Não vos aconselho o trabalho, mas a luta.
Não vos aconselho a paz, mas a vitória.
Seja o vosso trabalho uma luta!
Seja a vossa paz uma vitória!”
Assim Falou Zaratustra – Friedrich Nietzsche
Uma das principais discussões que rondam as cátedras dos discentes do curso de direito é justamente saber qual caminho cada um deve seguir. Essa discussão sempre foi fomentada pela eterna dialética existente entre a diferenciação do exercício de um cargo público e o da advocacia. Evidentemente que essa discussão não comporta vencedores e vencidos, eis que cada um tem convicções pessoais e profissionais que fundamentam qualquer opção escolhida.
Dentro desse cenário, é importante observar alguns aspectos que demarcam a posição do advogado perante juízos e tribunais, o que pode ser objeto de importantes reflexões pessoais. Esses aspectos são facilmente observados a partir da escolha da própria profissão, o que terá suma importante na atuação forense. Trata-se do destino profissional que foi escolhido em face dos seus verdadeiros objetivos ou vocações.
Não se quer dizer que uma escolha errada seja o fator preponderante para qualificar ou desqualificar qualquer profissional, mas servirá apenas de parâmetro na atuação do indivíduo perante o foro, ou seja, um parâmetro para o temperamento e disposição do profissional em face de sua atuação em juízo ou fora dele. Para ilustrar essa idiossincrasia e como esta terá reflexo na vida do profissional do direito, é necessário recorrer a uma analogia muito singela, porém bastante contundente.
Suponha-se tratar de um juiz e um advogado atuando em suas respectivas carreiras. A carreira profissional pode ser comparada a uma longa estrada, cheia de percalços, curvas sinuosas, buracos e todas as intempéries da vida. O juiz percorreria essa estrada da maneira mais branda possível, de acordo com as suas possibilidades, em um automóvel de luxo. Seria como se entrasse em seu carro e seguisse rumo à sua vocação ou seus objetivos pessoais.
Andar nesse automóvel seria muito confortante, haja vista que estaria em seu favor o ar-condicionado de última geração, a direção hidráulica, vidros e retrovisores elétricos, teto-solar, moderno aparelho de som e todo aparato tecnológico referente a um bom automóvel. Passar por cima de um buraco nessa imensa estrada profissional seria apenas um pequeno esforço para quem tem um bom carro nas mãos. A atitude de seguir em frente, passando pelas curvas da insegurança previdenciária, dos dias fechados de uma eventual incerteza contratual e das noites obscuras da profissão, é um beneplácito de quem optar por seu cômodo assento em direção aos seus objetivos.
Vale ressaltar que não cabe criticar o caminho jurídico escolhido pelo indivíduo. A escolha de estar guiando este automóvel é tão louvável quanto difícil, pois exercer a magistratura necessita, sobretudo, de muita paciência e constância diante de todos os fatos que são opostos diariamente em juízo.
Já o advogado percorreria este caminho profissional pilotando uma motocicleta, com todos os incidentes que possam decorrer desta escolha. Assim, a carreira profissional do advogado estaria sujeita à mesma estrada em que o juiz passou com seu automóvel, mas os percalços seriam totalmente potencializados. Os buracos encontrados na estrada profissional de um advogado seriam muito mais perigosos, fazendo-o ir ao chão se não forem bem contornados. Uma pedra poderia ser um obstáculo demasiadamente temerário e qualquer chuva seria inevitável.
A analogia assenta-se nas diferenças da profissão da advocacia e da magistratura como forma de se chegar ao fim colimado pela justiça. A escolha da profissão incide na ideia do conhecimento de todos os percalços que se poderá encontrar em cada área jurídica escolhida, bem como as respectivas prerrogativas e benefícios. As profissões, no âmbito jurídico, têm suas diferenças bem definidas, a começar pelo cunho institucional e chegando, por fim, na função social de cada uma. A analogia supracitada visa fazer um paralelo entre as diferenças das profissões do juiz e do advogado, sendo uma forma de demarcar a posição de cada um no foro e estabelecer a sua respectiva função social.
Uma melhor exemplificação do que é estar guiando um automóvel (o juiz) e pilotando uma motocicleta (o advogado) é dada pelo grande jurista Piero Calamandrei, quando explicita a função de cada qual no foro.
“Quando a corte entra, todo sussurro se cala. Seu trabalho (o juiz) se desenrola longe dos tumultos, sem imprevistos e sem precipitações; você ignora a ansiedade do improviso, as surpresas de última hora; não precisa quebrar a cabeça para encontrar argumentos, porque deve apenas escolher entre os que foram encontrados por nós, advogados, que realizamos para você o duro trabalho de escavação; e, para melhor meditar sobre a sua escolha, tem o dever de sentar-se em sua cômoda poltrona, enquanto os outros homens sentam-se para descansar, para você, o período de maior trabalho.” (CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pág. 389).
O juiz, tal como qualquer outro servidor público, tem a sua função estritamente atrelada aos dogmas estatais, com suas prerrogativas e benefícios instituídos previamente. Seria como guiar o automóvel acima aduzido, uns com o luxo e outros sem, mas com a mesma perspectiva de segurança e, sobretudo, com a repetição de atos já estabelecidos, como quem fica indiferente se o dia chove ou faz sol. Guiar este automóvel estatal significaria seguir na mesma linha de pensamento e de procedimentos diários, a exemplo de quem faz as mesmas sentenças, despachos e demais atos correlatos todos os dias.
