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"Eu não nasci dissidente", diz a nova Prêmio Nobel de Literatura, a bielorrussa Svetlana Alexijevich, em uma entrevista publicada em um livro que reúne a maior parte de seu trabalho, publicado nesta quarta-feira na França.

"Como todas as estudantes soviéticas, eu lia a literatura autorizada, que incluía um monte de histórias de guerra em um tom muito mais vitorioso e heroico", conta a escritora questionada pelo filósofo Michel Eltchaninoff.

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Esta entrevista acompanha três das maiores obras de Svetlana Alexijevich publicadas em um volume único da coleção thesaurus da editora Actes Sud.

Trata-se de três "romances de voz" que combinam os mais terríveis testemunhos e os aspectos mais íntimos das duas tragédias do século soviético: a Segunda Guerra Mundial, contada a partir da perspectiva das mulheres que vivenciaram a experiência ("La guerre n'a pas un visage de femme") e daqueles que eram apenas crianças na época ("Derniers témoins") e o desastre nuclear de Chernobyl ("La supplication").

Ao se concentrar no cotidiano, nos detalhes prosaicos que fazem uma vida, a romancista compõe polifonias singulares distantes da doxa patriótica, heroica e sacrificial dos livros lidos durante a sua infância.

Como em cada um de seus livros, ele restitui as emoções humanas em toda a sua complexidade e mostra, por trás do espelho, o grande afresco trágico do século soviético.

"Eu não estou tentando produzir um documento, mas esculpir a imagem de uma época", explica a escritora em sua entrevista. "É por isso que eu levo entre sete e dez anos para escrever cada livro", diz ela.

"Eu não sou jornalista. Não permaneço no nível da informação, mas exploro a vida das pessoas, sua compreensão da vida", acrescenta. "Também não faço o trabalho de um historiador, porque tudo começa para mim no ponto de término da tarefa do historiador: o que se passava pela cabeça das pessoas após a batalha de Stalingrado ou após a explosão de Chernobyl? Eu não escrevo a história dos fatos, mas a história das almas", insiste.

A vencedora do Nobel de Literatura de 2015, a bielorrussa Svetlana Alexievich, retrata o império soviético de Chernobyl ao Afeganistão, em livros que não são encontrados em seu país, que não perdoa sua visão do "homo sovieticus", incapaz de ser livre.

A obra da ex-jornalista de 67 anos é rica em depoimentos ouvidos com paciência ao longo do tempo e já foi traduzida para várias idiomas. No entanto, nenhum livro da bielorrussa foi publicado no Brasil até hoje.

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"O fim do homem vermelho ou a era do desencanto", um retrato sem concessões, embora compassivo, do "homo sovieticus" mais de 20 anos depois da implosão do império da URSS, recebeu em 2013 o prêmio Medicis de ensaio na França.

"Conheço bem aquele 'homem vermelho': sou eu, as pessoas que me cercam, meus pais", explicou em uma ocasião.

"Não desapareceu. E o adeus será muito demorado", disse em outra oportunidade.

Por este motivo, ela diz que tem muito respeito pelos ucranianos que, com seus protestos, expulsaram do poder o ex-presidente pró-Rússia Viktor Yanukovich em 2014.

"Hoje o modelo para todos é a Ucrânia. Seu desejo de romper por completo com o passado é digno de respeito", opinou a vencedora do Nobel sobre o país devastado pelo conflito entre separatistas pró-Rússia e as forças ucranianas.

"Penso que o império ainda não desapareceu. E, pessoalmente, tenho a inquietante impressão de que não desaparecerá sem derramamento de sangue".

Nascida em 31 de maio de 1948 no oeste da Ucrânia em uma família de professores rurais, formada em Jornalismo pela Universidade de Minsk, Svetlana Alexievich trabalhou nos anos 1970 na editoria de cartas à redação do "Selskaya Gazeta", o jornal das fazendas coletivas soviéticas.

Na época ela começou a registrar em seu gravador os relatos de mulheres que lutaram durante a Segunda Guerra Mundial. Inspiraram seu primeiro livro "War’s Unwomanly Face", algo como a "A Guerra não tem uma face feminina".

"Tudo o que sabíamos da guerra foi contado pelos homens. Por quê as mulheres que suportaram este mundo absolutamente masculino não defenderam sua história, suas palavras e seus sentimentos?", questionou a escritora.

Censura

Ela foi acusada de "romper a imagem heroica da mulher soviética" e seu livro teve que esperar pela Perestroika, a reforma do sistema aplicada por Mikhail Gorbachev, para ser publicado em 1985. Com a obra, alcançou fama em toda a União Soviética e no exterior.

Desde então, sempre recorreu ao mesmo método para seus romances documentais, entrevistando durante muitos anos pessoas com experiências dramáticas: soldados soviéticos que retornaram da guerra no Afeganistão ("Os caixões de zinco") ou suicidas ("Encantados com a morte").

"Vivemos entre carrascos e vítimas, os carrascos são difíceis de encontrar. As vítimas são nossa sociedade, e são muito numerosas", declarou Alexievich à AFP sobre os protagonistas de seus livros.

Após a catástrofe nuclear de Chernobyl em 1986, a escritora trabalhou durante mais de 10 anos em "Vozes de Chernobyl: A História Oral de um Desastre Nuclear" (1997). O livro inclui depoimentos de milhares de homens enviados para trabalhar na central e outras vítimas da tragédia.

Belarus, presidida por Alexander Lukashenko desde 1994, um dos países mais afetados pelas consequências de Chernobyl, onde o tema continua sendo tabu, proibiu o livro.

Segundo a vencedora do Nobel, sua obra "não agrada" o presidente.

"Vivemos sob uma ditadura, há opositores na prisão, a sociedade tem medo e, ao mesmo tempo, é uma vulgar sociedade de consumo. As pessoas não se interessam pela política. É um período difícil", resumiu a escritora na entrevista que concedeu à AFP em 2013.

Os intelectuais bielorrussos também não parecem apreciar as opiniões de Svetlana, que reivindica a "cultura russa" da qual eles desejam distinguir-se e, ao mesmo tempo, passa a maior parte do tempo na Europa ocidental. Sua obra acaba por provocar uma mescla de atração e repulsa no país.

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