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Leitor como vocação & escritores que não leem

Cristiano Ramos, | seg, 25/06/2012 - 17:40
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Ser leitor é também vocação. Não no sentido de decodificador, de alguém capaz de decifrar e interpretar um texto, de alfabetizado. Mas aquela outra esfera (nem superior, nem inferior, apenas diferente) que encontra na leitura uma teia especialíssima de prazer, desdobramentos e transcendência. Não se trata de um pensamento conservador, pelo contrário, ele aproxima o ato de ler das outras capacidades humanas.

Não costumamos exigir que uma criança iniciada no mundo da música faça do instrumento ou do canto uma obrigação para o resto da vida. Não esperamos que o aluno que desenha casas e parentes venha a ser obrigatoriamente um artista plástico. Tampouco a matemática precisa se tornar profissão, assim como garotos matriculados em escolinhas de natação ou futebol não necessariamente serão atletas quando adultos. Por que, então, a leitura precisa ser um pacto sem volta, em que aquele estudante iniciado só não será um leitor até envelhecer e morrer se houve uma “falha” em sua formação?

Papel do educador é trabalhar a importância da leitura, desenvolver as habilidades cognitivas e técnicas envolvidas, bem como apontar caminhos. Ou seja, propiciar base e estimular jornadas – duas missões fundamentais e relacionadas, embora distintas. O sistema falha ao não estimular que a criança mantenha a leitura como hábito, ao não disponibilizar os portais. O prosseguimento da viagem, no entanto, é incerto e não normativo. É estupidez dizer que são fracassados o engenheiro que não lê (livros) e o professor que o educou.  

Explicando de outra forma, é necessário preparar os alunos para percepção e compreensão dos significados de um mundo que, como sugeriu Barthes, não pode ser apreendido senão através da linguagem. Ou melhor, de um mundo que é linguagem. Sempre existirão, porém, aqueles para quem essa navegação está além do pragmatismo, das necessidades, da capacitação.

Nos meios especializados, tema surge como diferenciação entre os processos de alfabetização e de letramento, onde este implica apropriação técnica, construção de bagagem cultural e aproveitamentos dos saberes oferecidos pela leitura. Na verdade, a “esfera” do letramento é sítio onde orbitam diversas outras esferas. Porque sempre que falamos de alguns tipos de leitura estamos simplificando a discussão, é um recurso dissertativo. Existem incontáveis modos de ler, e infinitas veredas e maneiras de percorrê-los.

Perpetua-se, contudo, uma falsa ética da leitura, que transformou a diferença entre leitores e não leitores em resultado de desigualdades econômicas e educacionais, em questão de justiça social, apenas. É isso, também. Voltando a Roland Barthes, ele reconheceu as dificuldades de tratar do assunto. Confessou que, ao contrário da escrita, área em que conseguiu pouco a pouco esboçar uma doutrina, a leitura o deixava em desamparo teórico. E refletiu:

“(...) não sei se a leitura não é, constitutivamente, um campo plural de práticas dispersas, de efeitos irredutíveis, e se, conseqüentemente, a leitura da leitura, a Metaleitura, não é nada mais do que um estilhaçar-se de idéias, de temores, de desejos, de gozos, de opressões, de que convenha falar à medida que surjam (...)”(O rumor da língua, 2004, pág. 30).

Ao tentar erguer cômodo sobre esse terreno movediço, Barthes tocou em tópico essencial: o desejo. A leitura não é um ato natural, selvagem, compartilhado pela quase totalidade da espécie. Ela implica níveis díspares e incomensuráveis de querer, vontade de. São tantos os matizes envolvidos, que andam por aí até escritores que não costumam ler, ou que leem pouquíssimo.

Barthes, sustentou que o prazer da leitura conduz ao da escritura. E que o leitor não quer escrever como o autor que ele leu, mas sim ter aquele mesmo prazer que o escritor deve ter sentido. Ele citou Roger Laporte, para quem uma pura leitura que não suscite outra escritura é algo incompreensível. São opiniões bem discutíveis, pois generalizantes, mas que oferecem outras lentes de observação, entre as muitas que podem ser utilizadas para sondar o universo de leitores.

Sempre que recomendamos ao jovem escritor que leia, leia e leia, estamos pregando caminho que acreditamos ser mais acertado. Não há, porém, regra que estabeleça direta relação entre quantidades/qualidades de leitura e definição da capacidade narrativa ou poética. Acontece que é tão opressivo o senso comum, de que todo sujeito que não lê é um fracassado, que os autores que leram somente algumas obras, e poucas vezes, sentem-se constrangidos.

Óbvio que mesmo aquele autor que não pega em livros é também um leitor, desde que aceitemos que ele lê filmes, séries, peças, músicas, quadros, propagandas, roupas, falas, comidas etc. Essa leitura do mundo é requisito indispensável para que consiga articular ferramentas e desenvolver os conteúdos de sua escritura. Leitura genérica que é condição para tudo mais que recebemos, engendramos e movemos.

Essa falsa ética, que confere ao objeto livro uma chave obrigatória para o sucesso ou o engrandecimento do espírito humano, é reacionária, pois pretende homogeneizar, e acaba por marginalizar quem não se adéqua. Além disso, como se nega a ver algumas modalidades de leitura como vocacionadas, não permite que um professor possa dedicar atenção diferenciada quando acredita ter encontrar alguém que fará dos livros parte integrante do seu próprio ser. Esse tratamento díspar é tido frequentemente como preconceituoso e nocivo, pois todos os estudantes devem ser tratados “igualmente”. É o discurso da universalização que a tudo corrói.

Que os educadores – não só professores, mas todos os mediadores de informação e provocadores de experiências do conhecimento – possam lidar com os alunos de outra maneira, fora dessa linha de montagem. Até porque, nesta seara, recall nenhum consegue reparar os estragos. O que os gestores enxergam como eficiência, enfim, é o sucesso desse processo de pasteurização da cidadania, das artes, do prazer e da transcendência.

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