Para muitas pessoas, este pode ser um objetivo de vida, um ideal que se perfaz ao simplesmente guiar um automóvel nas mesmas ocasiões. A segurança oferecida pelo automóvel estatal pode questionar os motivos pelos quais tantos “insanos” profissionais escolhem a “insensatez” de pilotar a motocicleta da advocacia, tal como o Easy Rider (Sem Destino), um clássico filme de 1969.
Pilotar a motocicleta da advocacia na estrada profissional da vida não é nada fácil, principalmente se considerarmos a sensação de insegurança da motocicleta em face do caminho a seguir. O advogado, enquanto piloto de motocicleta, sempre estará à mercê de chuvas torrenciais ou dilúvios homéricos, ficando sempre no olho do furacão. Ou seja, se um contrato de prestação de serviços advocatícios estiver à mercê de uma eventual condição e se esta não se perfizer por razões alheias às vontades do advogado, este terá o seu reconhecimento e esforço execrados, refletindo em causas futuras. Enquanto isso, o juiz guiará o seu automóvel, longe de qualquer eventual chuva.
Porém, a sensação de insegurança da motocicleta advocatícia é contrastada com a sensação de certa liberdade proporcionada. Nada mais reconfortante do que imaginar o vento sacudindo os cabelos e as roupas. A chuva também poderia ser vista não tanto como uma intempérie perversa, mas como uma benesse para esfriar os dias quentes, como quem jamais esperaria sair vitorioso em um difícil pleito.
A liberdade da motocicleta advocatícia faz com que o advogado não se atrele somente a um caminho diariamente, o que não quer dizer que fuja a normas e convenções sociais. É a liberdade de não ter que se atrelar a uma só linha de pensamento, com a possibilidade de criar novos caminhos jurisprudenciais. É a liberdade de escolher procedimentos adequados para cada fato, a liberdade de fazer chover a cântaros inesperados de contratos profissionais, a liberdade de abdicar um pleito temerário diante dos buracos encontrados no caminho e a liberdade de arriscar nas inovações.
O advogado, enquanto piloto desta motocicleta, escolhe o melhor caminho a seguir, sempre com prudência, em razão de estar mais exposto aos percalços da vereda profissional. São teses e antíteses da advocacia, a liberdade em contraste com a insegurança, o que torna perene a consciência do desiderato da profissão.
Cada carreira jurídica escolhida tem o seu louvável préstimo para a sociedade, sendo a eterna busca da justiça o maior objetivo perseguido. Em relação à analogia supra referida, é perfeitamente compreensível e louvável que o juiz, ou qualquer outro servidor público, guie o seu respectivo automóvel, bem como o advogado possa pilotar a sua motocicleta. A diferença na forma em que se caminha na estrada jurídica é equacionada para um único fim, qual seja, a justiça e, consequentemente, a paz social.
Assim, não se espera que o juiz, o promotor, ou outro servidor público, sejam ligados a qualquer vínculo humano, de simpatia, de amizade ou de aproximação ao povo. Parafraseando Calamandrei, quando se fala de aproximar a justiça do povo, não se pretende, pois, fazer os juízes ou promotores descerem de suas cadeiras e mandá-los passear entre a gente, como peregrinos anunciadores do direito. Essa é a função social reservada essencialmente aos advogados.“O povo pode não conhecer seu juiz, mas deve conhecer seu advogado e ter fé nele, como num amigo livremente escolhido.” (CALAMANDREI, Piero. Op. Cit. pág. XLVI.)
Não porque se deva situar advogado como um profissional privilegiado, senão pelo que signifique esse tratamento como fator de êxito da sua missão peculiar – aproximar a justiça do povo. O advogado não é um burocrata imposto aos réus, o que impossibilitaria a compreensão humana que diz respeito à livre eleição das amizades e a confiança do povo na justiça do Estado. O advogado é escolhido livremente, como quem escolhe um amigo para ser irmão e confessor, utilizando-se da doutrina e de sua eloquência para confortar no acompanhamento da dor. Essa é a função social do advogado enquanto consciente da repercussão profissional de sua carreira.
A escolha pela advocacia está estigmatizada na consciência dos deveres, prerrogativas e percalços que cercam a profissão, sendo a obediência a esta consciência a sua função social. Desta feita, quando o advogado assume um pleito, terá obrigatoriamente que assumir a consciência de todas as vicissitudes que rodeiam a profissão, ou seja, passa a tomar consciência de que está pilotando a motocicleta e todos os incidentes que possam decorrer desta escolha.
A escolha da advocacia é a escolha da prudência e da liberdade de pilotar uma motocicleta, como na analogia alhures referida, sendo a consciência desta escolha, ou seja, a consciência da função social da profissão, que será o recurso moral para coibir ou prevenir possíveis desmandos na profissão, aproximar a justiça do povo e, consequentemente, trazer a paz social.
Enfim, a consciência da função social da advocacia será a panacéia ou a cura para todos os males da profissão. Mas, independente da função social da advocacia, cada ente do judiciário deve ter em vista a sua própria função social, para que o destino dos cidadãos não seja obscuro e a Justiça tenha momentos de glória, como dizia o grande jurista Evandro Lins e Silva:
“A Justiça tem seus momentos grandiosos e de glória. E isso depende muito dos homens que a compõem: advogados capazes, promotores com sentido exato dos seus deveres e juízes com a compreensão de que os réus são seres humanos e podem ser inocentes ou vítimas de armadilhas que o destino tece e prepara do modo mais imprevisto e desgraçado.” (LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. FGV, 1997, pág. 107)
O efeito extrafiscal da norma tributária utiliza-se do instrumento financeiro para a provocação de certos resultados econômico-sociais, como reprimir a inflação, evitar o desemprego, restaurar a prosperidade, proteger a indústria nacional, promover o desenvolvimento econômico, nivelar as fortunas ou corrigir a iniquidade na distribuição da renda nacional e, sobretudo, promover o acesso à educação superior, além de outros objetivos igualmente importantes.
