O Ministério Público Federal denunciou o médico legista Antonio Valentini por supostamente forjar o laudo necroscópico de um preso político em 1972 e ocultar a verdadeira causa da morte. Ele trabalhava no Instituto Médico Legal de São Paulo e foi responsável pelo exame do cadáver do dirigente do Partido Operário Revolucionário Trotskista, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter, capturado e morto por agentes da repressão.
As informações foram divulgadas no site do Ministério Público Federal em São Paulo (O número processual é 0009980-71.2016.4.03.6181. Os autos estão em tramitação na 4ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo.
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Segundo a Procuradoria da República, apesar dos claros sinais de tortura no corpo, Valentini atestou, com informações falsas, a versão oficial de que o militante morrera após troca de tiros com policiais.
A denúncia levada à Justiça Federal em São Paulo diz que Pfutzenreuter foi preso e torturado em 15 de abril de 1972 a mando do então chefe do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) em São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra - morto em outubro de 2015.
Outros opositores ao regime militar presos na unidade militar naquele dia relataram que o militante morreu após ser submetido a intensas sessões de tortura durante os interrogatórios, com a aplicação de golpes e choques elétricos e o uso de pau de arara.
O corpo foi encaminhado ao Instituto Médico Legal com solicitação de exame que indicava a versão dos agentes para a morte - Pfutzenreuter teria morrido ao reagir a uma abordagem policial e trocar tiros com os oficiais no Parque São Lucas, zona leste da capital paulista. O pedido de necropsia, segundo a denúncia, trazia anotada a letra "T", utilizada por órgãos de repressão para identificar os mortos por motivos políticos, considerados "terroristas".
Dez dias depois, Antonio Valentini emitiu o laudo necroscópico que apontou anemia aguda traumática como causa do óbito, provocada por tiros no braço e no peito.
"Os primeiros indícios de fraude vieram à tona quando o pai do militante, Oswaldo Pfutzenreuter, teve acesso a uma foto parcial do corpo em uma das várias visitas que fez aos órgãos oficiais em busca de informações sobre o filho", assinala o Ministério Público Federal.
Ao notar hematomas que foram descartados no atestado de Valentini, ele chegou a escrever uma carta ao então presidente Emílio Garrastazu Médici denunciando as violações de que Pfutzenreuter havia sido vítima, entre elas a falsidade da versão oficial sobre sua morte, sustenta a denúncia.
"A comprovação das fraudes veio com um parecer elaborado a pedido da Comissão Estadual da Verdade do Estado de São Paulo. Peritos avaliaram os dados que constam do laudo emitido por Valentini e constataram que o médico, além de ignorar as lesões causadas pela tortura, deixou de citar informações essenciais, como o trajeto das balas e sinais de hemorragia externa."
Segundo os especialistas, o documento é de péssima qualidade técnica, omisso e incompleto.
"Diferentemente do que consta dos registros oficiais, Rui foi privado de sua liberdade, torturado e morto, sem poder oferecer qualquer espécie de resistência, como ocorrera em diversos casos semelhantes durante o período de repressão aos dissidentes da ditadura militar que assolou o país. Por essas razões, com vistas a ocultar tais circunstâncias, é que o laudo elaborado pelo denunciado omitiu informações de tamanha relevância", escreveu a procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da denúncia.
Valentini chegou a ser alvo de um processo de cassação de seu registro no Conselho Regional de Medicina de São Paulo, mas a Justiça determinou o arquivamento do caso devido à prescrição na esfera administrativa. No âmbito penal, porém, o Ministério Público Federal destaca que a conduta de Valentini é imprescritível e impassível de anistia, uma vez que as violações foram cometidas em contexto de ataque sistemático e generalizado à população, em razão do regime ditatorial.
"O Estado tinha pleno conhecimento desse ataque, o que qualifica a prática como crime contra a humanidade", diz a Procuradoria.
A ação pede que a Justiça não só condene Valentini por falsidade ideológica, mas também determine o cancelamento de sua aposentadoria, já que o médico se valeu do cargo público que ocupava para cometer o crime.
Segundo a Procuradoria, os mesmos pedidos valeriam para outros agentes que participaram da elaboração do laudo necroscópico falso caso ainda estivessem vivos, entre eles o médico legista Isaac Abramovitc e o então diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Arnaldo Siqueira.
A reportagem não localizou Antonio Valentini. O espaço está aberto para sua manifestação.