Não me recordo qual emissora, nem o ano. Em um desses programas policiais, sujeito preso em flagrante, com ficha corrida e curiosa, explicou ao repórter: “Só mato no Carnaval, que é pra alma subir feliz”. Escritor com falta de ideias pode topar com personagens, assim, passeando pelos canais de TV, indo à padaria, pagando contas... Se for época de Momo, então, ele junta sinopses para doze romances e duzentos contos.
No Recife, aonde músicos e foliões espocam em todo lugar, qualquer hora, e de todo jeito, tem história de Carnaval que chega pronta, mas existem também ganchos esquisitos, para se pensar bem antes de tascar no papel. Uma terça-feira pré, por exemplo, vi trio elétrico subindo a Rosa e Silva, onze da noite, avenida molhada de chuva. E animado! Cantor parecia arrastar Galo da Madrugada. O bloco, no entanto, puxava somente ciclistas, cinquenta. Sem fantasias, sem cantos. Para os que suspeitarem ser efeito de drogas, informo que tomava apenas sorvete diet, de abacaxi com hortelã (o que, realmente, não deve ser muito confiável).
Se você permanece na cidade e tenta fugir da folia, logo descobre que toda tentativa será em vão. Mas junta outro bocado de coisas para escrever. Fui caminhar na Praça da Jaqueira, por exemplo, e lá estava um senhor vestido de He-Man, correndo muito, e muito sério. No shopping, em filas gigantescas de cinema, vários casais vão bem, até que passa uma só moça fantasiada de caboclinho. Pronto, marmanjos ficam decalcando a menina, aí começa uma briguinha depois da outra. Caso tente clínica odontológica 24 horas, dentista vem tão sóbrio que termina obturando dente errado.
Roberto da Matta, sociólogo e estudioso do Carnaval, escreveu crônica recente, onde resume a motivação das pesquisas: “Não tinha dúvidas do elo entre nossas contradições mais expressivas, que era vocalizado no Carnaval. O governo, nega, mas o carnaval permite; a moralidade diz não, o carnaval, sim; na vida diária falamos e ouvimos discursos, no Carnaval cantamos sem cantores; o real obriga o uso do uniforme e do avental, o Carnaval faculta a máscara que engendra duas caras e sujeitos; na vida real somos todos visíveis, com a fantasia criamos uma invisibilidade; nos trancamos em casa, mas no Carnaval nos escondemos na rua”.
Não é difícil constatar as tais contradições. Na semana pré (ou seja, antes dos feriados oficiais), várias troças ridículas – dessas com vinte vendedores de bebida, dez seguranças e cinco foliões – atrapalharam o trânsito recifense, espalharam-se folgadas em algumas avenidas importantes da cidade. E cadê polícia? Mas vá lá uma dúzia de estudantes fechar qualquer viela da cidade, em protesto por aumento das passagens de ônibus! Pau quebra, canta e vira rojão.
Hoje, tenho entrevista marcada com o escritor Samarone Lima, conhecido por levar sempre no bolso um bloquinho, onde anotar possíveis temas para suas crônicas e reportagens. Pergunta inicial é óbvia: quantas personagens pescou até a quarta-feira de cinzas?
Ano novo dos escritores também começa depois do Carnaval. Até porque negócio de escrever durante Natal e réveillon termina em porcaria. Cidadão fica emotivo, saudoso, entope-se de farofa, arroz e peru, chora, resmunga, faz poesia cafona ou algum conto safadinho que nunca terminará de ser revisado.
Eu, por exemplo, principiei 2012 defendendo Chico Buarque e reclamando dessa moda anos 90 de falar que “Recifede”, que “a gente vive no mangue”, que “tem parabólica enterrada na lama”, e mais bocado de clichê manguebit. Ou seja, estava afim de contrariar, comprar briga. Houvesse esperado para depois do Carnaval, seria alguma conversa fofa, bem divertida.
Ah, antes que me esqueça, aquele bandido perigoso, que só mata no Reisado de Momo, terminou a matéria da TV avisando que já mandou gente pro céu durante São João. “Foi que no Carnaval eu tava no love, diabo só soprou no meio do ano, cobrando juros”. Caiu por causa disso, fugiu da rotina, e dito popular ensina: lantejoula guardada não cola, purpurina vencida não brilha.