Nesse sentido, a extrafiscalidade da norma tributária fornece a explicação ao fato de que, praticamente, todos os problemas que convergem para a área do tributo podem ser estudados do o ângulo oposto: o da isenção e da imunidade. Tal possibilidade apresenta certa simetria com o poder de tributar.
Na doutrina pátria, sobejam conceitos de imunidade e principalmente de isenção, que variam conforme o conceito unitário ou dualista de tributo adotado. A imunidade é tida como limitação ao poder de tributar ou como norma de estrutura, que subordina a feitura de normas de comportamento. A isenção, como dispensa do pagamento de tributo devido, norma de estrutura e norma de não-incidência é uma forma excludente da obrigação.
Para Calmon Navarro Coêlho, a isenção, tal qual a imunidade, é “simples previsão legislativa de intributabilidade”1, é regra que atua juntamente com as previsões impositivas, no aspecto material da norma tributária, definindo sua dimensão. O autor propõe que a hipótese da norma tributária seja composta por “fatos tributáveis” (segundo a regra impositiva), subtraídos os fatos isentos e imunes.
Sacha Calmon Navarro Coêlho, em prestígio à técnica jurídica, distingue a isenção e a imunidade dos demais institutos exoneratórios, portanto aquelas atuam no campo da hipótese da norma tributária, enquanto os estes atuam na consequência da norma. A distinção essencial entre a imunidade e a isenção para o jurista mineiro é o status constitucional da imunidade, inexistente na isenção. Destaca-se também que a imunidade é, inequivocamente, instituto que delimita a competência tributária impositiva.
Com relação ao fundamento ontológico, isenções e imunidades também apresentam aspectos em comum. Podem existir, segundo Marcus Gouvêa2:
1) como instrumento em favor da capacidade contributiva, para adequar a previsão genérica e abstrata da norma impositiva;
2) ou, como instrumento de política pública, independente da capacidade econômica dos contribuintes. No primeiro caso, tem-se a imunidade recíproca e aquela que beneficia particulares que exercem munus público, como a dirigida a instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos e a isenção da primeira faixa de renda do IRPF (Imposto de Renda Pessoa Física), que protege o chamado mínimo existencial.
No segundo grupo, encontra-se a imunidade dos livros, revistas e periódicos, que, não obstante possam representar mercado promissor constituem-se veículo de cultura que o Estado pretende preservar, assim como isenções a determinados produtos, cujo mercado incipiente o Estado quer estimular.
As isenções podem ser classificadas em condicionais e incondicionais, temporárias e por prazo indeterminado, gerais e individuais, regionais ou irrestritas. A isenção incondicional é aquela que independe da comprovação do preenchimento de qualquer requisito pelo contribuinte, a ser avaliada pelo fisco. É o caso da isenção da primeira faixa de renda do imposto de renda da pessoa física. A isenção condicional é que depende do preenchimento de algum requisito pelo contribuinte, seja a realização de uma conduta, seja uma situação jurídica, seja uma situação fática. Necessariamente, as isenções incondicionadas serão gerais, alcançando todos os contribuintes ou fatos, conforme seja o benefício subjetivo ou objetivo. As isenções condicionais serão individuais e dependerão da análise de cada caso pela Administração Tributária.
A isenção pode, também, ser temporária, com prazo preestabelecido, mas pode ser fixada por tempo indeterminado, facultando-se sua revogação por lei posterior ou sua extinção por ato administrativo, se o beneficiário deixou de cumprir os requisitos para sua concessão.
O Código Tributário Nacional (CTN), em seu art. 176, parágrafo único, dispõe que “a isenção pode ser restrita a determinada região do território da entidade tributante, em função de condições a ela peculiares.” Em regra, restringe-se aos impostos, conforme disposição do art. 177 também do CTN.
As imunidades aplicam-se, em regra, aos impostos. Algumas são gerais, sem a imposição de condições. Por exemplo, as dos partidos políticos, que têm efeito extrafiscal ligado à organização política nacional. Outras, como as das instituições de educação sem fins lucrativos, que prestigiam a finalidade extrafiscal de incentivo à educação, são reconhecidas apenas àqueles que comprovem o preenchimento dos requisitos legais (art. 14 do CTN).
Também há imunidades relativas apenas a contribuições para a seguridade social, que prestigiam as entidades beneficentes de assistência social. Como sói ocorrer, a Constituição da República reconhece a intributabilidade de pessoa privada que se dedica a prestar assistência social gratuita, que é dever do próprio Estado. Assim, a norma contém efeito extrafiscal de estímulo à atividade assistencial.
De acordo com a classificação, imunidades e isenções apresentam efeitos extrafiscais distintos. O efeito de indução do comportamento mediante vantagem fiscal será específico a determinados contribuintes que preenchem os requisitos legais, se a isenção for individual. Será geral nas isenções gerais.
