Entre a escola e a casa da avó havia uma funerária. A pequena Cleciane, toda vez que passava em frente ao local, acelerava o passo. Não conseguia sequer olhar para o estabelecimento. Sentia uma energia ruim, medo. Mal imaginava a pequena estudante que anos mais tarde caixões fariam parte do seu cotidiano.
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No Cemitério Municipal de Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife (RMR), há nove anos Cleciane Virgínia Melo de Lima é Ane, a única coveira mulher do local e uma das pessoas mais requisitadas. A todo tempo tem funcionário e morador procurando por ela. Com pulso firme, ela lidera, toma decisões e é respeitada pelos colegas de trabalho.
Ane ouviu certa vez que há somente duas mulheres coveiras no Nordeste. A outra profissional seria funcionária do Cemitério de Araçoiaba, na RMR. A informação é difícil de ser confirmada, já que não existe uma categoria de coveiros na região, geralmente incluídos na categoria de servidores municipais ou terceirizados. O Sindicato dos Servidores Municipais do Recife informou que na capital, cidade mais populosa de Pernambuco, há mulheres trabalhando em cemitério, mas nenhuma em cargo de coveira.
O trabalho é puxado. Tem que carregar areia, carregar cimento, preparar a massa, quebrar paredes de tijolos para exumação, subir parede de tijolos para sepultamento. Também cria as placas de túmulos mais bonitas de lá. Ocasionalmente, faz um enterro - são poucas as famílias que compraram uma área para enterro no local. Tudo isso sob o sol escaldante do Grande Recife que faz o rosto da mulher estar constantemente pingando.
No começo, Ane sofreu. “Tinha que derrubar cinco a seis paredes. Meu braço ficava pesado”, ela lembra. O problema não era só esse. A chegada de uma mulher na equipe de coveiros foi vista com estranheza pelo antigo administrador. Ela foi aprovada em um concurso de auxiliar de serviços fúnebres. Com apenas dois meses de trabalho o funcionário anterior pediu demissão porque tinha medo. Ele estava vendo sombras e tendo pesadelos. “O antigo administrador então disse que se com um homem já estava difícil, uma mulher é que não ficaria mesmo. Ele pensou que eu não iria conseguir fazer as coisas. Não que ele fosse ruim, é apenas um machismo natural, um machismo que existe mesmo. Para ele, seria um trabalho difícil de uma mulher fazer”, diz Ane.
Com um mês, o administrador mudou de opinião. “Eu mostrei que o que era proposto a fazer, eu fiz. Aí ele não quis mais chamar outra pessoa”, lembra a coveira, orgulhosa. Hoje ela diz não mais perceber olhares tortos ao seu redor.
Muitas vezes, Ane é a última a deixar o trabalho. Gosta do que faz. Nos momentos de descanso, acha o cemitério um bom lugar para ler. “Eu me sinto bem aqui”, resume. A mulher já foi aprovada em outros concursos, mas preferiu seguir como coveira.
Se ela se achava medrosa quando pequena, a percepção mudou. O mito de que cemitérios são assombrados não ganharam muito espaço com ela. “Eu cheguei a tomar alguns sustos, com revoada de pássaros, com barulhos. Mas ou era um pássaro ou era um gato. Não tenho medo”, explica. Também ficou mais fria com relação à morte, a qual já temeu. “É uma coisa natural, que todo mundo vai passar”, ela afirma agora.
Respeitosamente, Ane é silenciosa durante o sepultamento. Evita conhecer a história de quem sepulta para não se envolver. Eventualmente, algum parente do falecido lhe revela detalhes de quem se vai e ela sente o aperto no peito e se emociona. Também é apaziguadora. “Ela sabe tratar as pessoas. Às vezes tem alguém mais exaltado, mas ela, com o jeito dela, a educação dela, vai lá e aí quando vê o cara tá bem calminho. É uma excelente profissional e tem orgulho do trabalho”, conta o diretor administrativo do Cemitério de Camaragibe, Edilson Rufino.
A coveira está terminando também o curso de Biologia e continua estudando para concursos. Nunca sabe se a próxima oportunidade a aparecer vai finalmente tirá-la daqueles corredores de gavetas mortuárias. Sabe, entretanto, que olhares tortos e frases de desmerecimento não lhe alcançam. E espera que alcancem mulher nenhuma. “Eu acho que a mulher vai entrar em todos os cantos. Já está acontecendo. Se não entrou ainda é porque não teve oportunidade. Se tiver, ela faz. O que eu estou fazendo aqui qualquer mulher faz. A mulher consegue fazer o que ela quiser”, diz.
Conheça um pouco mais da história de Ane:
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