Três publicações recentes sobre literatura e crítica brasileiras merecem especial atenção. Entre outras coisas, destacam-se pelo que possuem em comum: são olhares inquietos. Mais que isso, são obras perturbadoras, na medida em que propõem agitarmos essas águas mornas e suspeitas, problematizarmos e buscarmos novos (ou resgatados) modos de fazer análise literária.
Duas delas, de colaboradores frequentes do Rascunho: Marcos Pasche, com De pedra e de carne, e Rodrigo Gurgel, autor de Muita Retórica – pouca literatura, que resolveram compilar alguns textos publicados naquele jornal ou em outros meios. O terceiro, João Cezar de Castro Rocha, lançou em 2011 um livro essencial para os interessados no tema: Crítica Literária: em busca do tempo perdido? (Argos, 443 págs.).
Desde março deste ano, João Cezar também passou a colaborar com o Rascunho, escrevendo a coluna “Nossa América, nosso tempo”, voltada para autores e temas hispano-americanos. Quem conhece seus ensaios, ou acompanha as participações dele em eventos, percebe que costuma girar em torno de duas teses centrais: 1) que, embora seja geralmente interpretada de modo equivocado, a histórica rivalidade entre críticos de rodapé e acadêmicos pode esclarecer muito sobre nosso atual cenário cultural; 2) que é preciso sair do muro de lamentações que se tornou o ambiente crítico no País, saudoso lugar de reclamações sobre o desprestígio da literatura em nossos dias. Na entrevista que anunciou sua parceria com o Rascunho, João Cezar ratificou sua postura nada nostálgica:
“...procurarei, na contramão da ‘melancolia chique’, escutar o contemporâneo, buscando mostrar a vitalidade de novas formas de crítica e a força de certos escritores que merecem ser mais bem estudados”.
Além de sugerir que abandonemos as ladainhas inócuas, João Cezar defende uma esquizofrenia produtiva, onde os críticos assumam positivamente a tensão existente entre os espaços jornalísticos e acadêmicos. Em seu livro, ele explica que não se trata de confundir os gêneros, mas de encontrar formas férteis de convivência entre ambos. “Por que não atualizar a lição de Antonio Candido e Mário Faustino, fecundando o ensaísmo acadêmico com a clareza do texto jornalístico e, ao mesmo tempo, enriquecendo a visão crítica dos cadernos culturais mediante a formação universitária”?
Não deixa de ser o caminho adotado por Marcos Pasche, professor e doutorando, que sempre buscou espaços na mídia para publicar seus textos críticos. De pedra e de carne (Confraria do Vento, 2012, 252 págs.), que tem o sugestivo subtítulo artigos sobre autores vivos e outros nem tanto, reúne parte considerável de suas análises. Quase todos os textos selecionados, ainda que se dediquem a obras ou autores específicos, oferecem fragmentos da visão geral que Pasche tem sobre a crítica literária, interessada principalmente na legitimidade dos juízos de valor – questão proposta logo na apresentação do livro:
“Entendo a crítica, também, como emissão de juízo a respeito do fenômeno com que se depara, e entre isto e a ideia de juiz de arte há longuíssima distância: é infundado o olhar que vê no exercício judicativo um gesto reacionário e estreito”.
Assim como João Cezar de Castro Rocha, Marcos Pasche também argumenta que é preciso reaproximar universidade e imprensa. Mas, no que diz respeito às opiniões sobre a qualidade da crítica literária que se faz no Brasil, ele está bem mais próximo de Rodrigo Gurgel. Ambos têm posturas mais contundentes, atacam a mesmice, pregam mais coragem, embora não ignorem a necessidade de manter o equilíbrio. Pasche acredita que, “se o juízo de valor for emitido com elegância, atenção e sinceridade, o autor criticado, se ler a crítica com lucidez, entenderá a observação e talvez chegue a considerá-la em composições futuras”.
Sobre Muita retórica – pouca literatura: de Alencar a Graça Aranha (Vide Editorial, 2012, 228 págs.), melhor reproduzir integralmente a breve e esclarecedora apresentação escrita pelo próprio Rodrigo Gurgel:
“Este livro reúne ensaios publicados, entre 2010 e 2012, no jornal Rascunho, numa série, ainda não terminada, cuja proposta é reler os prosadores da literatura brasileira. Minha leitura segue, de maneira proposital, parâmetros em grande parte desprezados na atualidade, quando a crítica literária não só difunde, mas também sofre dos três males apontados por Tzevetan Todorov: formalismo, niilismo e solipsismo. Trata-se, logo, de uma leitura à contracorrente. Exercício, como os leitores perceberão, nem sempre agradável; e que só pode ser enfrentado obedecendo-se ao que propõe Friedrich Schlegel em um de seus brilhantes fragmentos: ser, enquanto crítico, um leitor que rumina – e que, portanto, deve ter mais de um estômago".
Gurgel tem opiniões bem mais veementes e avessas ao academicismo, tópico no qual João Cezar e Pasche concordam que é necessário e saudável conciliar as diversas contribuições, sejam da crítica dita “impressionista”, da “universitária” ou mesmo das demandas assumidas pelas resenhas jornalísticas, que precisam adequar as análises às prerrogativas dos meios de comunicação. Todos eles, porém, carregam essa inquietude, o sentimento de que é preciso rediscutir lugares-comuns do nosso meio literário, tomar como positivo e natural o estado de crise da crítica, além de romper com a lógica da cordialidade, quando esta distorce ou mesmo corrompe o exercício do crítico.
Vez em muito, a história pede que os críticos literários façam mais do que analisar textos, informar sobre autores, e emitir juízos de valor sobre as obras. Há momentos que pedem a coragem de investigar os próprios alicerces e paredes, sem medo de encontrar fissuras mais graves, ou de se confrontar com moradores zelosos de seus confortáveis cômodos e sono.