É importante dizer que mesmo a isenção geral pode vir dotada de carga extrafiscal. Por exemplo, se direcionada, objetivamente, à produção do álcool combustível, estimula seu consumo em prejuízo do consumo de gasolina. Se direcionada, subjetivamente, aos fabricantes de malhas têxteis, favorece o aparecimento de indústrias desse tipo de vestuário em detrimento dos curtumes.
O efeito extrafiscal de isenções pode ser regionalizado em favor do desenvolvimento de certas partes do país ou do estado, conforme o benefício seja federal ou estadual. Porém, pode ser irrestrito territorialmente, quando os efeitos extrafiscais fazem-se sentir em todo o território do ente federado.
Pode-se inferir que de uma forma geral a justificativa doutrinária para a existência das normas imunizantes e isencionais está ligada a conceitos de natureza política e social de determinada sociedade em dado período histórico, com a finalidade de garantir as liberdades individuais, via exoneração de tributos, para não embaraçar a existência de direitos socialmente relevantes. Assim, as normas de impedimento da competência tributária voltam-se para a liberdade de expressão, o acesso à cultura e à liberdade religiosa. Além disso, voltam-se às atividades desempenhadas pelas instituições de educação e assistência social sem lucratividade, às entidades sindicais de trabalhadores, partidos políticos e suas fundações.
Para justificar a necessária existência das normas imunizantes e isencionais, Regina Helena Costa invoca a teoria da densificação das normas constitucionais concebida por Canotilho, entendendo que as normas imunizantes densificam princípios estruturantes no sentido jurídico-constitucional e político-constitucional. Portanto:
(...) os princípios federativo e da autonomia municipal são densificados pela imunidade recíproca; que o princípio da isonomia é densificado pela imunidade conferida às instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos; que o princípio do pluralismo partidário é densificado pela imunidade outorgada aos partidos políticos; que a liberdade de expressão e o livre acesso à cultura são densificados pela imunidade referente aos livros; que a liberdade de culto é densificada pela imunidade dos templos – e assim por diante. 3
Pode-se entender, portanto, que as imunidades e isenções são meios de realização de extrafiscalidade no âmbito constitucional. Nesse sentido o magistério de Geraldo Ataliba assenta que a extrafiscalidade “(...) consiste no uso de instrumentos tributários para obtenção de finalidades não-arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de outros valores constitucionalmente consagrados.”4Então, pode-se afirmar que os princípios mais valorosos inseridos na Constituição, tais como a segurança jurídica, a justiça e o bem comum, relacionados aos direitos fundamentais, estão presentes essencialmente na imunidade e isenção tributária, cuja natureza é extrafiscal.
As imunidades tributárias são normas de proteção de outros direitos fundamentais e constituem, ao mesmo tempo, direitos e garantias de outros direitos e firmam-se com o teor do art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos5: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
De uma forma geral, verifica-se que isenções e imunidades atuam estimulando comportamentos mediante a redução da carga tributária, razão pela qual constata-se, que os institutos apresentam potencialidade extrafiscal marcante.
Por fim, pode-se concluir que a imunidade e isenção fiscal são temas muito abrangentes, de forma a englobar uma série de outros conteúdos morais, sociais, etc., os quais fazem da mesma uma temática, além de importante, por deveras motivante. Motivação expressa de modo mais agradável na eficiente distinção feita por meio de uma simples parábola que assim distingue os dois institutos: A isenção fiscal é como se o contribuinte segurasse um guarda-chuva no meio de uma tempestade. O guarda-chuva seria a isenção que asseguraria ao contribuinte ficar amparado da chuva, que seria a carga tributária. No caso da imunidade, não haveria chuva!
Referência Bibliográfica
1. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 153.
2. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 211.
3. COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias. São Paulo: Dialética, 2001, p. 59.
4. ATALIBA, Geraldo. IPTU e progressividade. RDP 93/223.
5. COSTA, Regina Helena. Idem. p. 85.
A relação de consumo, como objeto da tutela do direito do consumidor, é reconhecida como de aplicabilidade nos mais diversos setores da economia no Estado brasileiro. Dentre esses setores está a educação, objeto da prestação de um serviço público delegado por meio de autorização pelo poder público. A relação de consumo na prestação de serviços educacionais é facilmente vislumbrada, sobretudo quando ocorre violação ao direito do consumidor. O problema, no entanto, emerge quando o direito do consumidor desvirtua a vertente acadêmico-pedagógica existente no ato de ensinar, a qual é simplesmente ignorada na ocasião de vários julgamentos em processos judiciais.
Nesse sentido, pode-se constatar a existência de problemas que contrapõem o direito do consumidor e a própria pedagogia do ensino, a exemplo dos seguintes questionamentos: até que ponto a reprovação de um aluno por insuficiência acadêmica estaria atrelada ao vício na prestação do serviço? Até que ponto o pré-requisito de determinada disciplina pode violar o direito do consumidor? O aluno que é consumidor da prestação de serviços educacionais paga pela carga horária ministrada ou pelo conteúdo efetivamente recebido? O aluno paga pelo conhecimento de um curso ou pelo crédito da oferta deste?
Evidentemente que várias respostas aos questionamentos acima se imbricam, sobretudo porque é impossível falar, por exemplo, em carga horária sem o seu conteúdo e vice-versa. No entanto, vários desses questionamentos não podem ser respondidos apenas sob o viés do direito do consumidor, sob pena de a pedagogia do ato de ensinar seja alçada à mera análise da relação de consumo.
