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Toda opinião está ancorada em alguma concepção sobre a “natureza” humana. E uma grande questão antropológica da ética ocidental tem sido a seguinte: a índole original do ser humano é boa e a sociedade o perverte ou é má e a sociedade o melhora? Para exemplificar esse debate, já na era moderna, temos o confronto das antropologias de Rousseau e de Hobbes, respectivamente. Minha tendência é acreditar mais em instituições do que em seres humanos, ou seja, somente instituições sólidas podem frear a ânsia humana pelo poder. Mas instituições são criadas, moldadas e dirigidas por nós mesmos: assim como nós, elas não são nada, mudam a todo momento.

O brasileiro parece estar em mais um momento de baixa estima, mas nós não temos uma “antropologia brasileira”, somos humanos; ocorre que vicissitudes históricas trouxeram nosso país a um total desprezo pelas instituições democráticas. Uma vista perfunctória mostra que constante é unicamente o casuísmo da força militar, uma instituição historicamente envergonhada de ter sido sempre desviada de seu papel institucional. Que paradoxo! Releiam.

Em 1822 começou o primeiro rompimento institucional, a Proclamação da Independência por um príncipe português. Em 1889, sob a suposta liderança do Marechal Deodoro da Fonseca, o imperador D. Pedro II foi deposto e banido do país. Em 1891, com a renúncia de Deodoro, a Constituição mandava que fossem realizadas novas eleições, mas o vice Floriano Peixoto apossou-se do cargo e governou até 1894. Em 1930 Getúlio Vargas foi derrotado na eleição para presidente por Washington Luís, que foi deposto para Getúlio assumir como ditador, prometendo eleições. Em 1937 o mesmo Getúlio suspendeu as eleições que já havia marcado e deu novo golpe, o “Estado Novo” (eu, particularmente, acho impressionante como tantas importantes cidades brasileiras tenham monumentos, avenidas e instituições homenageando esse sujeito). Em 1955 o Presidente eleito Café Filho teve um enfarte e assumiu Carlos Luz, o qual, usando prerrogativas constitucionais, demitiu o Ministro da Guerra, general Henrique Lott, e por isso foi em poucas horas deposto. O Congresso Nacional curvou-se mais uma vez a esse arbítrio e colocou na Presidência da República o presidente do Senado, Nereu Ramos. Aí Café Filho, já recuperado do enfarte, tentou reassumir, mas sofreu impeachment pelo Congresso, pressionado pelos militares. Em 1961 foram eleitos presidente e vice Jânio Quadros e João Goulart, de partidos e ideologias rivais. Jânio jogou o blefe da renúncia, que os militares aceitaram, sem permitir que o vice assumisse. O Congresso subserviente aprovou uma emenda parlamentarista para reduzir os poderes presidenciais e Goulart assumiu. Mas logo foi deposto por mais um general ou marechal, Humberto Castello Branco, que assumiu a Presidência e se comprometeu a convocar eleições. Em 1968 Costa e Silva fechou o Congresso e deu um golpe dentro do golpe, porém teve um acidente vascular cerebral em 1969 e o vice Pedro Aleixo foi impedido de assumir pela junta dos três...

Nesse fracasso brasileiro, então, pensei, as instituições democráticas tradicionais jamais tiveram papel importante. Ora, se o direito brasileiro nunca se baseou nelas, e toda sociedade tem seu direito (ubi societas ibi jus), deve haver procedimentos jurídicos específicos, fora da legitimidade democrática. Daí surgiu minha tese, publicada já em 1985 e desde então infelizmente confirmada, de que a abundância desses procedimentos no Brasil teria alguma função social importante. Ela era simples: se o sistema político e jurídico brasileiro não se legitima pelo procedimento democrático, se o direito não regula a política, ambos são regulados por procedimentos “alternativos”. Aí tentei diferençar essas diversas estratégias, listá-las: o jeitinho; as exceções às regras (casuísmos); o nepotismo, que já está na carta de Caminha; o subsistema das boas relações, que Luhmann chama Kontaktsysteme; o clientelismo; as regras processuais de procrastinação, sempre protegendo o ilícito; a ineficácia planejada da lei; imunidades para políticos criminosos comuns etc. Claro que a simples legalização de regras não é o bastante para transformá-las em procedimentos democráticos, pois países periféricos, técnica e eticamente deficientes como o Brasil, constroem uma estrutura jurídica oficial que apenas estrategicamente se apresenta como democrática.

Desses procedimentos alternativos, lembram-se meus colegas dos anos 1990 no Seminário de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco, o mais importante era a corrupção. Ela não seria propriamente uma disfunção, dizia eu, mas sim um mecanismo para assegurar uma legitimação que não poderia ser garantida pelas instituições do procedimento democraticamente organizado. Era e é um mecanismo de azeitar uma máquina estatal incompetente e unir as elites subdesenvolvidas em torno de um sistema prebendário e predatório de distribuição de dinheiro, vantagens e poder em geral. “Torcer e ajeitar”, para falar com Tobias Barreto.

Por isso não acredito que a política é assim ou assado, esta é a diferença entre o cético e o pessimista. O pessimista, assim como o otimista, acredita que o mundo é desta ou daquela maneira, má ou boa (em sua opinião). Mais ainda numa democracia, podemos escolher melhor nossos governantes do que temos feito até hoje, filtrar melhor nossas opções, mudar de rumo. Não há estatísticas precisas sobre nossa doença congênita, mas, suponhamos, os brasileiros medíocres e corruptos, que furam filas pelo acostamento, por exemplo, são 30 %. Se os políticos corruptos são 90 %, há algo errado nos filtros democráticos. Basta acompanhar as atitudes dos políticos que escolhemos: como votam, como se aliam, quais são os escravos dos empresários que os financiam. Quem sabe, sonho eu, vedar a política como profissão, transformá-la num fardo. Mas isso pressupõe educação, acabar com as necessidades básicas que geram o clientelismo. Na miséria, do corpo ou do espírito, não pode haver democracia.

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