Tópicos | José Maria Mayrink

Católico, ex-seminarista, o mineiro José Maria Mayrink, de 82 anos, fez do jornalismo uma profissão de fé. A trajetória dele como repórter começou em 1961, quando deixou o seminário para dar aulas de latim e português e colaborar no semanário Jornal do Povo, da cidade de Ponte Nova, interior de Minas Gerais. No ano seguinte, em Belo Horizonte, trabalhou no jornal Correio de Minas e iniciou o curso de jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais, estudo que concluiu mais tarde na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo.

Desde então, a reportagem o acompanhou pela vida, recebeu os prêmios mais importantes da imprensa brasileira, como o Prêmio Esso (1971), e chegou ao extremo da profissão de um operário da informação: entrevistou um santo. É de Mayrink a reportagem publicada no Estadão, em 14 de outubro de 2018, que dá a notícia da canonização de dom Óscar Romero, arcebispo de San Salvador, na América Central, tornado santo pelo papa Francisco em cerimônia em Roma.

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Mayrink conhecia bem o novo santo. Havia entrevistado o arcebispo no dia 21 de março de 1980, uma sexta-feira, acompanhado por dois colegas, um americano, do Dallas Times Herald, e um alemão, da agência de notícias DPA.

No meio de um conflito político que derivou para uma matança no país, com 75 mil mortos em 13 anos de guerra civil, o repórter foi logo ao cerne da crise: "O senhor tem medo de morrer?", perguntou ao líder religioso salvadorenho. Três dias depois da entrevista, no dia 24, uma segunda-feira, 18h30, dom Óscar Arnulfo Romero Galdamez, então com 62 anos, foi assassinado com um tiro no peito quando celebrava uma missa, disparo feito por um pistoleiro a mando de um líder da extrema-direita local.

Na cobertura que fez da canonização do Santo Óscar Romero, em Roma, Mayrink recorda o episódio do crime em texto em primeira pessoa sob título "Eu entrevistei um santo", acompanhado da reprodução da página do Estadão com o relato da morte do "Mártir das Américas" - como o arcebispo foi nomeado na Igreja Católica por ter dado a vida em defesa dos direitos dos pobres e perseguidos.

Mayrink morreu na madrugada desta quarta-feira, 23, em decorrência de complicações de uma leucemia. O velório, reservado a poucas pessoas em função da pandemia de covid-19, está previsto para começar às 15h, no Cerimonial Pacaembu, na zona oeste de São Paulo. Em seguida, o corpo será cremado.

O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor de Oliveira Azevedo, classificou Mayrink como "um homem de virtudes" e uma "referência para muitas gerações de jornalistas, por seus textos sempre brilhantes, precisos, capazes de emocionar, sem recorrer a sensacionalismos".

Em nota, afirmou:

"De modo especial, Mayrink cobriu com brilhantismo os principais acontecimentos da Igreja Católica, sempre com independência, conquistando a admiração e o respeito do clero, de religiosos, de teólogos e de muitos evangelizadores leigos. Mineiro, foi seminarista, mas a sua vocação verdadeira era o jornalismo, que abraçou com amor e com irrenunciável fidelidade a princípios éticos. Guardo na memória o seu modo respeitoso e objetivo de entrevistar, sua sinceridade e clareza, capazes de conquistar a confiança de seus entrevistados. A sua trajetória profissional, sustentada por um humanismo singular, é selo de qualidade do jornalismo brasileiro. Sentiremos muito a sua ausência, a sociedade perde o olhar sensível de nosso já saudoso José Maria Mayrink, sempre traduzido em precisas e belas palavras. Rezo para que o bom Deus o acolha, dando-lhe o merecido descanso."

Família

Natural de Jequeri, na Zona da Mata, a 730 quilômetros de São Paulo, casado com Maria José Lembi Ferreira Mayrink, pai de Cristina, Mônica, Luciana e Juliana, Mayrink nasceu em julho de 1938, filho de médico e de mãe professora, como conta o livro Solidão, de 2014, pela Geração Editorial.

Com enorme tristeza, a família informou que a leucemia avançou muito nos últimos dias. "Lutou como um guerreiro. Descansa agora como um anjo. Por toda a sua generosidade, caráter e fé, temos a certeza de que hoje é dia de festa no céu!"

Aos 13 anos, entrou no seminário de Mariana, no interior de Minas, depois foi transferido para o santuário do Caraça, onde completou o colegial e para o qual, sempre que podia, retornava com a família para curtir o sossego da reserva natural e as visitas do lobo guará que costuma passear à noite pelo santuário.