Nesse cenário, diante da vasta jurisprudência setorial, não é raro observar várias alegações em processos judiciais que questionam a liberdade de ensinar, a liberdade de aprender, de pesquisar, divulgar a cultura, o pensamento e o próprio saber. Essa liberdade não é aleatória, assim como imaginaria o senso comum, mas decorre da própria natureza principiológica que deu ensejo à Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB), Lei n.° 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Com base na premissa acima, pode-se constatar que muitos cursos de ensino superior perpassaram por uma longa construção pedagógico-acadêmica para a sua concepção, ensejando com que o Conselho Nacional de Educação, dentro de suas atribuições institucionais, definisse as chamadas diretrizes curriculares. É justamente dentro dessas diretrizes que se imagina uma boa formação para o acadêmico de cada curso superior.
Assim, por exemplo, não se espera que um aluno de medicina seja um excelente profissional se o mesmo não tiver passado pelo crivo de estágios curriculares dentro de criteriosos internatos, além de outros vários requisitos não menos importantes. Da mesma forma, não se espera com que um aluno do curso de engenharia tenha o mínimo de qualidade se ficar adstrito tão somente ao conteúdo de sala de aula, motivo pelo qual as diretrizes curriculares do referido curso exige o estágio prático de campo, oportunidade em que será testado em suas expertises (engenharia civil, elétrica, mecânica, agrícola, de pesca, etc.).
Sendo assim, a prestação de serviços no âmbito do ensino superior deve levar em consideração a construção pedagógico-acadêmica que se exige para a formação do profissional, com respeito aos princípios da liberdade de ensinar e aprender, assim como adjetiva a LDB. É impossível conceber com que um aluno de engenharia tenha uma formação completa apenas com o conteúdo ministrado em sala de aula, devendo que Instituição de Educação Superior (IES) ser instada em sua liberdade de ensinar e do discente em sua liberdade de aprender.
Embora a concepção acima seja bastante evidente, a prática judicial demonstra que a pedagogia do ensino muitas vezes se choca com os requisitos da mera relação de consumo, fazendo com que o judiciário tenha que fazer uma análise muito mais profícua acerca da prestação de serviços educacionais.
Há casos, por exemplo, em que uma Instituição de Ensino Superior foi condenada à reparação pelos danos causados a um discente em virtude de seu insucesso na aprovação do internato em medicina, sob o esquálido argumento de ter havido defeito relativo à prestação de serviço em face do resultado que razoavelmente se esperava em relação à sua aprovação, com base no art. 14, §1º, II, do Código de Defesa do Consumidor. Ora, o desiderato da formação do aluno, que muitas vezes não se adéqua às exigências acadêmicas mínimas, jamais poderia estar atrelado à relação de consumo, eis que depende única e exclusivamente do próprio aluno. Se o aluno não estudar ou se esforçar minimamente, a IES não pode ser penalizada em face da alegação do defeito da prestação de serviço, sob pena de a pedagogia e o academicismo serem alçados a um mero apanágio da relação de consumo.
Em outra situação, uma aluna de uma IES de Florianópolis ajuizou uma ação por danos morais ao argumento central de que não poderia colar grau junto com a sua turma inicial de faculdade, mercê do comportamento da IES que não recebeu o seu relatório de estágio, ficando assim sem nota e inapta a conclusão do curso. Diz que tais fatos lhe causaram sofrimento e abalo moral. A ação foi julgada improcedente pelo simples fato de que a referida aluna deixou de obedecer aos prazos estabelecidos regimentalmente, haja vista que a aluna entregou o seu relatório de estágio supervisionado fora do prazo. Em sua decisão, o juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de São José, em Santa Catarina, deixa uma prodigiosa lição que se afigura como um verdadeiro aspecto pedagógico:
…A atitude da instituição ré é digna de aplausos, porquanto procurou, e neste caso conseguiu, ensinar que as regras, os regimentos, enfim as normas devem ser rigorosamente obedecidos.
Data vênia, no atual estágio educacional do Pais, onde a grande maioria desta juventude, demonstra-se despreocupada com tudo e com todos, onde a grande massa dos jovens acham tudo natural, num verdadeiro culto do "tudo pode", do "tudo é natural", deve haver sim conseqüências severas para demonstrar que tal regra não é verdadeira.
A regra correta é comportar-se de acordo com os "manuais" da vida acadêmica e social. (Autos n° 064.10.500681-9 / Ação: Reparação de Danos/Ordinário / 2ª Vara Cível da Comarca de São José, em Santa Catarina)
Em outro exemplo não menos elucidativo, um aluno ajuizou recentemente uma ação em face de uma IES, em Brasília, sob argumento de que firmou contrato com a instituição para o fornecimento de uma quantidade estabelecida de créditos, calculados em horas-aula em cada disciplina, mas que tal quantidade de horas-aula não foi adimplida. O discente pediu a condenação em dano material e repetição do indébito consumerista, pois considerava que todas as disciplinas ficaram devendo horas.
O aluno, egresso do curso de direito e advogando em causa própria, imaginou ter criado uma tese nova, fundado em tênue cálculo aritmético com base no calendário letivo e a carga horária das disciplinas optadas, chegando a um resultado que entendia ser divergente da carga horária descrita no histórico escolar. Em um cálculo despropositado, o aluno entendia que cada disciplina teria faltando ao menos 25% do total das aulas, motivo pelo qual pedia ressarcimento em indébito pelo que havia pago e não recebido. Embora contraditório, o aluno reconhecia textualmente que o serviço havia sido indiscutivelmente bem prestado pela IES, o que, inclusive, lhe ensejou a aprovação em seu primeiro exame da Ordem dos Advogados do Brasil.
