Estação Camaragibe: de coração da cidade à curral e depósito de entulhos. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
##RECOMENDA##Estação Jaboatão, Pátio das Cinco Pontas, Oficinas de Werneck e Estação Camaragibe. Quatro pontos fundamentais no desenvolvimento das cidades em que estão inseridos, componentes dos troncos norte, sul e centro, que regiam o transporte de cargas e passageiros em Pernambuco. Na história afetiva dos pernambucanos, suas oficinas, trilhos e plataformas marcaram chegadas, partidas e gerações inteiras. Da lendária Great Western of Brazil Railway, companhia inglesa que administrava as vias férreas do Estado até o final dos anos 1940, os trilhos pernambucanos passaram para o domínio da Rede Ferroviária Nacional, Sociedade Anônima (Reffesa), posteriormente privatizada pelo governo Fernando Henrique Cardoso - quando teve seus bens transferidos para a Ferrovia Transnordestina Logística (FTL).
Quando as atividades da Reffesa foram finalmente encerradas, a Lei Nº 11.483, de 31 de maio de 2007, delegou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a responsabilidade de receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural que dela pertenciam. Os bens móveis não-operacionais utilizados pela Administração Geral e Escritórios Regionais da estatal foram transferidos para o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), assim como os bens móveis e imóveis operacionais, os bens móveis não-operacionais utilizados pela Administração Geral e Escritórios Regionais e os demais bens móveis não-operacionais, incluindo trilhos, material rodante, peças, partes e componentes, almoxarifados e sucatas.
Em conjunto com a confusa classificação da natureza dos bens, a morosidade dos órgãos públicos e empresas envolvidas na conservação do patrimônio transformou suntuosas edificações em ruínas habitadas por sujeira, lixo e animais. Seja de pessoas ou instituições, algumas delas são constantemente utilizadas para uso de drogas e prostituição. Outras, penam com ocupações irregulares, de pessoas e instituições. O que todas têm em comum são as cicatrizes deixadas pelo abandono.
Aos 90 anos, Zuleick Lopes Araújo, bibliotecária por vocação, talvez seja o maior dos patrimônios guardados pelo Instituto Histórico de Jaboatão (IAP), formado há 45 anos no prédio da antiga Cadeia Pública da cidade, por membros da sociedade civil interessados em preservar a história local. Orgulhosa por manter conservadas relíquias como a primeira bandeira do município ou cartas de alforria de escravos, a vice-presidente da instituição Mirtes Figuêiroa Santos, tenta se ater à ingrata missão de chamar a atenção da repórter para algo que não sejam os fascinante relatos de Zuleick, que guarda na (invejável) memória detalhes preciosos sobre os tempos áureos dos trilhos, aos quais a formação urbana do município de Jaboatão dos Guararapes está intimamente associada. Viúva de Orlando Breno de Araújo, um dos professores da antiga Escola Profissional Ferroviária Benevenuto Lubambo, Zuleick conviveu de perto com os ingleses da chefia da Great Western of Brazil Railway, empresa responsável pelas ferrovias nordestinas até o fim dos anos 1940.
Zuleick Lopes Araújo diante do "banner" em homenagem a seu marido, o professor da Rede Ferroviária Orlando Breno de Araújo. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
“Alcancei o tempo de Mr Lee (engenheiro e chefe da Great Western). Ele era um inglês muito gentil, a família muito educada. Pessoas ótimas de se conviver”, vibra Zuleick. Com os ferroviários, ela garante que não era diferente. “O padre Chromácio Leão começou fazendo banda de música e eles foram aprender. Depois fizeram o próprio grupo, geralmente composto por ferroviários. Hoje em dia são os filhos e netos deles e jamais vai se acabar a banda! Entendeu, minha filha? É o amor à terra”, gargalha Zuleick. A bibliotecária interrompe a entrevista por alguns instantes e volta com um álbum de fotografias em preto e branco. Degustando a textura de cada página, seus dedos finalmente repousam sobre o retrato de 24 de maio de 1953. “Os carnavais eram maravilhosos, muito divertidos, com os Cavaleiros de Momo, dirigidos por Sebastião Henrique, chefe de seção da Rede. Esse homem foi o que mais tratou de folclore em Jaboatão, de quadrilha a pastoril”, lembra.
