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“Se você fosse jogado dentro de um leprosário como eu fui com 14 anos de idade e te falassem que dali só sairia para o cemitério, o que você faria?”. Seu Juliano Vieira de Farias, 71 anos, me fez esse questionamento. Não tive resposta. O silêncio foi quebrado quando ele próprio respondeu: “Não existia perspectiva de uma vida digna e caí no mundo das drogas, após ser arrastado de dentro de casa e jogado no Hospital da Mirueira. Morava no bairro da Várzea, no Recife, com meus pais e mais sete irmãos. Me deixaram longe deles e passei a viver em um lugar que classifico como depósito de lixo humano”.

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Na memória de seu Juliano ainda existem vestígios do tempo em que a hanseníase era um mal sem cura no Brasil. Chamados preconceituosamente de leprosos, portadores da doença foram isolados do restante da sociedade em 1923, através de uma política criada pelo governo federal para evitar o contágio em massa. Segregação que alimentou ainda mais o desrespeito de grande parte da população contra os acometidos pelo diagnóstico, em uma época que a medicina brasileira ainda não tinha conhecimentos suficientes para tratar a enfermidade. O isolamento durou por quase 40 anos, mas existem relatos de que, mesmo após a determinação do fim da separação, alguns leprosários continuaram prendendo seus pacientes.

Apesar da frágil saúde, seu Juliano reuniu forças para compartilhar com o LeiaJá parte de suas histórias. Ele é um dos pacientes com hanseníase que viveram o isolamento compulsório em Pernambuco. Na época, uma polícia sanitária foi criada pelo governo federal com o objetivo de retirar a força os doentes do convívio social. Os leprosários foram chamados também de hospitais colônias, uma vez que as relações sociais dos doentes aconteciam apenas entre eles próprios, pois o contato com pessoas saudáveis, mesmo que familiares, era combatido. Verdadeiras cidades foram criadas dentro dos leprosários, onde pacientes tinham a missão de trabalhar para manter a limpeza da colônia e até cuidar das plantações e criações de animais que serviam para a alimentação de todos. No Estado, o antigo palco das tristes recordações de seu Juliano é o atual Hospital da Mirueira, localizado em Paulista, na Região Metropolitana do Recife.

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Em 1962, o isolamento compulsório chegou ao fim. Nem por isso a vida dos doentes se tornou livre das mazelas que atormentaram os portadores de hanseníase. Muitos foram abandonados pela família e continuaram morando nos próprios hospitais, como no caso de seu Juliano, que apenas resolveu sair do Hospital da Mirueira em 1994. Hoje ele vive sozinho em uma casa próxima à unidade hospitalar, mas, no antigo leprosário, ainda há pacientes que viveram o isolamento, muitos com sérias deficiências físicas e recordando os males da segregação.

Saiba mais: Segundo definição da Sociedade Brasileira de Dermatologia, “a hanseníase acomete primeiro a pele e os nervos periféricos, e pode atingir também os olhos e os tecidos do interior do nariz. O primeiro e principal sintoma é o aparecimento de manchas de cor parda, ou eritematosas, que são pouco visíveis e com limites imprecisos. Nas áreas afetadas pela hanseníase, o paciente apresenta perda de sensibilidade térmica, perda de pelos e ausência de transpiração. Quando lesiona o nervo da região em que se manifestou a doença, causa dormência e perda de tônus muscular na área”. Os doentes sem o devido tratamento podem perder partes do corpo.

“Cidade do medo”

Após o fim do isolamento compulsório, os leprosários passaram a ser administrados pelos estados. No caso da Mirueira, o Hospital se tornou referência no tratamento de hanseníase e ainda hoje abriga cerca de 20 pessoas que foram pacientes isolados, além de alguns agregados. Pelo preconceito existente no período de isolamento e por causa do risco de contágio da hanseníase, a colônia pernambucana era chamada de “cidade do medo” e chegou a abrigar cerca de 500 internos. Quase não havia cidadão com coragem de entrar no local, sob a ameaça de ser acometido pela hanseníase. A seguir, confira uma imagem da época registrada pela Fiocruz.