No caso vertente, a análise da prestação de serviço não pode ser feita com base única e exclusivamente no Código de Defesa do Consumidor, haja vista que existem variáveis decorrentes do próprio ato de ensinar e da legislação educacional pertinente. Ora, as disciplinas de um curso superior não são mecanicamente cobradas e ministradas por intermédio de horas e valores, mas sim por meio de conteúdos, atividades presenciais, não presenciais e as várias atividades complementares que são prestadas pelas IES.
Dentro desse cenário, é evidente que o curso de Direito tem uma abordagem muito mais extensa do que a simples presença às aulas previstas no calendário acadêmico e o cômputo das horas vai além daquelas previstas para a sala de aula. O curso é composto de toda uma estrutura que abriga, dentre outras coisas, todas as disciplinas dispostas na matriz curricular agregada de, no mínimo, diversas atividades complementares. Da mesma forma, não se espera com que um aluno do curso de direito tenha o mínimo de qualidade se ficar adstrito tão somente ao conteúdo de sala de aula, motivo pelo qual a diretriz curricular do referido curso exige as chamadas atividades complementares, orientação esta emanada pelo Conselho Nacional de Educação, por meio do Parecer de n.º 261/2006.
O Conselho Nacional de Educação, por meio do referido Parecer, explicita que “a perspectiva reducionista conduz, por assim dizer, à ‘aulificação’ do saber, isto é, à mensuração do processo educacional em termos de carga horária despendida sem sala de aula, por meio de atividades de preleção.” Nesse caso, é imprescindível pensar no processo educacional como sendo um volume de conhecimento a ser aprendido pelo estudante, o que pode ocorrer mediante formas variadas de transmissão, de acordo com a especificidade do curso e em conformidade com o seu projeto pedagógico.
Com base nos fundamentos acima, o d. juízo do 3° Juizado Especial da Circunscrição Judiciária de Brasília indeferiu o pedido do aluno, com base em uma criteriosa sentença, a qual merece menção (Processo n.° 2012.01.1.007171-6, em trâmite no 3º Juizado Especial Cível da Circunscrição Judiciária de Brasília.):
…A relação jurídica estabelecida entre as partes é de natureza consumerista, devendo a controvérsia ser solucionada sob o prisma do sistema jurídico autônomo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990).
Contudo, entendo que o ato de ensinar apresenta particularidades que superam a mera prestação dos serviços tal como entendida pelo Código de Defesa do Consumidor, porquanto vigoram os princípios da lei de diretrizes e bases nº 9.394/96, tais como o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o respeito à liberdade e apreço à tolerância, dentre outros.
Nesse passo, embora cabível a inversão do ônus da prova, nos termos do inciso VIII do art. 6º do CDC, esta não se resume à comprovação de que a faculdade ofereceu as aulas supostamente faltantes, mas à demonstração de que o conteúdo programático foi efetivamente prestado.
Em que pesem as alegações do autor, o objetivo principal de um curso de graduação é o comprometimento com o conteúdo programático necessário à formação profissional dos alunos, não existindo qualquer óbice para que as aulas não-ministradas sejam substituídas por atividades extracurriculares ou qualquer outra técnica elaborada pela instituição.
No caso em questão, pode-se afirmar que o encerramento dos semestres letivos com a aprovação do autor, bem como com a obtenção da carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, comprovam a conclusão do conteúdo programático pela requerida.
Conforme o parecer CNE/CES nº 261/2066 apresentado pelo autor às fls. 33/52, "não são apenas os limites da sala de aula propriamente dita que caracterizam com exclusividade a atividade escolar de que fala a lei. esta se caracterizará por toda e qualquer programação incluída na proposta pedagógica da instituição, com frequência exigível e efetiva orientação dos professores habilitados".
Assim, comprovada a efetiva prestação dos serviços educacionais, não vislumbro o direito do autor à repetição de indébito anunciada.
Por fim, tendo em vista o disposto no art. 55 da Lei nº 9.099/95, a análise do pedido de gratuidade de justiça será feita apenas na hipótese de interposição de recurso.
Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTES OS PEDIDOS iniciais e declaro extinto o processo, com julgamento do mérito, o que faço com fundamento no art. 269, inciso I do Código de Processo Civil.
Em que pese a particularidade do caso, o mesmo reflete a tendência da jurisprudência nacional, que vem gradativamente consolidando entendimento no sentido de privilegiar a vertente acadêmico-pedagógica dos cursos de educação superior, robustamente lastreada naquilo que é balizado no âmbito do Conselho Nacional de Educação.
Nesse sentido, se um dos objetivos da educação é ser vetor de transformação intelectual e qualificação pessoal, resta claro que o aspecto pedagógico do ato de ensinar não pode ficar atrelado à estrita pedagogia do consumo, a qual pode levar a educação a resultados catastróficos. Se a vertente acadêmico-pedagógica da prestação de serviços educacionais não for observada na ocasião de julgamentos de processos pertinentes à relação de consumo, é bem possível que daqui a alguns anos a educação se transforme em singelas pílulas de conhecimento. Dentro desse cenário, é possível imaginar o aluno chegando à IES e adquirindo crédito pedagógico (crédito para aquisição do saber), assim como quem chega em uma banca de revistas e pede para comprar créditos para o seu aparelho celular. Será esse o futuro da educação superior? Acredito que não!