Fundamentais na vida cultural da cidade, os ferroviários foram os grandes promotores de festividades como a “Festa de Santo Amaro”, noite do último sábado do novenário, em que tradicionalmente a população poderia usufruir do vasto repertório das duas grandes orquestras locais. Já o “Locomoção”, time da oficina, era destaque nos clássicos jogos de futebol contra o “Portela”, o “Bulhões” e o “Cristal”, bem como orgulhando Jaboatão em confrontos com equipes de outras cidades. Além disso, os jaboatonenses ainda contam com o Centro dos Ferroviários, uma espécie de clube e centro cultural ao mesmo tempo, aberto “em setembro de 1959”, segundo indica uma velha placa de bronze, em sua sede. Lá, por preços módicos, uma população ainda mais sedenta por espaços de lazer pode celebrar eventos, dentre outras atividades.
Banda Ferroviária era fundamental na vida cultural de Jaboatão. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
No rastro do açúcar
Zuleick está de braços erguidos e olhos atônitos na direção de uma parede. É contando suas estórias que ela volta a ser uma mocinha de vestido e sapatos brancos, compadecida de um lojista especializado em colchões de palha, a alguns segundos de perder toda a mercadoria. “Fecha a loja, fecha, que lá vem a catita! Catita era um trem pequeno para transporte de cana de açúcar, mas, por ser movido a lenha, fazia uma fumaça medonha e botava fogo para todo lado. Então quando ele ia passando, lojas de tecidos e outros produtos inflamáveis precisavam fechar. Era assim, esse horror, mas era bem bonitinho”, conta às risadas. A correria também era grande entre quem vestia roupas claras. “Se as fagulhas pegassem na roupa, manchavam tudo. Jaboatão era muito lindo, sempre é. Vai estar eternamente no meu coração enquanto eu viver. E se existe espírito, o meu vai sempre estar por aqui”, conclui.
Foi seguindo o rastro do açúcar, como a lúdica “catita” das lembranças de Zuleick, que Jaboatão constituiu sua história como cidade. Apenas um ano depois de ser elevada à categoria de município pela Lei Provincial N° 1881, Jaboatão inauguraria sua antiga estação, em 25 de março de 1885, como parte da Estrada de Ferro Central de Pernambuco (EFCP). Repleta de usinas moentes, com destaque para Bulhões e Colônia, e engenhos safrejando, a cidade já estava na mira da Great Western quando a companhia, através do Decreto N° 4111, de 31 de janeiro de 1901, encampou mais trechos ferroviários na área. “A Central começou a ser importante com o predomínio da Great Western, tendo prosseguido de Caruaru a Pesqueira. Trata-se de uma linha algodoeira e canavieira, tanto que, à medida que as exportações de ambos os produtos caem, avança a decadência da ferrovia”, comenta Josemir Camilo, doutor em história pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro “A primeira Ferrovia Inglesa do Brasil”.
Quadro retratando a "catita", um trem pequenino responsável por transportar açúcar. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Dotada de clima agradável, abundância de água e distando apenas 17 km do Recife, Jaboatão começou a receber, no ano de 1910, ferroviários transferidos de oficinas recentemente fechadas, como a de Barbalha, no Cabo de Santo Agostinho. Suas famílias passaram a ocupar 83 casas construídas pela Great Western, nos bairros de Cascata de Baixo e Cascata de cima. “Além da dificuldade de habitação, mais tarde, a Rede Ferroviária sofreria com a falta de mão de obra especializada. Então, em 1940, foi criada uma escola profissional nos moldes da que havia em São Paulo, só para os filhos dos ferroviários. Eles entravam crianças e já se formavam com emprego na rede”, comenta Zuleick.
Um museu dentro de casa
Da mesma maneira que construiu, para os ferroviários, as Vilas Populares nos bairros da Cascata, a Great Western ergueu residências para os chefes, no bairro de Engenho Velho. Ex-engenheiro da Rede Ferroviária Federal (Reffesa), Raimundo Oliveira, de 59 anos, vive em uma das seis mansões que sobreviveram ao tempo e foram construídas pelos ingleses. Na contramão dos demais vizinhos, que descaracterizam completamente as edificações, Raimundo foi o único a preservar a estrutura original de sua casa, provavelmente concluída nos anos 1900. Ela ainda possui placa de patrimônio da Reffesa de número 1240502.