Apreciador de uma boa prosa, o jovem Mayrink foi depois para Petrópolis (RJ), onde fez filosofia e também dois anos de teologia. Nessa época, 1960, escreveu seu primeiro livro, "Pastor e Vítima", usando o pseudônimo de Augusto Gomes, nome de família de sua mãe.

É autor de diversos livros:

- Solidão (EMW, 1983)

- Filhos do Divórcio (Paulinas, 1984),

- Anjos de Barro (EMW, 1986),

- 3 x 30 - Os Bastidores da Imprensa Brasileira (Best Seller, 1992), com Carmo Chagas e Luiz Adolfo Pinheiro

- Vida de Repórter (Geração Editorial, 2002)

- 1968 - Mordaça no Estadão (Editora do Grupo Estado, 2008)

Anjos de Barro, de 1986, com prefácio de Henfil, é dedicado ao pai, José Eduardo Mayrink. "O título é ótimo. Me deu até inveja do Mayrink, aquela inveja que todo criador profissional tem, quando um colega acerta o alvo. Mas não vou fazer um prefácio, este livro dispensa apresentações", escreveu Henfil (1944-1988) sobre a obra.

Em Solidão, de 1983, reeditado pela Geração Editorial em 2014, pelo qual tinha carinho especial, reuniu histórias publicadas numa série de reportagens feitas em 1982 para o Estadão sobre o personagens que viviam o dilema de uma vida solitária.

Na longa carreira, que teve os "50 anos de contribuição ao jornalismo brasileiro" homenageados em 2013 em solenidade no Estadão, Mayrink colecionou coberturas nacionais e internacionais de casos dramáticos desde os anos 70. Como mostra no livro Vida de Repórter, de abril de 2002, lançado durante a 17ª Bienal do Livro, um balanço de 40 anos de profissão, foi ele o encarregado de acompanhar no Chile, em 1973, o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende.

Mayrink cobriu o fato para o Jornal da Tarde, do Grupo Estado, com seu colega, Clóvis Rossi (1943-2019), à época escrevendo para o Estadão. Na viagem, reportou também o enterro do poeta Pablo Neruda, que terminou por ser a primeira grande manifestação pública chilena contra o ditador Augusto Pinochet.

No livro sobre a vida de Carlos Marighella, o jornalista Mário Magalhães conta que Mayrink foi o primeiro repórter a chegar à cena do assassinato, ocorrido na Alameda Casa Branca, em 1978, quando o militante revolucionário foi morto a tiros numa campana preparada por agentes da repressão brasileira. Sempre preocupado com o rigor da informação, divertia-se recordando da lição aprendida no dia no qual, ainda um novato na lida, escreveu um texto chamando Pelé de "Joaquim Arantes do Nascimento", memória que está no livro Vida de Repórter.

Referência entre jornalistas, particularmente os especializados em religião, cobriu encontros e reuniões dos principais líderes católicos, como aquele que elegeu Bento XVI, em 2005, e a cerimônia de beatificação do polonês Karol Wojtyla (João Paulo 2º), em 2011. Em dezembro de 2008, nos 40 anos da escuridão do AI-5, lançou o livro-reportagem Mordaça no Estadão, sobre a censura nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, no período de dezembro de 1968 a janeiro de 1975.

"Mayrink foi uma pessoa excepcional, uma referência de caráter e competência para todos jornalistas, de várias gerações. Nos sentimos privilegiados de ter tido ele como ele colega por tantos anos no Estadão", disse o diretor de jornalismo do Estadão, João Caminoto.

Durante a vida nas redações pelas quais passou, foi também editor. Mas gostava mesmo era do contato direto com as fontes de informação em campo. Testemunha profissional de seu tempo, sempre com o olho apurado da coleta de dados e informações para os leitores, defendia a máxima segundo a qual "lugar de repórter é na rua".

Habituado aos relatos, em suas reportagens e livros cultivava o cuidado com as pessoas - ultimamente pensava numa forma de trabalhar no apoio a refugiados -, não se esquecia de emoções vividas quando em visitas pessoais a lugares históricos de referência para sua fé católica. Recordava-se que ao chegar aos locais sagrados em Israel foi tomado de emoção especial. Sentimento que também o dominava ao lembrar do encontro com o trágico local da matança dos judeus no campo de concentração nazista de Auschwitz, cujo texto, publicado no Estado, escreveu de memória, sem consultar anotações.

Repórter com mais de 50 anos de trabalho temos poucos. Repórter que estudou teologia, latim e filosofia temos uns três ou quatro. Repórter com todas essas credenciais e que ainda cobriu o golpe militar no Chile, a eleição de dois papas e a beatificação de outros dois só existe um: José Maria Mayrink.