A temática referente aos limites da autonomia universitária em face do Código de Defesa do Consumidor entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) em virtude do reconhecimento da repercussão geral da matéria, objeto do Recurso Extraordinário (RE) de n.° 641005, os qual servirá de paradigma de aplicação em ações judiciais semelhantes em todas as instâncias do Poder Judiciário.
O referido recurso é originário de um processo que envolve uma Instituição de Educação Superior (IES) e a Associação de Proteção e Assistência ao Cidadão (Aspac), ambas de Pernambuco, em que se discute se o pagamento de mensalidade deve ser efetuado de forma proporcional à quantidade de disciplinas cursadas pelos alunos. Para o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), o contrato de prestação de serviços educacionais está sujeito ao Código de Defesa do Consumidor e, por isso, deve haver equivalência entre o serviço prestado e a contraprestação paga. De acordo com o TJPE, “o regime pedagógico adotado pela universidade não pode se sobrepor à lei, mas sim adequar-se aos preceitos por ela estabelecidos.”
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, reconheceu a repercussão geral da matéria sob a perspectiva de violação do art. 5º, LV, art. 207, caput, e 209 da Constituição da República, fundamentos estes invocados em defesa da referida Instituição de Ensino Superior.
Em que pese a discussão invocar uma robusta temática (autonomia universitária versus direito do consumidor), na prática a discussão é absolutamente assimétrica, haja vista que a concepção e o exercício da autonomia universitária não implica em absoluto a violação do direito do consumidor. Discutir limites da autonomia universitária sob o viés da defesa do consumidor é tentar desvirtuar o próprio conceito de autonomia universitária, o qual é taxado pelo senso comum como algo que se sobreporia ao Código de Defesa do Consumidor, embora tais conceitos não se imbriquem. Para compreender tais afirmações, urge explicitar o que venha a ser a tão falada autonomia universitária.
A Constituição da República, em seu art. 207, estabelece em seu caput:
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
O objetivo da autonomia universitária, conforme se subsume do referido preceito constitucional, é assegurar a liberdade de crítica e a livre produção e transmissão do conhecimento, tornando as universidades impermeáveis a ingerências econômicas, políticas ou religiosas estranhas ao desenvolvimento do ensino, pesquisa e extensão.
Observe-se que o texto constitucional estabelece que a autonomia universitária não é irrestrita ou incondicional, mas é compreendida como um instrumento que encontra limites no atendimento aos fins específicos para os quais as universidades se destinam, sem que isso implique na violação dos direitos mais básicos ligados à atividade da Instituições de Educação Superior, tais como: direitos trabalhistas, civis, consumeristas, entre outros.
Ainda com espeque constitucional, a autonomia universitária está adstrita ao aspecto didático-científico (liberdade para definir currículos, abrir ou encerrar cursos, linhas de pesquisas, entre outras), administrativo (liberdade para estabelecer a organização interna, a exemplo da aprovação de estatuto e regimentos) e de gestão financeira e patrimonial (liberdade para estabelecer os mecanismos de custeio, dotação orçamentária, aplicação de recursos, etc.). A autonomia também não significa independência, haja vista que todas as atribuições das universidades são objeto de fiscalização pelo poder público, o qual pode, inclusive, suspender ou revogar essa autonomia.
Para sistematizar o alcance e os limites da autonomia, o art. 53 da Lei n.° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)[1], estabelece de maneira clara as atribuições das universidades no exercício da referida autonomia. O citado artigo evidencia que a liberdade da autonomia universitária é ampla dentro do limites estabelecidos pela LDB, não podendo jamais se compreender que a referida autonomia seja ampla ao ponto de poder violar direitos mais comezinhos, como direito do consumidor, trabalhista, civil, etc.
Por outro lado, a autonomia universitária é dotada de um pressuposto que encerra qualquer discussão sobre o entendimento equivocado acerca de seus limites. Dentro desse pressuposto, questiona-se: que tipo de instituição possui a prerrogativa da autonomia universitária? Todas as Instituições de Educação Superior? Evidentemente que não!
O exercício da autonomia é outorgado pelo Estado, a quem cabe autorizar e avaliar o seu funcionamento, conforme estabelece a Constituição da República. Seguindo essa sistemática, o Decreto n.° 5.773, de 9 de maio de 2006, que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições de educação superior, estabelece que as IES podem ser credenciadas em três níveis de organização acadêmica: faculdades, centros universitários e universidades. Dentro desses níveis, apenas os centros universitários e universidades possuem a chamada autonomia universitária.
Sendo assim, nos termos da legislação de regência, as faculdades, que são maioria esmagadora no país, jamais possuíram qualquer elemento de autonomia universitária, haja vista que tal prerrogativa legal é apenas concedida aos centros universitários e às universidades. Para que uma faculdade possa ser agraciada com a autonomia universitária terá que ser credenciada como centro universitário e, se for de sua opção, granjear até mesmo o credenciamento como universidade. As condições necessárias para que uma faculdade possa ser credenciada como centro universitário estão previstas na Resolução do Conselho Nacional de Educação CNE/CES de n.° 10/2007, a qual foi objeto de revisão por meio dos Pareceres CNE/CES n.° 60/2009 e 143/2009.