Vera Lúcia Rodrigues, hoje com 59 anos, morou desde criança no Hospital da Mirueira. Seus pais tiveram hanseníase e ela também foi contagiada, além de sofrer com o cruel preconceito no lado de fora da colônia. A senhora já não mora na unidade hospitalar, mas trabalha lá com serviços gerais e conhece cada canto do local. Junto com o LeiaJá, ele refez caminhos que estão cravados em sua memória, muitos deles com tristes desfechos, mas que revelam um passado sombrio que afetou pelo menos 10 mil brasileiros, segundo dados da Secretaria de Direitos da Presidência da República. Vale lembrar que boa parte das casas e setores do Hospital da Mirueira foi erguida pelos próprios pacientes.

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Na época em que o Hospital da Mirueira era um leprosário, Vera viu os últimos minutos de vida da sua mãe, presenciou castigos contra os pacientes que “desrespeitavam” as regras do hospital colônia e teve filhos recém-nascidos arrancados dela – bebês de doentes eram tirados de perto das mães e levados para preventórios com o intuito de evitar contágio. “Era triste ouvir o que as pessoas falavam. Vivíamos presos aqui. Não tenho o que reclamar do convívio com os outros pacientes, mas fora do leprosário era um terror. Dentro do hospital também vivi fatos horríveis”, conta Vera.

De acordo com o coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) em Pernambuco, Gildo Bernardo da Silva, o peso trágico dos hospitais colônias é tão forte na vida de quem viveu a separação compulsória, que os leprosários chegam a ser comparados com campos de concentração. “Alguns falam que foi exílio, outros dizem que são campos de concentração, pela forma brutal que a separação foi feita. Diziam que Getúlio Vargas, presidente do Brasil na época, era simpatizante de Hitler. A polícia sanitária ia buscar os doentes em casa para levá-los ao isolamento. Se fugisse, o paciente seria perseguido e castigado”, relata Gildo.

Por mais que a estrutura física dos hospitais colônias tivesse semelhanças com as cidades onde os sadios viviam, a realidade na época era de pura segregação imposta pelo estado. Segundo a professora e coordenadora do Programa de Extensão Hanseníase Cuidado e Direito e Saúde, da Universidade de Pernambuco (UPE), Raphaela Delmondes, houve violação dos direitos humanos. Ouça o depoimento da docente:

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Dona Maria José Borges (foto à esquerda), hoje com quase 80 anos, foi paciente do isolamento compulsório, mas preferiu permanecer nas dependências do Hospital da Mirueira. Ela afirma ter parentes fora da unidade hospitalar, mas quase não tem contato com eles. Sem uma das pernas e ainda com sérias lesões causadas pela hanseníase, Maria vive sozinha e conta com o serviço de uma cuidadora de idosos. Ao falar do passado, mesmo em meio às lembranças obscuras da separação compulsória, a idosa relembra quando conseguia trabalhar de pé e ainda reclama da atual falta de atividades de lazer. “Hoje só passamos o dia todo sentados, sem fazer nada. Antigamente era melhor que hoje, pois a gente fazia festa, brincava, só não podíamos passar do portão”, conta.

Outro residente do local, Mario Nunes completou 44 anos de moradia no Hospital da Mirueira. Carrega sequelas da doença e relembra fatos marcantes do isolamento compulsório. Hoje com 70 anos de idade, ele cobra da direção do hospital a realização de atividades para entreter os moradores e alega que os remanescentes da separação compulsória continuam isolados e esquecidos pelo governo estadual. Vizinha de seu Mario, dona Marly Ferreira, atualmente com 65 anos, chegou à Mirueira aos 15 anos de idade. A senhora também possui lembranças marcantes do período de isolamento. No vídeo a seguir, os pacientes descrevem histórias da época:

Através de nota, a Secretaria de Saúde de Pernambuco, pasta responsável pela gestão do Hospital da Mirueira, reconhece a existência das vilas dentro das unidades e reforça que apenas os antigos pacientes devem moral no local. A direção do Hospital também assume que o número de festividades e atividades para os ex-pacientes vem diminuindo, sob a alegação de dificuldades financeiras. “Neste momento, a direção optou por reduzir os gastos com o intuito de garantir a assistência aos pacientes do Hospital, que é seu serviço prioritário”, informou a nota.

Em 2007, uma lei federal sancionada pelo presidente Lula liberou um benefício para mais de 11 mil pessoas que foram submetidas ao isolamento compulsório. Elas recebem uma ajuda de custo no valor um salário mínimo e meio. 

       

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