Detentor de um prêmio Esso de Jornalismo (entre outra dezena de prêmios), Mayrink, repórter especial do jornal O Estado de S.Paulo, está com 76 anos e é tido pelos colegas como uma enciclopédia em assuntos do Vaticano: sabe tudo, desde o estado do pulmão de Bergoglio a detalhes da resistência física de Wojtyla. É um jornalista que se orgulha de finalizar suas credenciais simplesmente assim: "Católico, casado com Maria José, pai de quatro filhas e avô de quatro netos".

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Autor de outros livros, entre eles Filhos do Divórcio e Anjos de Barro (esse último com um prefácio memorável de Henfil), Mayrink tem agora editado, pela Geração Editorial, um volume-reportagem fundado sobre uma coleção de textos que marcaram sua carreira: Solidão (192 págs, R$ 29.90). A série de reportagens sobre o tema foi produzida em dezembro de 1982, em locais que iam de bancos de praça a prisões e, segundo escreve a escritora C.L. Alves na orelha do livro, permanece "assustadoramente atual".

Os personagens são anônimos ou misteriosos, mas todos exalam um sentimento de exaustão social. "Dona Wanda tinha posição e riqueza na Polônia, antes do regime comunista. No Brasil desde 1953, perdeu tudo: marido, fazenda, bens. Agora, aos 75 anos de idade, vive numa pequena comunidade de pessoas idosas que ninguém chamaria de asilo. Ela preferiu viver ali para não enfrentar os problemas de uma casa grande, cujas escadas suas tonturas não suportam mais."

Há muitos personagens incidentais, cujos destinos apenas cruzam o ofício do autor. Neuza, travesti que dança nas boates de São Paulo, é um deles. "Na verdade, tudo nele também é falso - o nome, a peruca, o vestido de mulher, o sorriso nos lábios e até a voz, que é uma gravação de Ângela Maria."

O arraigado catolicismo do jornalista não o impele a fazer análises morais de seus entrevistados, mas quando o faz, é com delicadeza, cavalheirismo. O paralelo que traça entre a vida na clausura de um convento e a dos 1,2 mil condenados na Penitenciária do Estado, por exemplo, é um caso de ternura, quase compaixão. "A solidão que pesa e sufoca na prisão do Carandiru é alegria e libertação no claustro da avenida Jabaquara. Mas, imposta como castigo ou abraçada livremente como opção de vida, ela é uma sensação que muitas vezes dói, como acontece com os padres: solitários por vocação, eles chegam à velhice sem nenhuma família e frequentemente sem amigos".

E Mayrink diz que não teve medo da fronteira mais pedregosa para quem trata de um tema como esse: a pieguice. "Tratei de tudo simplesmente ouvindo as pessoas. Na verdade, eu não estou ali como protagonista da solidão. Quando escrevi sobre o divórcio, me perguntaram se eu era divorciado. Quando escrevi Anjos de Barro, me perguntaram se eu era deficiente. Como se o repórter tivesse de fazer parte das histórias que conta, ser um personagem."

Por sinal, um daqueles personagens das histórias de Mayrink, um senhor cego com hanseníase, morreu há um mês, aos 87 anos. "É por isso que a solidão aparece de muitas maneiras: uma manifestação de dor, de tristeza, mas também uma coisa querida, buscada, gostosa. E que se mede de muitas maneiras diferentes também."

Ele também não tenta evitar coisas que hoje poderiam soar politicamente incorretas - ou incômodas para uma parcela de seus leitores. "Os cegos sentem solidão, e é no meio das pessoas que enxergam. Em outras palavras, ‘cego só vive bem com outros cegos’, como diz o carioca Antônio Passos Soares, 68 anos de idade, que não vê desde criança." Já Carol Soares escreveu carta ao jornal declarando sua homossexualidade. "O meu homossexualismo não é uma opção. E nem poderia ser. É apenas a minha dimensão do amor", escreveu.

Trinta anos depois da reportagem que virou livro, o autor examina sua própria saga. E vê que nada mudou muito - escorando-se na estatística, descobre estarrecido que meio milhão de pessoas vivem sozinhas na grande metrópole. "Os olhares perdidos nos finais de feriado são os mesmos da praça da Sé em 1980, senão mais tristes; os solitários do passado, que mandavam cartas para as revistas e buscavam agências de relacionamento para encontrar companhia, hoje se amontoam nas redes sociais, onde todo mundo está, mas ao mesmo tempo não se vê ninguém de verdade", escreve C.L. Alves. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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