso lado, mas hoje toda uma estrutura racista teve que se curvar a uma mãe preta e a toda uma comunidade de maioria negra.

 Contra o genocídio do povo negro, nenhum passo atrás! 

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