O ex-engenheiro da Reffesa Raimundo Oliveira sentado em um dos bancos de segunda classe que salvou da antiga oficina. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens).
Desbotada entre tonalidades de marrom e ocre, a mansão conserva beleza peculiar. Do imenso quintal, vê-se uma torre na lateral direita, um traço incomum nas residências brasileiras. A sala de 35m² denota o anacronismo da casa, em uma Jaboatão que agora possui 2.491 habitantes para cada metro quadrado. “Nasci em Mossoró e vim ao Estado para cursar engenharia mecânica na UFPE. Comecei na Reffesa como estagiário, em abril de 1976, tendo sido efetivado como profissional em 1978. Só na década de 1980 passei a habitar esta casa, onde já haviam morado ingleses e outros engenheiros brasileiros”, conta Raimundo.
Lotado na oficina de Jaboatão, o ex-engenheiro foi contratado graças à ausência de uma profissional especializado em pneumática. Sua função era coordenar o serviço de freio e manutenção das válvulas de controle. “Os componentes eram retirados em Werneck e Cinco Pontas. Aqui, eram reparados e submetidos a teste. Quando fecharam a oficina e a estação, eu trouxe alguns objetos, a própria casa convida a tê-los”, coloca. Na varanda, dois bancos de segunda classe recebem os visitantes. A antiga bancada foi ocupada pela televisão, enquanto objetos como o antigo gramofone viraram decoração de parede de uma sala de estar que mais se parece um museu. “Por algum tempo guardei também na minha sala o tradicional relógio da antiga torre da oficina. Trata-se de um objeto de 1850, de fabricante chamado Johnny Walker, trazido a Jaboatão por um dos ingleses que chefiavam a ferrovia. Ele encontrou o objeto durante suas férias na Inglaterra, em uma estação prestes a ser demolida”, conta.
Provavelmente concluída em meados de 1900, a residência onde mora Raimundo foi a única a preservar o aspecto original. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Regente da vida no coração de Jaboatão, era o relógio que ditava a cadência dos dias. “Os jaboatonenses viviam olhando para cima. Quando o relógio foi retirado, as pessoas continuaram a olhar para o céu, mirando apenas o vazio”, lamenta Raimundo. De acordo com o ex-engenheiro, o relógio só saiu de sua casa pelas mãos de funcionários da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), que haviam prometido executar uma nova instalação. “Até hoje isso não foi feito, estando o relógio guardado na estação de Cavaleiro. Uma pena, porque fui um dos grandes batalhadores pela construção de uma nova torre. Um valor alto foi gasto e a instalação nunca saiu”, explica.
Amante da fotografia, Raimundo encontrou-se pela última vez com a antiga torre do relógio para documentar sua implosão. Em uma foto sequência de seis poses, a ponta da edificação vai, aos poucos, sumindo em meio à poeira.
O apagamento da memória ferroviária, aliás, também é tema de algumas das poesias que escreve em casa no tempo livre. Por insistência da repórter, ele aceita recitar uma delas em seu imenso quintal:
“Lembro-me nitidamente dele
Soava de forma triste nas partidas
de forma alegre nas chegadas
Eram verdadeiras festas
o movimento dos trens
a vida de cidades interioranas
a razão de ser e existir
Retiraram os trens
fecharam os ramais
a alegria foi junto
e hoje, até a tristeza faz falta
servindo ambas apenas
para os contadores de estórias e histórias
Estações hoje reduto,
quando existem,
de quase tudo que não presta
raríssimas foram transformadas
em espaços culturais e órgãos públicos
Daquilo tudo, restaram as lembranças
as quais muitos insistem em esquecer,
fazer de conta que não aconteceu
que os trilhos, por serem paralelos,
nunca se encontraram no infinito
que nunca bateram o sino das estações
na tentativa de apagar o passado ferroviário
Isso jamais será conseguido
pois o apito das locomotivas
Maria Fumaça, English Eletric
jamais permitirá, deixar de soar
nos ouvidos dos verdadeiros ferroviários”. Sobre o apito, 2001, Raimundo Oliveira.
