Tópicos | Miguel Lago

O cientista político Miguel Lago enxerga uma "resiliência muito grande do bolsonarismo" mesmo com a saída de Jair Bolsonaro da Presidência da República. Para ele, a capacidade de mobilização dos apoiadores não depende da máquina pública, mas essencialmente da atuação do ex-presidente como um líder oposicionista. "Sem o Bolsonaro, o bolsonarismo se fragmenta", afirmou Lago, em entrevista ao Estadão.

Estudioso da convergência entre políticas de saúde, tecnologia e democracia, Lago lançou recentemente o livro Do que falamos quando falamos de populismo (Editora Companhia das Letras) junto com o também cientista político Thomás Zicman de Barros - um ensaio no qual os dois investigam os diferentes significados que o termo adquiriu ao longo da história e como ele está inserido no atual debate político do País.

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Lago, que é professor da School of International and Public Affairs da Universidade de Columbia e na École d'Affaires Publiques de Sciences Po Paris, avalia que tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quanto Bolsonaro "dividem a sociedade entre povo e elite, o povo sendo uma coisa boa e a elite, uma coisa ruim". A seguir os principais trechos da entrevista:

Bolsonaro perdeu a eleição por margem pequena de votos. O bolsonarismo se tornou nestes últimos quatro anos uma força política real. Vai perder oxigênio sem o poder?

Eu acho que não. Existe uma resiliência muito grande do bolsonarismo. Acho que realmente ele conseguiu algo extraordinário, que foi conquistar corações e mentes na sociedade. O bolsonarismo é uma força muito grande. Bolsonaro conseguiu ideologizar grande parte da sociedade brasileira, e isso é um feito único na nossa história. Claro, não tendo o governo, você perde muito da sua capacidade de pautar, vai ser difícil o bolsonarismo aprender a pautar estando na oposição. O governo é que pauta. Em termos de mobilização, vai haver um desafio grande para o bolsonarismo. Mas eu não acho, sinceramente, que seja um movimento que tivesse a sua força unicamente pelo fato de ser Estado, pelo fato de ser governo. A capacidade de mobilização não depende da máquina pública.

Bolsonaro tem atributos e meios para se manter como principal líder da oposição ao novo governo?

Sem o Bolsonaro, o bolsonarismo se fragmenta. Ele é o fenômeno aglutinador do bolsonarismo. Sem ele, a extrema direita vai se fragmentar em algumas extremas direitas.

A "máquina" de comunicação de Bolsonaro deixa algum tipo de legado para a forma como se faz política no Brasil? É possível o próximo governo se apropriar dessa estratégia?

Lula teria todas as condições, mas eu acho que a própria montagem de governo mostra que não, que ele não está aprendendo com essa forma de fazer política. Tem um elemento aí, que o Bolsonaro soube usar justamente sua força eleitoral como uma maneira de não ceder a certas pressões político-partidárias. O Lula, pela montagem dos ministérios e a entrega de pastas importantes e absolutamente estratégicas nas mãos de partidos completamente descompromissados com o futuro do País, está recorrendo ao presidencialismo de coalizão que a gente sempre viu, muito mais do que um governo do PT. Vários ministérios estratégicos foram entregues por uma questão de loteamento político.

Lula discursa contra as "elites" e evoca uma dicotomia entre povo e "mercado". Bolsonaro termina o seu governo recorrendo ao populismo. Quais características sobrepõem os dois nesse conceito?

Existem algumas características, mínimos denominadores comuns do que seria o populismo. Um deles é essa dicotomia de divisão da sociedade entre povo e elite, isso é constante. Tanto Lula quanto Bolsonaro dividem a sociedade entre povo e elite, o povo sendo uma coisa boa e a elite, uma coisa ruim. Só que as elites que o Bolsonaro denuncia são, na realidade, as elites intelectuais, culturais e administrativas. Para Bolsonaro, o povo é quem é 'cidadão de bem' nos moldes dele, e tudo que não é cidadão de bem seriam as elites, os maus. Os dois são populistas, mas com graus diferentes, e a significação do que é povo e elite é muito diferente.

O ambiente virtual impulsiona o populismo?

Totalmente. O populismo é uma lógica política de mobilização da sociedade. Você mobiliza a partir de um antagonismo, de uma rivalidade. O ambiente virtual favorece algumas construções narrativas do bolsonarismo mais popular. As redes sociais têm uma arquitetura de sociabilidade e maneira de comunicar e interagir que favorecem discursos sensacionalistas, mensagens curtas e potentes. É uma grande fragmentação de perfil, e a maneira de se conectar com outros perfis seria através de um influenciador. O influenciador desempenha um tipo de engajamento com seus seguidores que se parece com o que seria uma liderança populista. As redes sociais catapultam influenciadores para a política e, portanto, fortalecem uma lógica populista.

