Há duas semanas, alguns leitores da coluna Redor da Prosa acusaram de elitismo (ou algo parecido) a afirmação de que ser leitor também é vocação. O argumento mais utilizado por eles foi que vocação é termo que discrimina, que se mostra contrário à ideia de que todos são capazes de realizar algo. Em tempos de proliferação das oficinas literárias e de universalização de tudo, aquele texto não “caiu bem”… Melhor assim!
Querido Raimundo Carrero (escritor e realizador de oficinas literárias) sempre repete: se tudo pode ser aprendido, por que não seria possível ensinar a escrever? Por um motivo bem simples: não é bem assim, nem tudo que reside na arte é conteúdo passível de disponibilização e aprendizado. Aliás, nada no mundo é redutível à técnica.
É comum que os defensores de que todos são capazes de tudo recorram ao termo grego techné, que, no decurso de sua história, realmente aproximou o artesão e o artista. Seja trabalhando na madeira ou em versos, estamos agindo sobre algo para revelar/desvelar outra coisa. A techné não é só práxis, é também um saber, daí que seja raiz comum aos mundos da tecnologia e da arte.
Acontece que desde a Antiguidade os filósofos reconhecem a necessidade de pensar o ser como resultado sempre inacabado, de algo além. Não é simplesmente questão de ser capaz, nem de potencial enquanto conjunto de habilidades que estão adormecidas, à espera de estímulo e orientação. Mas sim de potencial como força, como potência que é a própria energia que propicia a vida e suas realizações. Não é uma energia hibernando, em estado natural, mas força dinâmica (dynamis) que ao mesmo tempo ratifica e transforma.
Na modernidade, de Kant a Novalis, de Nietzsche a Heidegger e tantos outros, houve sempre uma recusa de encarar o potencial nesse sentido homogeneizador, simples, banal, de livro de autoajuda barata. A potência é, pelo contrário, algo diferenciador, singularizante, vontade que ao mesmo tempo orienta e liberta.
O que chamamos de vocação na coluna anterior é algo além da capacidade. Não porque sobrenatural, mística, mas por ser irredutível às técnicas. Ela advém das infinitas equações que são resultantes das também infindáveis energias, potências e technai. Por isso sua definição nos escapa, por isso a sensação de vocare, de “chamado”.
Muitos se sentem incomodados com a palavra vocação porque ela indica existência de algo para além das capacidades comuns a todas as pessoas. Geralmente, por trás dessa insatisfação, está a questão dos valores. O receio é que o discurso sobre sujeitos vocacionados termine por perpetuar injustiças sociais, desigualdade de oportunidades. O que essas mesmas pessoas não percebem é que o contrário é caminho tão ou mais perigoso: se não existe vocação, somente capacidades comuns e oportunidades, aquele jovem que não consegue transformar as chances que recebeu em sucesso é um preguiçoso, um fracassado, um perdedor. O que lhe falta não é vocação, mas sim garra, disposição para vencer.
Esse incômodo, no entanto, geralmente tem seus campos preferidos. É mais raro acreditarmos que todo menino apaixonado pela bola e bem instalado na escolinha de futebol se torne um craque. Ou que a criança que adora água e vive na piscina do clube se torne uma nadadora quando adulta. Não costumamos defender que toda criança que gosta de música e recebe educação na área se transforma num virtuose, ou que o pequeno a desenhar para os pais cresça e seja reconhecido como novo Goya.
Por que, então, para ser escritor bastam ambição e técnicas? Será a literatura algo menor, diferente de todas as demais atividades humanas?
Para muitos (pois estamos falando de opiniões), a arte não é regra, ela é exceção. Porque é ambígua, tensa, ela aproxima e afasta, desvela e oculta, nasce a partir do que está e do que não está imediatamente disponível. Arte é sempre um dobrar-se sobre si mesmo, sua existência não se resume, não se permite ter uma função pontual e imutável. Ela é fazer, saber e, sobretudo, reflexão. Enquanto a techné aproxima artesão e artista, a poiesis, por exemplo, afasta, pois é um fazer que é saber e pensar, saber e refletir, saber e transcender, saber e agir.
Quem frequentou oficina literária adquiriu instrumentos, “aprendeu” recursos, alguns caminhos e atalhos da escrita. Mas será suficiente para fazer literatura, arte? Ou precisará ter potencial e ser vocacionado? Não parece mais coerente a posição de José Castello, para quem as oficinas não ensinam a escrever, “mas servem para desnudar e desembrutecer”, “para aproximar o aluno da verdade – a verdade pequena e precária de cada um”? As oficinas oferecem apenas uma face das muitas nesta lua sombria e incandescente que é a literatura.
A coluna anterior somente levou essa reflexão para outra órbita, a do leitor. Nem todos têm vocação para serem leitores de livros, embora seja obrigação dos educadores estimular a experiência, assim como preparar os estudantes para um mundo em que precisam ler sempre, nas mais variadas linguagens – para um mundo que afinal é linguagem! Fazer da leitura de livros uma atividade para toda a vida, uma parte do ser, porém, é outra coisa. Que não se deixa aprisionar por gestões públicas, discursos politicamente corretos ou colunas literárias.