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Maria Clara pede alguns instantes para sair do frio. No Canadá desde o meio de 2017, ela tenta se adaptar ao inverno gelado e ao novo idioma, e costuma se comunicar com os jornalistas, a família e os amigos brasileiros via skype ou WhatsApp. No dia 18 de janeiro deste ano, a ativista pernambucana finalmente teve seu pedido de refúgio aceito pela justiça canadense, após ter sido perseguida e ameaçada de morte por um agente penitenciário, por ser negra e travesti. 

Nascida no dia 10 de outubro de 1978, em São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana do Recife, Maria Clara Sena conheceu o preconceito ainda dentro do casa. “Desde cedo, meu pai me batia muito, devido aos meus trejeitos. Minha identidade de gênero não foi bem aceita por minha família, semianalfabeta. Fui a primeira que entrou na faculdade e passou em um concurso público”, lembra. A graduação escolhida foi serviço social e o cargo público ocupado o de perita do Mecanismo de Proteção de Combate à Tortura, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco (SJDH). 

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Maria Clara foi vítima de violações enquanto atuava como perita do Mecanismo de Proteção de Combate à Tortura, da SJDH. (Chico Ludermir)

Na mesma época, Maria Clara tornou-se executora do projeto Fortalecer para Superar Preconceitos, do Grupo de Trabalhos em Prevenção (GTP+), ONG que se dedica ao acolhimento de pessoas soropositivas e de grupos vulneráveis ao HIV. “Observamos que travestis e transexuais estão totalmente esquecidas nesses espaços de privação de liberdade e tendo seus direitos humanos renegados”, comenta Wladimir Reis, coordenador do GTP+. Foi esse contexto que levou a então funcionária pública a batalhar e conseguir uma ala exclusiva para mulheres transexuais e travestis presas, em que não estariam mais expostas às violações sexuais costumeiramente praticada pelos detentos homens. 

“Na prática, o Mecanismo deveria ser um órgão multidisciplinar, com paridade de gênero e etnia, mas quando uma pessoa como eu, travesti, negra e adepta do candomblé, divide espaço com pessoas brancas, cisgêneras e de famílias importantes a coisa é diferente. Sofri uma série de violações de direitos na instituição”, afirma Maria Clara. Dentre, as piores lembranças ela guarda a memória do dia em que quase foi alvejada por agente penitenciário, também funcionário da STJDH, em um presídio de Santa Cruz do Capibaribe, no interior do Estado. “Ele colocou uma arma na minha cabeça e disse que ia me matar por eu ser ‘viado e preto’. Em outra ocasião, as demais peritas deixaram de falar comigo e passaram a ignorar o que eu tinha a dizer”, completa.

Morando no Canadá, Clara não tem previsão de volta ao Brasil. (Chico Ludermir)

A gota d’água foi quando o nome de Clara foi retirado, sem qualquer justificativa, do relatório anual do Mecanismo. Além disso, ela passou a sofrer com sucessivas perseguições do funcionário público que a ameaçara de morte, tendo que mudar de casa mais de seis vezes. Foi quando outros ativistas garantiram que, ficando no Brasil, Clara não estaria segura. “Decidi sair do Mecanismo. Tirei férias em junho e julho de 2017 e passei julho e agosto e setembro fugida no Canadá, quando me exoneraram do cargo. O secretário Pedro Eurico já havia falado que a intenção dela era me tirar do emprego, mesmo sabendo que o órgão era autônomo”, coloca. 

Com saudades do Brasil, Clara se prepara para a distância dos terreiros de candomblé e para a saudade das quadrilhas juninas e das sambadas de coco, que adora. “Não me vejo fora da minha cultura, mas também não tenho como voltar nem tão cedo. Já tenho minha identidade e aguardo o passaporte canadense, que deve sair em três anos”, estima. No Canadá, Clara concilia a rotina de ativista às aulas de inglês. “Não é porque estou num país que me garante a velhice, que vou esquecer do meu. O Brasil pode ser livre, minha luta é para que as pessoas não só aceitem os negros, LGBTs e mulheres, mas que tenham água na torneira, transporte confortável e segurança. A gente precisa de educação, de uma escola que conte a verdadeira história do nosso povo”, conclui. 