Dezessete anos de completo abandono
Almanaque vivo quando o assunto é o patrimônio ferroviário local, Raimundo foi convidado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) para escolher pessoalmente os objetos que fazem agora parte do memorial da oficina. “A maioria das cidades surgiu em função do trem. Por isso, me dá uma tremenda tristeza ver a degradação a que chegou a oficina em que trabalhei, a maior escola da minha vida”, queixa-se.
A oficina ferroviária de Raimundo, reconhecida nos tempos áureos por ter sido a segunda maior do Brasil, figura desde 2012 na Lista do Patrimônio Ferroviário do IPHAN. Na relação, ainda em construção, constam 639 bens inscritos, dos quais 14 estão localizados no Estado de Pernambuco. Também incluída na lista, a Estação de Jaboatão ao invés de cartão postal, virou ponto de prostituição e consumo de drogas em qualquer horário do dia. “É um local perigoso. Além disso, sua área está sendo invadida, inclusive por um outdoor enorme que prejudica a paisagem”, relatou uma moradora que preferiu não se identificar.
A reportagem do LeiaJá esteve no local e observou a estrutura completamente tomada pelo mato, inclusive com a presença de uma árvore já crescida no meio das linhas férreas. Arcos enferrujados, lixo, sujeira e mau cheiro são a única herança aparente da administração da Ferrovia Transnordestina Logística (FTL) do local. Em nota, a empresa declarou que concluiu, em julho de 2018, o processo de devolução do patrimônio ao Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNIT), que se arrastava desde 2001. De acordo com o IPHAN, era de responsabilidade da concessionária conservar o bem, protegido em âmbito federal por meio da lei 11.483/2007.
O DNIT, no entanto, por meio de nota, alegou que “o imóvel onde está localizada a estação de Jaboatão já havia sido devolvido antes da extinção da RFFSA". "Portanto, foi considerada não operacional e devolvida à SPU. Importante mencionar que a estação foi valorada pelo IPHAN que, de acordo com a lei 11.483/07, passa a gerir qualquer destinação deste imóvel”, acrescentou o órgão.
Devolvida pela Transnordestina a partir do mesmo procedimento que envolveu a Estação de Jaboatão, a Estação de Camaragibe também padece ao imbróglio que envolve a concessionária, o IPHAN e o DNIT. Procuradas pela LeiaJá, nenhuma das instituições se responsabilizou pela conservação do patrimônio. Segundo o DNIT, apenas as edificações (estação, armazém e sanitários) constam nos mesmos sistemas como devolvidas pela CFN. "Já o imóvel onde está edificada a estação de Camaragibe ainda é considerado operacional, de acordo com os sistemas corporativos do DNIT. Portanto, continua arrendado à FTLSA”.
Uma espécie de curral urbano, a estação virou morada de uma família de pelo menos três cavalos, provavelmente responsáveis pelas fezes e o mau cheiro que tomaram a área da antiga plataforma. Um grupo de pessoas que ocupa o local e cria os animais instalou uma série de grades nas janelas e portas, além de colocar telhas antigas e lonas no lugar do teto original. Segundo um morador que preferiu não se identificar, o telhado original foi furtado logo após a estação ser desativada, por residentes do próprio bairro.
Diante da ruinaria, o aposentado Walter Constâncio, de 59 anos, custa a acreditar que foi aquele o local de suas melhores lembranças da adolescência. “Minha família veio morar no bairro em 1965. Engraçado porque existiam poucas residências, mas muito mais gente na rua, era seguro. Nos últimos anos, pessoas da minha família foram assaltadas no entorno da estação”, conta. Aficcionado pela estrutura, Walter exibe com orgulho os cartões postais com sua imagem, que costumava colecionar. “Acho ela muito bonita. O primeiro orgulho de quem morava aqui era ter uma estação como essa por perto. A gente comprava os cartões para presentear amigos e parentes que vinham nos visitar ou moravam fora”, lembra.
