João Maurício Adeodato

João Maurício Adeodato

Conversas Filosóficas

Perfil: Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Pesquisador 1-A do CNPq, Livre Docente da Faculdade de Direito da USP e Coordenador dos Cursos de Direito do Grupo Ser Educacional. Currículo em: http://lattes.cnpq.br/8269423647045727

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O Estado paternalista já nos diz o que fazer

João Maurício Adeodato, | sex, 20/07/2012 - 12:56
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Uma coisa é a sociedade pressionar as pessoas a um tipo de comportamento padronizado, do que tratamos na coluna da semana passada. Outra, e este é o tema agora, é o Estado, por meio de seu direito, obrigar as pessoas a se conduzirem de determinada maneira. O debate filosófico é o mesmo: se cabe constranger pessoas para seu próprio bem, se a ordem jurídica positiva deve proteger alguém de perigos quando esse alguém, sendo capaz e adulto, rejeita tal proteção.

Isso porque o direito é coercitivo, ou seja, obrigatório, as condutas juridicamente relevantes são coibidas por sanções violentadoras que podem prejudicar grandemente a vida das pessoas. Direito e moral há muito se afastaram. Na sociedade complexa contemporânea ocidental o direito se separou das outras ordens normativas, como também da religião, por exemplo. Se um cidadão não aceita determinadas regras religiosas, como a comunhão e a indissolubilidade do matrimônio pregadas pelos católicos, basta que se afaste daquele ambiente normativo e não precisará segui-las. Já ao descumprir regras jurídicas, a pessoa se arrisca a consequências desagradáveis, a possibilidade de coação pelo Estado e sua ordem jurídica. Aí está está a essência desse fenômeno intrigante e apaixonante, o direito.

O problema é até onde pode ir o direito ao proteger uma pessoa contra si mesma, proibindo atos que ela quer praticar, o que vai desde o consumo de drogas até a recusa a ter uma alimentação balanceada.

O paternalismo é também tema de ordem constitucional, pois diz respeito à competência do Estado para intervir no domínio da autonomia privada. Em termos sistemáticos, a questão traz à tona, inicialmente, o problema da razoabilidade e da proporcionalidade das restrições a uma conduta lícita, garantida constitucionalmente como toda conduta não-ilícita, já que ninguém está obrigado a praticar ou deixar de praticar qualquer ato a não ser em virtude da lei, pelo menos nas democracias modernas (princípio da licitude).

Mais ainda, essa lei precisa ser constitucional, não pode contrariar a Carta Magna. Este é o princípio básico da legalidade, no Brasil positivado no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal; em outras palavras, eventuais restrições legais devem ser sempre proteções e nunca impedimentos. Um direito fundamental não pode ser restringido por lei, por conta da supremacia constitucional, mas apenas adequado ao exercício de outro direito fundamental. Só um direito fundamental pode “restringir” outro direito fundamental.

Tal argumento civilizatório parte da convicção de que a liberdade, enquanto direito fundamental, é corolário da isonomia (“formulação positiva do direito à igualdade”, igualdade perante o ordenamento jurídico) e da “capacidade de o ser humano reger o próprio destino” (autodeterminação). Ora, esses são exatamente os três princípios da razão que fundamentam a dignidade da pessoa humana em Immanuel Kant, o grande arauto do ilumismo da cultura ocidental, o imortal Kant que nos impregna a todos. Segundo Hannah Arendt, também uma kantiana, fumante inveterada que se recusava a “ser escrava da própria saúde”, o ser humano adulto não pode ser educado por outros adultos, como se alguns não tivessem condições de escolher o que é desejável para si. Se as pessoas divergem sobre o bem, que cada um procure o seu e tolere as diferenças. Esta a filosofia retórica da tolerância, antipaternalista.

O outro lado da moeda é o ônus social que pode causar uma pessoa que gosta de “viver perigosamente”, livre e sem restrições. Como os jovens que pulam de abismos, amarrados a precários cordões elásticos, dirigem veículos sob efeito de drogas ou têm relações sexuais sem proteção, a velha audácia da juventude, que se julga imune às vicissitudes da vida, ao malfadado azar de que nos falou Nietzsche. Sim, pois a recusa de usar cinto de segurança pode ser pior do que matar em caso de acidente, uma vez que o morto só custa à sociedade o enterro (pois a dor dos entes queridos pertence à esfera privada), mas causar lesões que vão onerar o sistema social de saúde, público e privado, por anos e anos a fio. Para uma filosofia antipaternalista, contudo, isso pode levar a leis que apliquem multas a quem não caminhar seis quilômetros por dia e se recusar a comer aveia, alface e iogurte desnatado. Até onde pode ir o direito? Esta é a questão.

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