“Não tive direito a luto, só luta”


Joelma batalha pela condenação de sargento reformado da PM. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)

Joelma detesta ser vista como uma fortaleza. De frente para sua casa, no Bairro do Ibura, com pouco mais de um metro e meio de altura, ela aguarda a reportagem para indicar a localização precisa da residência. Há pouco tempo, ela voltou para o bairro onde sempre morou, por não ter conseguido se adaptar ao distante bairro do Janga, em Paulista. O objetivo era o de se distanciar das lembranças de seu filho, Mário Andrade, morto a tiros aos 14 anos de idade, no dia 25 de julho de 2016, a poucas ruas de casa, por um policial alcoolizado. 

“Antes de sair, meu filho tinha passado a tarde pintando sua bicicleta, com o dinheiro que tinha conseguido trabalhando na lanchonete dos nossos vizinhos. Saiu para brincar e pedalar. Não deu meia hora, Linda, minha amiga, gritou, dizendo que um amigo dele havia sido baleado”, lembra Joelma. O sargento reformado da Polícia Militar Luiz Fernando Borges havia atirado em Mário e no colega, após bater com sua moto na bicicleta do primeiro. “Ele mentiu para a justiça, dizendo que meu filho atirou no pé dele, estava armado e envolvido com o tráfico de drogas, além de ter falado que Mário não era do Ibura. A balística já confirmou que meu filho não portava arma nenhuma e o médico que fez examinou o policial já confirmou que o ferimento dele foi causado por um arranhão, devido ao choque com a bicicleta”, argumenta Joelma. 

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Desesperada para provar a inocência do filho, Joelma chegou a recolher, sozinha, mais de 3 mil assinaturas de moradores do Ibura e comunidades próximas afirmando que Mário não tinha envolvimento com o crime e que residia na casa da mãe. “Todo mundo assinou, gostavam muito do meu filho. Teve gente que bateu na minha porta para assinar. Levei tudo para o DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) e mostrei para a delegada”, comenta. Depois, Joelma ainda levou uma cópia do documento para o Palácio das Princesas. A intenção era cobrar justiça diretamente ao Governador Paulo Câmara. “Um secretário me recebeu no lugar dele e disse que se fosse organizar cada cano estourado da cidade, não conseguiria dar conta. Respondi que esse cano estourado do Ibura tinha nome e que eu era a mãe dele: ‘já que o senhor não pode fazer nada, quem vai fazer sou eu’”, relata.

Desde então, uma série de movimentos sociais e instituições promotoras dos direitos humanos aderiu à causa de Joelma. Protestos foram promovidos, avenidas fechadas, dinheiro arrecadado, gente importante desafiada. Dentre as manifestações, uma das prediletas de Joelma foi a homenagem feita pelo rapper Martins, que musicou uma letra escrita por Mário. “Meu filho queria ser artista. Me lembro quando ele me mostrou a música, colocando que eu era uma guerreira por ter criado ele e as duas irmãs sozinha. A verdade é que, apesar de todo mundo dizer o mesmo e de eu precisar ser forte pelos três, me sinto frágil e choro toda noite, quando as meninas vão dormir e oram por Mário”, afirma. 

Joelma pode conseguir ver assassino de Mário condenado este ano. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)

Agora a luta por justiça, que já soma dois anos, parece se aproximar do fim. “Os advogados dele passaram um caso para um defensor público, mas antes disso não levaram suas alegações ao juiz, que vai requerer esses documentos. Depois disso, ele deverá marcar o júri popular para o final do ano”, comemora Joelma.

Preso desde o dia 5 de agosto de 2017, Luiz Fernando se apresentou ao Fórum depois de ter sido dado como foragido. Joelma acredita que, com a condenação dele, poderá reconstruir sua vida. “Eu não tive direito a luto, só luta. Correndo atrás da prisão do assassino, do júri popular, tentando honrar a memória de Mário. Sei que não vou trazer ele de volta, mas quero mostrar para outras mães que tiveram seus filhos mortos por policiais que é possível fazer justiça”, completa. 

A luta de Eleonora


 Eleonora com José Ricardo. (Arquivo Pessoal)

Jardim São Paulo, Recife, Outubro de 2010. José Ricardo Pereira, de 24 anos, deixa sua casa pela última vez, acompanhado pelos amigos Augusto Cesar Rodrigues e Windson Flávio de Melo, de 26 e 25 anos, respectivamente. Em poucos momentos ele seria morto a pauladas pelos dois, que foram condenados a 18 anos de prisão em regime fechado, por homicídio qualificado, motivado por homofobia. Foi a primeira vez que a Justiça de Pernambuco reconheceu que um crime foi motivado por preconceito com a orientação sexual da vítima. A conquista, contudo, só foi possível graças à luta de Eleonora Pereira, mãe de José Ricardo.