Walter Constâncio diante da ruinaria que um dia foi seu cartão postal predileto. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)
Neste período, havia uma espécie de zoológico em casa, com direito a um poço para jacarés. “Criávamos de tudo no quintal. O jacaré doamos para um zoológico, mas os macacos eu levava para passear no pátio da estação, o pessoal se divertia bastante”, sorri. Calmo, Walter só aumenta o tom de voz quando o assunto é sua militância pela recuperação do patrimônio.
“Essa batalha começou em 1996. Com ajuda de alguns amigos, desenhei um projeto para dar uma destinação social à estação. No mapa, já estão determinadas as áreas para espaços como quadra poliesportiva, pista de caminhada, Academia da Cidade, Vagões da Cultura e um cineteatro, pois somos muito carentes de espaços assim”, explica. Com o desenho em mãos, Walter pagou hospedagens e diversas passagens de avião para Brasília para se reunir com políticos representantes de Pernambuco, no intuito de buscar apoio para viabilizar a proposta. “Na época, sentei com deputados como Raul Jungmann, Renildo Calheiros, José Chaves e Roberto Freire. A recepção sempre é maravilhosa, mas nada foi feito para executar o projeto”, reclama.
Revitalização custaria cerca de um milhão
Situada no Bairro de Alberto Maia, a Estação de Camaragibe fazia parte do tronco norte de Pernambuco, que partia da Estação do Brum (a primeira do Estado) rumo à divisa com a Paraíba. A estrutura foi inaugurada em 1881 e desativada para transporte de passageiros em 1974, embora os trilhos tenham se mantido funcionando para a mobilidade de cargas até o ano de 2010, quando estavam sob controle da Transnordestina.
A estrutura original da Estação Camaragibe. (Júlio Gomes/LeiaJáImagens)
Interessado em transformar a estrutura em espaço cultural, a antiga equipe da Fundação de Cultura de Camaragibe, uma autarquia da Prefeitura de Camaragibe, elaborou, em 2016, outro projeto de revitalização. No texto da proposição, consta que a estação é um imóvel especial de proteção histórico cultural da cidade, “hoje sob a responsabilidade do DNIT, está registrado sob o No. de tombo RFFSA 1242041, tombo estadual no. 1.322/85 e inscrição de tombamento no Conselho Estadual de Cultura: no.02,Livro de Tombo IV, . 01 v., integrando ainda o tombamento temático da malha ferroviária de Pernambuco”. "Além disso, o artigo 87 da Lei no. 341 / 07 do Plano Diretor do Município de Camaragibe ressalta a importância de destinar trecho tombado pelo IPHAN da antiga estação férrea da RFFSA/Camaragibe para requalificação urbana enquanto espaço público histórico, de lazer e cultura”, informa a Fundação. Seu orçamento ficou avaliado em R$ 1.241.000,00 e sugere a divisão do espaço em três setores, sendo eles:
Setor 1 (Estação): biblioteca, incluindo recepção, sala de espera e sala de leitura; espaço para exposições; sala para oficinas; sala de adminstração e banheiros acessíveis;
Setor 2 (Armazém): espaço polivalente - sala multimídia (capacidade 55 lugares) para peças teatrais, palestras e exibição de filmes. Anexo a este setor, área de apoio / camarim ou sanitários;
Setor 3 (Pátio/Plataforma): espaço livre multiuso para feiras de artesanato, manifestações culturais, shows e apresentações culturais.
De acordo com Thiago Bonfim, Diretor de Projetos e Equipamentos Culturais da nova Fundação de Cultura, como houve mudança de gestão, a Prefeitura agora se baseia no planejamento inicial, elaborado no ano de 2009 pelo IPHAN, em que as obras eram orçadas em aproximadamente R$ 1 milhão. “Como é um trabalho antigo, contratamos uma consultoria para fazer esse serviço de atualização do mapa de danos sofridos pelo prédio, que nos indicará outro orçamento. A partir desse documento, começaremos a atuar na captação de recursos”, explica. A intenção é a de buscar verba, inicialmente, a nível estadual, por meio de projetos culturais ou emenda parlamentar. “Como se trata de um bem inventariado pelo IPHAN, também procuraremos em nível federal. Outra possibilidade é procurar por ONG’s que atuem com patrimônio cultural ou até financiadores privados”, comenta.
