PE: Vila Esperança resiste à ameaça da Ponte do Monteiro

Entre prédios de luxo da Zona Norte do Recife e o Rio Capibaribe, a comunidade consolidada há mais de 30 anos vem sendo retirada do local para a construção da Ponte do Monteiro

qua, 23/08/2023 - 12:54
Júlio Gomes/LeiaJá Imagens Comunidade Vila Esperança espremida entre prédios de luxo na Zona Norte do Recife Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Moradores da Vila Esperança não desistiram dos seus lares e lutam contra as ordens de desapropriação da Prefeitura do Recife. Entre os bairros de Apipucos e Casa Forte, área nobre da Zona Norte da cidade, a comunidade resiste há décadas à especulação imobiliária e, desde 2012, é ameaçada pela gestão municipal a cada nova etapa da construção da Ponte do Monteiro. 

Ocupada por cerca de 300 famílias de baixa renda, a Vila Esperança é uma das 74 Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) do Recife. A lei consolidada há quase 30 anos protege a localidade por reconhecê-la como um território popular e, inclusive, incentiva o Poder Público a promover a regularização fundiária das moradias. 

A Prefeitura do Recife, através da Autarquia de Urbanização do Recife (URB), contrariou os dispositivos da ZEIS e distribuiu 53 cartas de negociação para pressionar pela retirada das famílias da Rua Ilha do Temporal. As desapropriações foram motivadas pelo argumento da construção da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão, mas os moradores da Vila Esperança apontam um movimento de gentrificação. 

LeiaJá também: Ponte do Monteiro deve se tornar realidade em 24 meses

"Eles querem tirar essa comunidade daqui porque a especulação imobiliária daqui é demais. É uma área nobre, né? Aí todo mundo só imagina isso", denunciou Carlos Iraquitan, que descreveu o espaço como um “oásis” entre os bairros com o m² mais caro do Recife. 

Carlos Iraquitan acredita que toda comunidade será desapropriada em poucos anos. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Mais de 30 dos seus 50 anos foram na Vila Esperança, lugar onde Carlos escolheu para criar seus dois filhos, hoje com 25 e 24 anos. "Aqui é um local centralizado. Meus filhos estudaram aqui em cima, é perto de hospital, de clínica, de shopping, de tudo. Aí vai mandar [a gente] não se sabe para onde e o dinheiro não vai dar para comprar outro", lamentou. 

Os moradores ainda estavam preocupados em sobreviver à pandemia quando a ponte começou a avançar nas duas margens do Rio Capibaribe. As obras começaram a avançar em 2021, com a publicação do decreto de desapropriação 34.603 para que a previsão de entrega em junho de 2024 tentasse ser cumprida.

O interesse, na visão dos moradores, seria adiantar o término da ponte para que ela possa protagonizar os materiais de campanha de reeleição do prefeito João Campos (PSB) como a primeira ponte entregue na capital em quase 20 anos. 

Dona Maria José conta que investiu em melhorias na casa antes da ordem de saída. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Dona Maria José Pereira, de 73, estabeleceu morada na comunidade quando ela ainda era formada por barracos de tábua, há mais de 30 anos. Sem forças para resistir às investidas da URB, ela aceitou negociar a indenização, mas, assim como os vizinhos, reclama da proposta irrisória oferecida pelo município. 

“A gente não pode sair sem ter um dinheirinho para comprar a casa. Onde é que a gente vai morar sem ter casa? Ficar pagando aluguel é muito ruim e o valor que eles querem dar não dá para comprar uma casinha”, afirmou. 

Helena Vicente aponta que a Prefeitura não se propôs ao diálogo. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Helena Vicente, 1ª titular da Comissões de Urbanização e Legalização (Comul) Vila Esperança, mobiliza os moradores a defender a permanência da comunidade. “Muitos já negociaram por se sentirem cansados da luta. Essa obra já tirou uma leva de pessoas em 2012, então, muita gente que eu conversei disse: 'ah, a gente não tem força para eles não'. Mesmo sabendo do direito que têm, essas pessoas não reagiram. Elas querem que aconteça, mas têm medo de lutar e de resistir”, expôs. 

Carlos descreveu a estratégia da URB para fechar os valores com os moradores antes da judicialização. "O dinheiro para todo mundo é muito pouco, não dá para comprar nem um barraco em outro lugar [...] eles dão a primeira proposta, se tu não aceitar, quando vai para a justiça, cai mais ainda [o valor]. Minha mãe pegou logo na primeira, mas pegou chorando", apontou. “A [casa] da minha mãe foi indenizado muito pouco porque a casa da minha mãe era bastante grande. Tinha mais de 80m² e deram o valor só de 79 mil a minha mãe", continuou. 

