Contrariando os prognósticos, o futebol da Ucrânia voltou nesta terça-feira, na véspera do Dia da Independência do país, seis meses após ser paralisado com a invasão de tropas militares russas e um rastro de destruição. As incertezas quanto ao retorno do esporte em meio à guerra são muitas, mas as autoridades locais defendem a volta das competições. Os jogos serão disputados sem público e terão a presença de militares, além da instalação de abrigos nos estádios.
Uma reunião em julho entre a Liga Ucraniana, representantes do Ministério da Defesa e de outras pastas do governo envolvidos na guerra discutiu as medidas de segurança para a realização das partidas. "Recomeçar o futebol é um grande passo para o país", declarou Andriy Pavelko, chefe da Federação Ucraniana de Futebol no encontro que decidiu os detalhes para a nova temporada.
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No Campeonato Ucraniano da primeira divisão, dois times fecharam as portas. O FC Mariupol encerrou suas atividades em abril após o bombardeio russo destruir toda a sua infraestrutura de instalações. A cidade de mesmo nome foi uma das mais devastadas pela ofensiva militar de Vladimir Putin. Já o Desna Chernihiv também não vai disputar a competição. O clube viu seu estádio Gagarin, em homenagem ao famoso cosmonauta russo, ser alvo de bombardeio aéreo.
O técnico Volodymyr Matsuta teve sua casa destruída e perdeu parte importante da sua vida, incluindo a medalha pela conquista da Copa da Ucrânia na época de jogador. "Um vazio na alma. Meus olhos não acreditaram no que viram
", lamentou.
Os clubes da Ucrânia foram forçados a realocar seus jogos para a parte ocidental do país, menos afetada pela guerra. As partidas vão ser realizadas em Kiev (e região), Lyviv, Uzhhorod, Petrov, Kirovohrad e Kovalivka . Muitos times realizaram sua pré-temporada se abrigando em nações vizinhas. O Metalist 1925 deixou a cidade de Kharkiv, a 40 km da fronteira russa e bastante destruída pela guerra, e viajou 1,300 km para treinar em Uzhhorod, na divisa com a Eslováquia. Já o Metalist Kharkiv fez seus treinamentos na Turquia.
"Quero desejar paciência aos ucranianos em um momento tão difícil, ajudar uns aos outros e acreditar definitivamente em nossos soldados. Com certeza, venceremos", disse Yehor Demchenko, do Metalist Kharkiv, ao site oficial do clube.
O campeonato da primeira divisão foi interrompido em abril, sem definição de um campeão. Desde então, a bola no gramado só foi vista nos jogos da seleção, que ficou a um jogo de garantir vaga na Copa do Mundo deste ano, no Catar. Os ucranianos precisaram se preparar na Eslovênia para as partidas contra Escócia e País de Gales em maio. Os jogos contra Irlanda e Armênia pela Liga das Nações, em junho, precisaram ser disputados na Polônia.
Atletas penduraram chuteiras e uniformes para trajar a farda das forças armadas do país. O site oficial do Shakhtar noticia regularmente informações operacionais do Ministério da Defesa da Ucrânia, com detalhes diários sobre a guerra, enquanto o do Dínamo de Kiev traz pronunciamentos do presidente Volodymyr Zelensky.
Assim como a seleção, os dois rivais participaram da Tour Global pela Paz na Ucrânia, realizando amistosos pela Europa para arrecadar fundos que serão usados ??para ajudar a população local em meio à guerra. Os jogos "em casa" do Shakhtar Donetsk na Liga dos Campeões serão em Varsóvia, no Estádio do Exército Polonês. O rival Dínamo de Kiev também fez suas partidas da fase de playoffs da competição europeia no país vizinho, mesma situação do Zorya Luhansk na Liga Conferência. Já o Dnipro fez seu jogo pela fase pré-classificatória da Liga Europa, na Eslováquia.
"Diáspora" no Campeonato Ucraniano
Os times ucranianos também precisaram contornar o êxodo de seus principais jogadores, que deixaram o país em busca de segurança. Conhecido por atrair jovens talentos brasileiros na última década, o Shakhtar hoje não tem mais nenhum atleta do país em seu elenco. Dodô (lateral-direito), Ismaily (lateral-esquerdo), Marcos Antônio (meia), David Neres (atacante) e Fernando (atacante) foram negociados em definitivo ou liberados. Outros sete brasileiros foram emprestados: Marlon (Monza, da Itália), Marquinhos Cipriano (Cruzeiro), Vinicius Tobias (Real Madrid), Vitão (Internacional), Maycon (Corinthians), Pedrinho (Atlético-MG) e Tetê (Lyon).
Esse processo foi facilitado por uma decisão da Fifa de junho. Jogadores e treinadores estrangeiros ganharam o direito de suspender seus contratos de trabalho com times ucranianos até 30 de junho de 2023, a não ser que um acordo mútuo seja firmado entre atleta ou técnico e o clube.
A grande maioria dos jogadores deixou o clube por valores baixos ou sem gerar nenhum ganho ao time ucraniano. Além de cobrar um valor indenizatório da Fifa, o clube acionou a Corte Arbitral do Esporte para tentar anular a regra. Na ação, o clube ainda pede que a entidade máxima do futebol mundial cubra todos os custos relacionados aos procedimentos jurídicos na CAS porque está em situação financeira delicada desde o início da guerra. O Shakhtar cobra uma indenização de 50 milhões de euros, equivalente a R$ 272 milhões, da Fifa, segundo o site The Athletic.
Mas o desfalque de seus principais jogadores não é a principal preocupação. Há incertezas sobre a segurança do retorno do futebol no país. Nas últimas semanas, os governos de Rússia e Ucrânia acusam um ao outro de bombardear a usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa, aumentado os temores internacionais de uma catástrofe no continente. A usina está sob ocupação russa desde o início da guerra e, segundo as autoridades ucranianas, tem sido utilizada para armazenar tropas e armas.
"Este é o nosso trabalho, e o percebemos como profissionalismo, como uma responsabilidade muito grande - mostrar ao mundo que a vida na Ucrânia não para, mas continua. E o futebol é um dos fatores que dá emoção a todo o país e às pessoas que lutam por todos nós. Isso é muito importante para nós - não só para o Shakhtar, mas para toda a liga - continuar a vida, mostrar ao mundo que o futebol continua. É difícil", contou Ihor Jovichevich, técnico do Shakhtar.