Para quem deixava a estação do bairro sem rumo certo, a maior diversão só podia ser o caminho. Acompanhado de uma turma de amigos destemidos, Luiz Carlos Teixeira, agora com 59 anos, desafiava a paciência dos maquinistas só pelo prazer de sentir o vento no rosto das “caronas” nos trens. “Eu me pendurava nos vagões, pelo lado de fora e ia para diversas partes da cidade. Os ferroviários reclamavam para a gente descer, mas não adiantava. Faria de tudo para rever o tempo de criança”, comenta. Atualmente aposentado, Luiz mora na frente dos trilhos que ligam a linha centro à Estação Edgard Werneck, em Areias, na Zona Oeste do Recife, desde a primeira infância. “Quase todo fim de mês, minha mãe me levava para Maceió. A gente pegava o trem às 5h da manhã, me lembro de tudo. Das paisagens, das crianças acenando pra gente e dos ‘mangaeiros’ (feirantes) com suas mercadorias”, completa.
Luiz sobre os trilhos que conduziram algumas de suas viagens mais agradáveis. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Inaugurada com o nome de Estação de Areias em 1891, a Estação Werneck teve seus trens de passageiros suprimidos em 1983, em razão da decisão da administração da Linha Centro de mantê-los funcionando exclusivamente entre Recife e Jaboatão. Luiz, então, deu um jeito de se divertir com os trens de carga. “A gente só não fazia roubar, mas sempre pegávamos resto açúcar ou café que ficava nos vagões, essas duas coisas nunca faltavam na casa da gente. Quando era melaço, me lembro de sugar uma mangueira com a boca para despejá-lo em um balde”, sorri.
A oficina de Werneck atuava na manutenção e no reparo geral das locomotivas. Também era em sua área que os profissionais de saúde da Rede Ferroviária se alojavam e, muitas vezes, prestavam assistência à população do entorno. O comerciante Amaro José de Oliveira é vizinho da oficina desde 1970, tendo desenvolvido boa relação com os profissionais da instalação. “Sempre fui popular, me dou com todo mundo. Minha mãe, que Jesus levou em 1980, passou um bom tempo aos cuidados de um dos médicos da Rede”, coloca.
Amaro: popular no bairro e dono de prestígio junto aos médicos da Rede, que trataram sua mãe em tempos difíceis. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Tanto Amaro quanto Luiz descrevem um cenário improvável para quem conhece o entorno da estação nos dias de hoje. Ruas seguras, limpas e apinhadas de gente parecem ter se deteriorado junto com os antigos galpões da oficina. “Essa rua dos trilhos já foi mais organizada, no tempo da Rede, não havia todo esse mato. Eu combati muito o lixo aqui, sempre tentando manter a rua limpa, mas os próprios moradores jogam lixo e entulho”, reclama.
O abandono é reflexo da confusão entre os administradores da estrutura, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), DNIT e Transnordestina. Em nota, essa última afirmou que o complexo de Oficinas Edgard Werneck não faz parte dos bens arrendados à ela e “é de responsabilidade da SPU". "Apenas uma das edificações do pátio está sob responsabilidade da FTL. No local, são armazenados materiais pertencentes ao DNIT que estão sob a guarda da empresa”, argumenta a Transnordestina.
Já o DNIT alega que já retirou seus pertences do galpão, “quando a então Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN) tinha habilitação para usar os estoques pertencentes à então Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA)". "Portanto, estes bens pertencem à Ferrovia Transnordestina Logística S.A. (FTLSA), sucessora da CFN. Assim, o Departamento conclui que não pode se pronunciar sobre a utilização de um “imóvel operacional arrendado à FTLSA”, informa.
Sem que ninguém reclame a função de administrá-la, a Oficina virou estacionamento de uma igreja evangélica do bairro, que está cotidianamente utilizando sua área nos dias de culto. “Nosso sentimento é de resignação, tristeza, porque o tempo não pode voltar. Só ficou o abandono”, conclui Luiz.