Ora, se uma faculdade não possui autonomia universitária, haja vista que essa prerrogativa não lhe é legalmente facultada, jamais teria como escudar-se na referida autonomia para fazer valer qualquer tipo de imposição, muito menos imposição que seja contrária ao direito do consumidor, trabalhista, civil, etc. Nesse sentido, por exemplo, se uma faculdade for instada judicialmente por cobrar mensalidade de forma equivocada, a discussão judicial jamais poderia estar adstrita à autonomia universitária, eis que uma faculdade não possui tal autonomia, razão pela qual a referida discussão restringir-se-ia apenas sob o enfoque consumerista e sob o enfoque da liberdade legal que assiste a qualquer IES estabelecer a sua forma de contraprestação pelo serviço prestado.
Sendo assim, o Tribunal de Justiça de Pernambuco, ao explicitar que “o regime pedagógico adotado pela universidade não pode se sobrepor à lei, mas sim adequar-se aos preceitos por ela estabelecidos”, equivoca-se quanto à análise do que está sendo discutido judicialmente, a começar pelo fato de que a demandada era uma faculdade e não uma universidade. Amiúde tal discussão, neste caso, resta patente que em momento algum a autonomia universitária poderia ser instada como mecanismo de violação do direito do consumidor, eis que faculdade simplesmente não possui autonomia universitária.
A matéria levada ao Supremo Tribunal Federal, citada no início, em que se discute se o pagamento de mensalidade deve ser efetuado de forma proporcional à quantidade de disciplinas cursadas pelos alunos, jamais poderia ser objeto de um embate constitucional intitulado autonomia universitária versus direito do consumidor, eis que, no referido caso, a questão relacionada com o pagamento de mensalidades não é inerente à prerrogativa de autonomia universitária e sim uma prerrogativa legal atribuída a qualquer Instituição de Educação Superior, tenha ela autonomia universitária ou não.
A cobrança de mensalidades ou anuidades escolares é prevista na Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que estabelece os mecanismos de composição e cobrança das mensalidades ou anuidades. Sendo assim, a prerrogativa que uma faculdade ou uma universidade tem para estabelecer mecanismos de cobrança de mensalidades ou anuidades escolares nada diz respeito à autonomia universitária, assim como equivocadamente sugere a discussão encetada no STF.
Ao que se subsume da análise acima, o foco da discussão no STF está aparentemente equivocado, pois não se trata de discutir os limites da autonomia universitária em face do Código de Defesa do Consumidor, como ficou consignado acima. A discussão que o STF deve ater-se está adstrita ao princípio da hierarquia das normas, na perspectiva de analisar até que ponto o Código de Defesa do Consumidor, que é uma Lei Ordinária[2], pode se sobrepor a outra Lei Ordinária, no caso, a Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que disciplina a cobrança de mensalidades ou anuidades escolares.
Nesse sentido, se uma faculdade, dentro de sua liberalidade de gestão, que nada tem a ver com autonomia universitária, sobretudo porque faculdade não tem tal autonomia, decide cobrar mensalidade em estrito cumprimento à Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, não há como inferir que tenha violado o Código de Defesa do Consumidor. Alegar que o contrato de prestação de serviços educacionais esteja sujeito ao Código de Defesa do Consumidor é restringir a discussão, haja vista que em momento algum as IES afirmam o contrário, conforme jurisprudência cogente, mas o contrato também está afeto às regras insertas na Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999.
Amiúde tal discussão, ao contrário da conclusão do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a mensuração da equivalência entre o serviço prestado e a contraprestação paga não está adstrita apenas ao Código de Defesa do Consumidor, mas também à Lei que regulamenta as mensalidades e anuidades escolares (Lei n.° 9.870, de 1999), sob pena de chegarmos à penosa conclusão de que determinada lei ordinária poderia se sobrepor a outra de igual quilate, ou seja, que o Código de Defesa do Consumidor se sobreporia à Lei n.° 9.870, de 1999, o que evidentemente deve ser rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal.
Portanto, de acordo com a análise acima, resta patente que a discussão no STF acerca de mensalidades escolares não deve servir de ensejo para ampliar tal análise sobre os limites da autonomia universitária, haja vista que são discussões totalmente diversas, conforme consignado acima. Resta claro que tal autonomia é restrita e prevista na própria Constituição da República, não podendo ser confundida com a liberdade de dispor de direitos que não pertencem às IES, razão pela qual não há como fazer a ilação de que a autonomia universitária possa violar direito do consumidor, trabalhista, civil, etc.
A discussão no Supremo Tribunal Federal deve render observância à possibilidade de o Código de Defesa do Consumidor, que é uma Lei Ordinária, poder se sobrepor a outra Lei Ordinária, no caso, a Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que disciplina a cobrança de mensalidades ou anuidades escolares, conforme explicitado alhures. O debate em torno da autonomia universitária, ao ensejo da pretensa discussão acerca da cobrança das mensalidades escolares, pode se afigurar como um temeroso caminho no sentido de restringir a referida autonomia por meio de um mecanismo bastante enviesado na Suprema Corte do nosso país.
[1]. Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:
I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino;
II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes;
III - estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica, produção artística e atividades de extensão;
IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;
V - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes;
VI - conferir graus, diplomas e outros títulos;
VII - firmar contratos, acordos e convênios;
VIII - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais;
IX - administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos;
X - receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas.
Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:
I - criação, expansão, modificação e extinção de cursos;
II - ampliação e diminuição de vagas;
III - elaboração da programação dos cursos;
IV - programação das pesquisas e das atividades de extensão;
V - contratação e dispensa de professores;
VI - planos de carreira docente.
[2]. Lei n.° 8.078, de 11 de setembro de 1990.