Destroços deixados na comunidade após demolição. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Desde o reinício das obras, os habitantes da Vila Esperança alegam sofrer ameaças de funcionários da Prefeitura. "Se não negociar, vai ser pior para vocês"; "Vocês não são donos disso aqui"; "O trator vai passar", são os comentários que se espalham pelos becos da comunidade após a saída de um representante. 

'Ultimamente estamos recebendo muita visita [da prefeitura] e elas dizem: 'o pessoal que tá na justiça, a gente vai vir com o trator amanhã'. Mesmo sem a gente ter sido intimado ainda", reclamou Helena.  

Quando um morador cede à desocupação, a casa é rapidamente derrubada, o que repercute em uma nova forma de intimidação. Mesmo com os chamados, os destroços não são recolhidos e as tralhas acumuladas passam a atrair ratos e escorpiões. "Acho que para manter essa insalubridade que vai gerando o desejo de deixar o local", observou a líder comunitária. 

Casa pixada pela Prefeitura para indicar saída dos ocupantes. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Para "abrir passagem para novos caminhos", como divulga a Prefeitura, as casas selecionadas para vir ao chão foram pichadas pela própria URB em agosto de 2021, antes mesmo da convocatória que abriu as negociações. 

Sem autorização dos ocupantes, portas e paredes foram demarcadas por spray de tinta. "Eles mediram tudinho e ficou por isso mesmo. Disse que depois voltava para resolver, até agora. Eu tô sem saber de nada, só sei que tá marcado", afirmou Maria da Luz de Aquino, que está há 30 dos seus 73 anos na Vila Esperança. 

Dona Maria da Luz apresenta um cenário de incerteza quanto ao futuro. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

A Ponte do Monteiro será o primeiro dispositivo do sistema viário planejado para a região. Seu projeto foi apresentado aos moradores da Vila Esperança em setembro de 2021, com a primeira leva de desapropriações no mês seguinte e, só em abril de 2022, foi anunciada a expansão da construção com um anel viário para cumprir a promessa de encurtar a distância entre as zonas Norte e Oeste. 

"Em 10 anos vão tirar tudinho daqui", afirma Carlos. “Tem moradores que não acreditam que vai sair tudo, mesmo a gente mostrando esse ofício. Essas pessoas estão tranquilas porque acreditam que vão ficar", complementou Helena. 

Em um primeiro momento, 17 famílias resistiram e foram processadas em ações movidas pelo município. A maioria desistiu no meio do caminho e, hoje, restam oito processos. A Justiça suspendeu a emissão de posse em apenas dois deles e pediu que uma nova perícia recalculasse o valor da indenização dos imóveis. 

Para quem não aceitou os preços baixos propostos pela URB, foi oferecido o remanejamento para um conjunto habitacional há cerca de 200 metros da comunidade. Contudo, nenhum dos dois blocos prometidos começou a ser construído.

Placa da Prefeitura do Recife informa que a obra foi orçada em mais de R$ 40 milhões. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Por meio de nota, a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) reforça que cerca de 80% da Ponte do Monteiro está pronta e aponta que a nova ligação viária com o bairro da Iputinga vai beneficiar diretamente 60 mil pessoas. 

A Prefeitura do Recife informa que a construção de 75 apartamentos para os moradores afetados pela ponte ainda não foi iniciada. Sem data para o início da obra, a gestão indicou que ela deva começar nas próximas semanas.  

O habitacional Vila Esperança será dividido em dois blocos, um com 40 unidades e o outro com 35, contando com jardim, horta comunitária, playground e uma creche. O plano da Prefeitura é entregar apartamentos com cerca de 40 m² para famílias que deixaram suas casas com mais de 100m². As obras vão custar em torno de R$ 13 milhões.  

A ponte deve ser entregue em meados do primeiro semestre do próximo ano. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

O município também rebateu as reclamações sobre as baixas propostas de indenização e ressaltou que o valor depende das benfeitorias feitas pelos moradores no terreno e não do m² cobrado pelos imóveis da região.

"A URB esclarece que cada imóvel é avaliado individualmente e recebe um valor que varia de acordo com questões como existência de documentação legal, área construída e benfeitorias realizadas pelos moradores. Os valores oferecidos são baseados em tabela atualizada anualmente e validada pelos órgãos de controle, como Tribunal de Contas do Estado e Caixa Econômica Federal”, resumiu. “Todos já foram negociados, incluindo 12 que foram objeto de negociação judicial, e 50 foram pagos", frisou a Prefeitura.

As pichações nos imóveis correspondem ao "procedimento padrão", disse a gestão, que ainda afirmou que as tralhas das casas demolidas só serão retiradas à medidas que as obras avancem.

COMENTÁRIOS dos leitores