“Militei muito para que a justiça fosse feita. A primeira delegada do caso afirmou que José Ricardo estava envolvido com drogas e exploração sexual, tentando culpabilizá-lo por sua morte. Acionei da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e conseguimos que doutora Vilaneida Aguiar assumisse o caso”, comenta Eleonora. Apesar da condução do processo aprovada pela mãe da vítima, Vilaneida foi afastada do caso. “Fiquei desesperada e acionei o então deputado Oscar Barreto, que solicitou à Secretaria de Defesa Social (SDS) e ao presidente da Alepe, que Vilaneida permanecesse no caso”, coloca.

Sob a condução da nova delegada, as investigações fluíram. Outras dificuldades, contudo, surgiram. “Consegui acompanhar as oitivas do promotor, mas foi duro ouvir em silêncio às mentiras de algumas pessoas. Depois, precisei monitorar minhas testemunhas, porque muitas foram ameaçadas de morte”, lembra Eleonora, que acompanhou de perto cinco anos de processo. “Lutei para chegar ao júri. No dia em que ocorreu, fui ameaçada na frente de todos, mas conquistamos a condenação”, afirma. 

 Exilada em Angola, Leonora é ameaça por assassinos do filho. (Arquivo Pessoal)

Mães pela Igualdade

A batalha de Eleonora frutificou. Sua luta serviu de mote para a criação da ONG Mães Pela Igualdade, que ampara mães de filhos homossexuais. A mãe de José Ricardo perdeu o emprego de enfermeira devido à militância, dedicando-se exclusivamente à instituição. “Me engajei nessa causa pela dor, para evitar que outras mães passem pelo que passei. Na época da morte do meu filho, tive que, além de lutar por justiça, sustentar o pai dele, que só fazia chorar”, conta. 

Agora Eleonora passa uma temporada exilada em Angola, com a agenda cheia de atividades ligadas ao ativismo pela população LGBT. Apesar de seguir sofrendo ameaçadas de morte, o estado a desligou do programa de defensores dos direitos humanos. “Pernambuco não garante minha segurança. Tem uma análise de risco feita pelo delegado do DHPP que afirma que ainda estou em ameaça e os assassinos do meu filho estão ligados a grupos extermínio, com controle de dentro do presídio”, completa. Apesar disso, ela ainda não pediu refúgio, porque ainda recebe suporte da União Europeia e da Frontline. “Não sei como vai ser meu retorno, inclusive psicologicamente. A conjuntura não está fácil para os defensores dos direitos humanos, mas meu caso já foi passado para a ONU. Vamos ver como fica”, lamenta. 

Desligamento do PEPDDH/PE

Por meio de nota, a Secretaria de Justiça e Direitos informou abriu uma sindicância para avaliar o caso do agente penitenciário que ameaçou Maria Clara Sena. A sindicância se transformou em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), que aplicou, como pena, ao funcionário público a suspensão de suas atividades por, no máximo, 30 dias. 

A Lei Estadual 14.912/12 e o Decreto Federal 6.044/07 garante que a pessoa que defende direitos humanos e, devido à sua militância, está ameaçada de morte pode solicitar inclusão no Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PEPDDH/PE). Apesar disso, ainda de acordo com a Secretaria, “a decisão de desligamento das Sras. Eleonora Pereira e Maria Clara de Sena do PEPDDH/PE foi estabelecida pelo Conselho Estadual do programa, órgão colegiado composto por entidades da sociedade civil e do estado. O PEPDDH/PE, por se tratar de um programa de âmbito estadual e de medida excepcional, só presta proteção para defensores/as de direitos humanos ameaçado/as que se encontrem residentes no território pernambucano, razão pela qual a Sra. Eleonora Pereira e a Sra. Maria Clara Sena, que atualmente residem fora do país, estão desvinculadas do programa”.

Segundo a SEDH, até então, não consta qualquer solicitação de reingresso de Maria Clara Sena ou Eleonora Pereira no Programa. Ainda assim, caso o requerimento seja feito, “o Conselho Deliberativo, em sua reunião, após o processo de análise, apreciará e definirá sobre o pleito. O PEPPDDH possui orçamento para proteção de defensores e defensoras dos direitos humanos e está em pleno funcionamento”.

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