Sempre que autor me presenteia com livro que foi “escrito e publicado sem pretensão” vontade é de perguntar: “Não lhe parece muito pretensioso querer que leiam obra que foi realizada sem objetivos”? Mas abro sorriso e agradeço, pois carrego aquela suspeita de que não existe escritor mais ambicioso do que o super humilde.
Por trás de quase todo São-Francisco-das-Letras existe cidadão que gasta boa parte da noite sonhando em vencer Jabuti e ser entrevistado na televisão. O desdém com a reputação é, na verdade, sintoma terminal de pretensões olímpicas. Sujeito que afirma não desejar protagonismo é aquele que se morde quando é chamado para evento como mediador, ao invés de atração principal. É também o mesmo que semanalmente digita o próprio nome no Google para conferir quantas ocorrências aparecem.
Super humilde é gente trabalhadora e teimosa, que gasta as poucas horas vagas escrevendo. Que envia seus trabalhos para os mais variados concursos, tenta ser aceito por editoras, e, se necessário, não hesita em torrar suas economias bancando publicação de suas obras “sem pretensão”.
O cabotino e o despretensioso são sujeitos exagerados e aparentados, eles tomam caminhos opostos de olho nas mesmas botijas. E, convenhamos, são divertidos, além de necessários. Nenhuma cena literária pode se projetar seriamente se não tiver pelo menos uma penca de metidos e dois cachos de super humildes.
O cabotino às vezes é tão excessivo que termina sofrendo acidente vascular. Ele teima e teima, até que o não reconhecimento lhe dá nos nervos e estraga algum órgão vital. Já o super humilde é comedido até nisso, ele geralmente adoece de coisas pequenas, arranja caspa ou brotoejas, unhas encravadas ou gastrite. Um explode, o outro vai definhando.
Diferente do arrogante, que reage violentamente à indiferença, o despretensioso não grita, não protesta, sequer reclama pelas beiradas. Ele guarda a raiva. Seu extravasamento é pela via da paranormalidade. Se topar com um super humilde no banco, e os caixas eletrônicos desligarem, não duvide, foi ele – a não ser que você seja do convívio com meu azarado amigo jornalista Diogo Monteiro, que faz cair qualquer sistema eletrônico ou toldo de festa em dia de chuva.
Lembro de um humilde que adorava propor pautas ao programa Opinião Pernambuco, da TV Universitária. Ele ficava de olho em datas e outros ganchos, aí sugeria tema e lista de convidados. Três, ele recomendava com empolgados elogios. O derradeiro, no entanto, era ele mesmo, que se justificava mais ou menos assim:
– Poderia ser eu, porque estudei bastante esse assunto. Seria, contudo, apenas para compor, porque os demais é que são inestimáveis!
E terminava que, como ele tinha realmente boas propostas, a produção acatava as ideias. Preferindo, contudo, fechar a mesa com entrevistado que pudesse mais do que somente compor.
Note que outro traço do despretensioso é a pretensão de ser conhecedor de muitos temas. Tanto assim que nosso super humilde, esse colaborador do Opinião Pernambuco, foi tentando participar de conversas cada vez mais distantes da literatura. Numa dessas, programa sobre relacionamentos na internet, ele conseguiu finalmente ser chamado. Mas a vontade de falar também sobre arte, filosofia, política, economia e astronomia foi tão grande que ele travou, ficou com pescoço engessado nos 40 graus, os dentes batendo alto.
Pouco antes de se encantar, o saudoso Rubem Rocha Filho pediu para ver originais de meu livro de contos. E, naturalmente, comecei a negociação dizendo que eram narrativas sem pretensão alguma. Ao que ele respondeu: “Meu querido, não faça isso, essas ressalvas são das coisas mais cretinas que um escritor pode cometer. Pior que isso, só aquele nosso conhecido, que está pensando em criar instituto com o próprio nome, ‘em benefício de todos os escritores pernambucanos’”.
Nunca cheguei a perguntar quem era esse conhecido meu e de Rubem. Com o despretensioso do Opinião, entretanto, eu cruzei recentemente, numa livraria. Ele se fazendo passar por seu leitor, perguntando ao funcionário da loja se tinha um romance que lhe fora muito indicado por José Castello e Jomard Muniz de Brito! Essa fantasiosa conjunção de recomendações me pareceu tão sensacional que, confesso, quase comprei o danado.
No mundo, existe exatamente o mesmo número de cabotinos e despretensiosos. Desse rigoroso equilíbrio, depende a sobrevivência do planeta. Toda vez que algum autor metido morre, um super humilde entrega seu livro de estreia aqui na guarita do predio. Cada dia em que vejo notícias na mídia, que deixam entender que a literatura ainda vive, dou graças aos cabotinos e despretensiosos, porque são açúcar e sal dessa terra das letras. Sem eles, os demais alimentos findariam sem graça, seriam como biscoitos que só têm recheio.
Mas vamos terminar esta coluna, que já está bem longa, e o caro leitor não tem tempo ou paciência para ler mais que três dezenas de linhas desses meus textos modestos, publicados assim, assim, sem maiores ambições. Sem falar que a dermatite está incomodando, minha orelha está queimando mais do que fogueira de São João.
Até mais (caso deseje voltar a essa humilde casa). Abraço grande!