Tópicos | repressão policial

Bombas de gás lacrimogêneo, tiros de bala de borracha, desespero e correria. As cenas poderiam remeter a uma guerra em um continente distante, mas elas ocorreram bem aqui, na capital pernambucana, no dia 29 de maio de 2021. Durante um protesto pacífico contra o atual governo federal - o #29MForaBolsonaro -, no centro do Recife, a repressão policial causou feridas emocionais e físicas em quem compareceu ao ato e até mesmo em alguns que nem sabiam o que se passava ali. Algumas delas permanentes.

Foi o caso de dois recifenses: Daniel Campelo, de 51 anos, e Jonas Correia de França, de 29. Ambos estavam às voltas com questões de seus trabalhos quando seus caminhos foram interceptados por balas de borracha. Os trabalhadores nem mesmo sabiam da manifestação, porém, ficaram marcados por ela para sempre. Após o incidente, Jonas perdeu a visão de um dos olhos. Já Daniel, perdeu o globo ocular e a paz de espírito. Pessoas ligadas a ele dizem que o assunto é proibido em sua casa e que, devido ao choque, ele se recusa a comentá-lo.

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Batalhão de Choque durante ato pacífico realizado no centro do Recife, em maio de 2021.  Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens/Arquivo

No entanto, outras vozes indignadas com tamanha violência vista e vivida naquele dia, fazem questão de falar alto a respeito. São pessoas que não podem mais aturar a violência descabida que cada vez mais aparece nos noticiários e que desde sempre existiu nas periferias de todo o país.

É o caso de Wictor Bernardo - também conhecido como OUTRO -, jovem negro, jornalista, ilustrador, grafiteiro; um artista periférico independente que explora assuntos referentes à política e sociedade em seus trabalhos. Ele não esteve no ato de quase um ano atrás por questões de saúde, mas a indignação em ver amigos, conhecidos e anônimos naquele cenário de guerra o fez querer "revidar" através de sua 'arma maior': a arte. "Eu não podia deixar de dar um retorno, é natural de mim", disse em entrevista exclusiva ao LeiaJá. 

Com 33 anos de idade, morador de um bairro periférico da Região Metropolitana do Recife, Wictor conta que foi ensinado desde criança, pelo avô, como um jovem negro como ele deveria lidar com a polícia. "Eu já sou um cara marcado pelo alvo policial nas minhas costas e na minha testa. Não consigo lembrar quantas vezes já fui alvo da violência policial. Mesmo que eu esteja certo, a polícia me mete medo. Então, minha função social como comunicador e artista é ressignificar esse sentimento meu e de outros jovens iguais a mim. Pra mim é mais justo revidar desse jeito". 

Foto: Divulgação/Rafael Bandeira

No dia do #29MFora Bolsonaro, Wictor acompanhou tudo pela TV e pela internet. Sofreu pelos amigos e anônimos que se depararam com tamanha repressão. "Fui vendo detalhe por detalhe, um cenário de guerra, muita gente caída no chão, gente sendo detida, amigos e artistas. Fiquei muito tenso, é uma questão até lógica porque eu fiquei pensando: 'podia ser eu, certamente ia rolar alguma coisa pro meu lado'''.

Poucos dias depois, um conhecido que visitou o centro da cidade, após o incidente, levou até o artista uma bala de borracha encontrada no local. Uma lembrança física daquele dia de terror. Foi aí que nasceu a obra 'Isto é uma bala de borracha', confeccionada com o próprio objeto que, além de ter funcionado como uma espécie de pincel, também acompanha a ilustração dentro da moldura, logo atrás de um vidro propositalmente rachado. "Trata-se de um 'quadro-experiência'. Além de ser uma experiência visual, você também pode pegar no objeto. A ideia era simbolizar esse momento." Completando o conceito, Wictor cita uma frase do rapper pernambucano Diomedes Chinaski: "A arte mata a morte". 

Foto: Divulgação/Rafael Bandeira

Exposição e rifa

'Isto é uma bala de borracha' está exposta no SESC Santo Amaro, localizado no bairro de Santo Amaro, região central do Recife, como parte de uma mostra promovida pelo Coletivo Pão e Tinta. Quem se interessar pela obra pode, também, participar de uma rifa que está sendo realizada pelo próprio artista. Os números podem ser adquiridos através do Instagram @metademacaco. O resultado será divulgado no mesmo perfil, no próximo domingo (29), dia em que o #29MForaBolsonaro completa um ano. 

Foto: Divulgação/Rafael Bandeira

Em tempo

As notícias sobre a ação policial que reprimiu o ato no Recife, naquele 29 de maio de 2021 ganhou o país rapidamente. No dia, o governador Paulo Câmara fez um pronunciamento repudiando "todo ato de violência" e afirmando que o oficial comandante da operação e outros policiais envolvidos seriam imediatamente afastados. Até aquele momento, nem mesmo ele sabia de quem havia saído a ordem para que o Batalhão de Choque fosse às ruas para dispersar a manifestação com tamanha truculência. Tal informação continua em sigilo. 

Três dias depois, o comandante da Polícia Militar de Pernambuco à época, coronel Vanildo Maranhão, pediu exoneração do cargo. Pouco mais tarde, o então Secretário de Defesa do estado, Antônio de Pádua, colocou seu posto à disposição do governador, que aceitou o pedido. 

Batalhão de Choque durante ato pacífico realizado no centro do Recife, em maio de 2021.  Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens/Arquivo

À época, a SDS afastou 16 policiais militares. O terceiro sargento Reinaldo Belmiro Lins foi indiciado por lesão corporal gravíssima e omissão de socorro pelo tiro que atingiu Jonas França. Já o policial militar que atirou em Daniel só foi identificado em março deste ano, 10 meses após o ocorrido, mas não teve seu nome revelado.

Também no mês de março, o inquérito policial militar instaurado foi concluído com o indiciamento de quatro dos investigados por prática de crime militar, sendo dois oficiais e dois praças. Segundo a Secretária de Defesa Social, todos foram submetidos a processos disciplinares. Os autos do inquérito foram, então, enviados ao Ministério Público para análise e possível oferecimento da denúncia. 

Já o capitão Elton Máximo de Macedo, que também era investigado, ganhou uma promoção a major, do Governo do Estado, em fevereiro deste ano, por antiguidade. Ele estava no comando do Batalhão de Choque naquele 29 de maio. Entre as vítimas que perderam a visão, Jonas acabou fazendo um acordo com o governo do Estado e recebeu uma indenização de valor não revelado. Daniel, entretanto, segue esperando uma reparação do governo pernambucano. 





 

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