Tópicos | clichês

A Gaiola Dourada, de Ruben Alves, explora duas circunstâncias clichês das comédias bem intencionadas. A primeira é a diferença de costumes entre países e seus cidadãos. A segunda é a revolução de expectativas quando algum personagem pobre torna-se rico de uma hora para outra. São temas que vêm lá de trás, dos primórdios do cinema, e mais ainda, do antigo teatro popular. Sempre funciona, de uma forma ou de outra.

No caso, temos uma situação de fato muito comum em certa época na Europa, a migração de cidadãos de um país mais pobre em direção a outro mais rico. Em particular, de Portugal para a França. Em determinada época era praticamente impossível encontrar um prédio em Paris em que a concierge (zeladora) não fosse uma senhora portuguesa.

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Havia muito espanhóis e espanholas também, e o fato foi explorado em filme recente com Fabrice Luchini, As Mulheres do Sexto Andar, de Jean-Louis Joubert. O ponto de vista francês se traduz no seguinte pensamento de fundo: "os ibéricos são mais felizes que nós, temos muito a aprender com eles". Evidente, essa superioridade condescendente mal disfarça o preconceito enrustido.

A história é a de um casal de portugueses, Maria (Rita Blanco) e José (Joaquim de Almeida), que vivem como empregados num dos bairros mais exclusivos de Paris. Maria é concierge do prédio, José é o pau para toda obra no edifício, mas também trabalha numa construtora de casas.

Estão na França há 30 anos, vivem felizes, mas, lá no fundo, desejam voltar para a terrinha. O problema é que seus filhos são franceses de nascimento e criação e nada têm a ver com Portugal.

A coisa toda muda de figura quando o casal, inesperadamente, se vê em posse de uma fortuna deixada por um parente distante. Herança condicionada à obrigação de se mudar para Portugal para tomar conta da propriedade da família, situada no interior.

Sem escapar aos seus clichês originais, o filme é simpático. Fez muito sucesso em Portugal e também na França. Não se trata absolutamente daquele tipo de história que surpreende, ou nos coloca diante de um ponto de vista radicalmente novo. Nada disso. Mas, sem trazer novidades, nem por isso se pode dizer que seja descartável. Talvez seu encanto venha da simplicidade da proposta - que passa pelas ótimas atuações de Rita Blanco e Joaquim de Almeida. Ambos bastante despojados do ponto de vista da interpretação, jamais tentados a compor caricaturas de seus personagens, esbanjam naturalidade.

Tudo isso, claro, deve-se à direção de Ruben Alves, que fala de coisas vividas, portanto recordadas com intensidade e uma ponta evidente de nostalgia. Desculpa-se, já que a comédia se insere sob a etiqueta das "doces memórias", certa superficialidade no tratamento do que seriam temas graves. Afinal, quase ninguém emigra porque quer ou por espírito de aventura. Deixa-se a própria terra forçado por circunstâncias adversas. E é mais comum encontrar no país de chegada algum preconceito do que votos de boas vindas. Há, então, esse tom de fábula, de delicadeza, de leveza - qualidades que passam por cima de eventuais carências. Podemos nos dar ao luxo de perdoar os filmes felizes. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

 

Nada mais irônico: críticos literários têm reclamado muito da mesmice na literatura, da acomodação dos autores às demandas de mercado. Nossa produção literária, no entanto, é de longe menos viciada do que os espaços de resenhas, críticas e ensaios existentes na mídia. Criamos uma absurda fábrica de clichês, dogmas estilísticos sem fundamento e comparações inócuas.

Quem der uma olhada na contracapa do livro Então você quer ser um escritor, de Miguel Sanches Neto, terá mostra bem expressiva. “Sensibilidade na composição de personagens”, “escritor de palavras espessas, bem pensadas, que não se combinam ao acaso”, “autor que opta por uma linguagem de entrelinhas”. E não são textos de orelha, anônimos, são trechos de comentários feitos por profissionais respeitados: Sérgio Amaral Silva, José Onofre e Daniel Piza.

Ainda poderemos chamar de escritor alguém que construa personagens sem sensibilidade? Que não pense a escrita, que combine as palavras por acaso? Que não use uma linguagem de entrelinhas, ou seja, que nada deixe para o leitor corroborar, completar ou até contrariar – isso é possível? E que diabos são palavras espessas? Seriam aquelas carregadas de significados. Sendo assim, faz-se literatura com outras, com tijolos esvaziados, que nada juntem à construção da obra?

Quando pesquisamos textos na íntegra, se analisamos fortunas críticas que surgem quando dos lançamentos, para conferir se pescas de excertos saem muito injustas, sempre descobrimos inúmeros outros lugares-comuns, repetições que buscam ratificar ideias sobre os autores, mas que saem como depósito de nada em lugar algum, investimento de ar comprimido em caixas rotuladas e prontas para alimentar as demandas desse tal “mercado”. Será mesmo que o mercado nos obriga a isso, ele nos tolhe tanto?

Nesta mesma coluna, Redor da Prosa, comentamos assertivas semelhantes, sobre livros de Sidney Rocha, Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito: “precisão da linguagem”, onde discutimos o improvável de tal escrita, pois a precisão subentenderia domínio do autor sobre o leitor, engessamento da obra, cristalização dos significados, e outras coisas que não existem em discurso algum, muito menos nos literários; “linguagem seca e afiada”, “de extremo comedimento”, e problematizamos a realidade dessas adjetivações que se tornaram modas das mais visitadas; e o “domínio da narrativa”, essa miragem que só ilude quem não reflete sobre como a literatura pode até ser brevemente constrangida, forçada contra a parede, mas jamais aprisionada, completamente submissa, dominada pelo escritor-feitor.

O responsável pela coluna não tem desses vícios? Só tem! Pilhas deles. Para a Cult, por exemplo, há uma década, afirmamos que “Carrero não somente decidiu escrever sobre seus complexos dilemas existenciais, mas também ampliá-los através de seus textos e trazê-los de volta para si, criando um círculo reflexivo de reverberação crescente”. Ora, o encontro do autor ou de qualquer leitor com bons personagens levam a isso, eles se relacionam com e refiguram nossa realidade, fazem-nos pensar e ampliam os horizontes que já tínhamos sobre os temas. Sem essa reverberação crescente, quando abríssemos um livro pela segunda ou terceira vez, a obra não seria a novidade que sempre é. Tal reverberação é um dos elementos do processo de atualização das obras, que inevitavelmente empreendemos.

É possível fazer crítica sem recorrer a clichês ou obviedades que podem nada acrescentar? Naturalmente, não.

Da mesma forma, contudo, como o ficcionista e o poeta tentam subverter expectativas – mesmo que seja uma amena tentativa de originalidade entre universos de procedimentos já tradicionalizados – podemos manter vigília constante e atenção às oportunidades de fugir das fórmulas feitas, das muletas mais gastas. Essa inquietude é que faz falta, não assistimos ao incômodo com a rotinização da crítica, com a preguiça que é tão maléfica à arte quanto aos observadores da mesma.

O piloto automático deveria ser uma ferramenta de complemento, saída para quando o cotidiano impusesse maior rapidez ou fuga, para suprirmos demandas concomitantes. Ao invés, nós o adotamos como animal doméstico que frequentemente toma conta da casa na ausência dos donos. Que não protestemos, então, se alguém vencer os muros, matar os cães e roubar nossas casas. A literatura e os leitores merecem ser recebidos por anfitriões mais dedicados do que temos sido.

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