O sr. defende que o Brasil vive uma revolução cultural que molda as opções e escolhas políticas nos últimos 20 anos. É um processo em curso ou consolidado? Que alerta essa revolução traz para o futuro governo de Lula e do PT?

Está em curso. O bolsonarismo conseguiu encarnar essa revolução social e cultural, por isso acho que Bolsonaro como candidato estava muito mais atualizado com essas mudanças na sociedade brasileira do que a candidatura do Lula. Outras forças políticas, desde a direita democrática até o centro e a esquerda, não conseguiram captar o que a extrema direita de Bolsonaro conseguiu captar na sociedade brasileira e se conectar com isso. Tem muito a ver com uma mudança de perfil religioso, os evangélicos são minoria do ponto de vista estatístico, mas maioria do ponto de vista político. O deputado católico não é comparável a um deputado evangélico pastor. Os neopentecostais ditam grande parte da vida política, hábitos de consumo e disciplinares de maneira que outras igrejas não fazem. Esse é um elemento absolutamente fundamental porque ele é cultural, não religioso. Bolsonaro captou isso como ninguém. Ele identificou esse processo dando ministérios inteiros para essas denominações e passou a significar seus atos como presidente a partir de uma leitura neopentecostal da Bíblia, foi uma inserção da cultura religiosa na política como nunca havia se visto antes.

Muitos defendem que Lula e o PT deveriam apostar em um governo de transição. Qual a chance de o futuro governo se consolidar realmente como um governo "menos petista"?

O governo é menos petista do que se tem falado. Ele não é resultado das forças que apoiaram Lula para ganhar as eleições. Grande parte do PSDB, do Cidadania e partidos que apoiaram Lula no segundo turno não tiveram reconhecimento, no entanto o União Brasil, que na maioria dos Estados estava fechado com Bolsonaro, recebeu (ministério). Essa aliança ministerial responde muito mais aos anseios de governabilidade do que, necessariamente, à frente ampla que se construiu. Grandes figuras do PT não entraram nesses ministérios e tinham essa expectativa, e certamente vai haver tensões no próprio partido ao longo do governo. Claro que houve a correta decisão de chamar Simone Tebet e Marina Silva. É um governo muito menos petista do que o primeiro governo do Lula.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

O cientista político Miguel Lago, mestre em Administração Pública e diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), já classificou o presidente Jair Bolsonaro como um "fenômeno tecnopolítico" que, segundo ele, atuaria numa lógica de internet, inflando os apoiadores nas redes sociais. Em casos como a crise do coronavírus, diz, o perfil de fidelizador dos seguidores mais fanáticos fica escancarado. Para Lago, há método no modo como o presidente ataca governadores, a imprensa e as recomendações do próprio Ministério da Saúde. "Se a ação de contenção (da pandemia) for bem-sucedida, ele consegue colher os louros. Se for malsucedida, diz que não tem nada a ver com isso, porque foi contra o isolamento social", disse ao jornal O Estado de S. Paulo.

O sr. já definiu Bolsonaro como um fenômeno 'tecnopolítico'. Isso ficou escancarado com a crise do coronavírus?

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A disputa do Bolsonaro é por narrativa. Está sempre jogando com os seguidores dele. Precisa fidelizar essa base, da qual depende todo o sucesso dele no governo. Está jogando com dois meses de antecedência. Tem método. Está jogando o jogo dele, que é muito perigoso para a saúde pública. É isso o que acontece quando a política deixa de ser ancorada na realidade e é puro discurso político.

Como analisa essa estratégia?

Ele aposta em duas vias. Em uma, se a ação de contenção for bem sucedida, consegue colher os louros. Na outra, se for mal sucedida, diz que não tem nada a ver com isso porque foi contra o isolamento social, a "histeria" que ele diz que a imprensa e os governadores estão instalando na população. Vamos supor que a política de isolamento funcione. Isso significa que o coronavírus foi contido, mas que o maior problema é a recessão econômica. Se ele dizia que as medidas de contenção seriam responsáveis pela recessão, ele tira a própria responsabilidade. Narrativamente, está tentando ganhar mesmo que o Brasil tenha uma recessão tremenda.

A crise amplia a rejeição a ele?

Minha impressão é a de que as pessoas que não gostam dele estão mais eloquentes, até porque ele tem dado muitos argumentos para isso. Mas tem um fenômeno de classe também. As primeiras vítimas são de classe mais alta, que votou majoritariamente nele. A queda de popularidade abre espaço para a oposição construir um método, como é o caso dos panelaços, mas acho que ele ainda continua muito forte.

Há espaço para impeachment?

Até vejo a instalação de um processo de impeachment, porque ele está levando a briga com as instituições até a última consequência. Mas, politicamente, uma coisa é Collor ou Dilma, que tinham índices de popularidade minúsculos. Bolsonaro tem um segmento da população fanático por ele. Essa parcela da população vai brigar. Seria um impeachment muito mais custoso do ponto de vista político.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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