Inaugurada em 1858, a Estrada de Ferro Recife-São Francisco é mais antiga ferrovia de Pernambuco e a segunda do Brasil, tendo sido a pedra fundamental para a constituição da Linha Sul de Pernambuco. Para operacionalizá-la, foi construída, no Recife, a Estação das Cinco Pontas, de onde partiu o primeiro trem de passageiros do Estado, no dia 8 de fevereiro de 1858, rumo à Vila do Cabo com 400 pessoas a bordo. Apesar de sua importância histórica, a estação foi demolida na década de 1960. “É importante destacar o pioneirismo da Estrada de Ferro Recife-São Francisco, onde, pela primeira vez no Brasil, se estabeleceu o ticket de ida e volta, além do abatimento do valor da passagem das pessoas que construíram casas em seu entorno. Infelizmente, o que sobrou de Cinco Pontas foi o pátio, localizado no interior do Cais José Estelita”, explica o pesquisador Josemir Camilo.
Primeiro trem de passageiros de Pernambuco, partindo, no dia 8 de Fevereiro de 1858, do Pátio das Cinco Pontas rumo à Vila do Cabo, com 400 pessoas a bordo. (Acervo do Museu do Trem)
Com 10,1 hectares de área e localizado na parte histórica do Recife, o Cais José Estelita foi protagonista de alguns projetos urbanísticos. Dentre eles, o mais controverso parece ser o Novo Recife, idealizado pelo Consórcio Novo Recife, composto pelas empreiteiras Moura Dubeux, Ara Empreendimentos, Queiroz Galvão e G.L Empreendimentos. Inicialmente, a proposta previa a construção de 12 torres com até quarenta andares e revoltou parte da sociedade civil, que se organizou para discutir outras utilizações possíveis para o espaço. “O Movimento Ocupe Estelita reivindica uma cidade para todos e todas -não só para os que podem pagar caro-, assim como um processo de e decisão público, participativo e comum sobre o crescimento urbano”, coloca o jornalista e ativista Chico Ludermir.
Presidente da AnpTrilhos, Joubert Flores, discute alternativas viáveis para manter patrimônio ferroviário:
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De acordo com Chico Ludermir, o movimento reivindica a construção de espaços coletivos e comuns (parques e praças), construções com uso misto (comércio e habitação) e moradia popular (mínimo de 30%), além de uma discussão aberta e ampla a respeito de qualquer possível destinação do terreno. O ativista destaca o projeto Recife-Olinda, que, a partir de uma articulação entre os poderes municipal, estadual e federal, sugeria a conexão entre as duas cidades pela orla, como uma das alternativas ao Novo Recife. “Projetava para o Estelita uma permeabilidade e integração com o bairros vizinhos e com a cidade como um todo, sem a verticalidade do PNR. O projeto foi abortado pela pressão do capital imobiliário e acordo com os políticos locais”, defende.
Segundo Tereza Mansi, advogada do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), um embargo administrativo do IPHAN impede a construção das torres. “Ele ainda está em vigência porque não foram realizados estudos arqueológicos na região. Quando isso for feito, o IPHAN analisará os resultados para autorizar a obra”, comenta. A advogada também questiona o leilão em que o Estelita foi vendido para o consórcio. “O Ministério Público Federal entrou com uma ação para anular esse leilão. Como o terreno era Patrimônio da Rede Ferroviária transferido para a União, antes da venda, ela teria que ter dado preferência ao IPHAN, que inclusive já tinha uma parecer demonstrando seu interesse na área”, completa. Posteriormente, a Polícia Federal (PF) verificou que apenas o consórcio se candidatou durante o processo de licitação. “Por fim, o terreno acabou sendo vendido por um valor muito baixo”, conclui a advogada, referindo-se ao subfaturamento de R$ 10 milhões do leilão, também apurado pela PF.
(Chico Ludermir/Acervo pessoal)
Para Josemir Camilo, a situação de degradação de estações, oficinas e pátio ferroviários como o de Cinco Pontas é reflexo de um duplo desamparo. “Do governo e das empresas. O Estelita, por exemplo, poderia ter seus antigos armazéns mantidos para finalidades sociais e próprio pátio continuar existindo como museu aberto, vivo. Não há como conciliar arranha-céus com uma memória tão chã”, lamenta.