João Maurício Adeodato

João Maurício Adeodato

Conversas Filosóficas

Perfil: Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Pesquisador 1-A do CNPq, Livre Docente da Faculdade de Direito da USP e Coordenador dos Cursos de Direito do Grupo Ser Educacional. Currículo em: http://lattes.cnpq.br/8269423647045727

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Corrupção sistêmica, democracia e 'natureza' humana - uma velha tese

João Maurício Adeodato, | ter, 22/12/2015 - 09:58
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Toda opinião está ancorada em alguma concepção sobre a “natureza” humana. E uma grande questão antropológica da ética ocidental tem sido a seguinte: a índole original do ser humano é boa e a sociedade o perverte ou é má e a sociedade o melhora? Para exemplificar esse debate, já na era moderna, temos o confronto das antropologias de Rousseau e de Hobbes, respectivamente. Minha tendência é acreditar mais em instituições do que em seres humanos, ou seja, somente instituições sólidas podem frear a ânsia humana pelo poder. Mas instituições são criadas, moldadas e dirigidas por nós mesmos: assim como nós, elas não são nada, mudam a todo momento.

O brasileiro parece estar em mais um momento de baixa estima, mas nós não temos uma “antropologia brasileira”, somos humanos; ocorre que vicissitudes históricas trouxeram nosso país a um total desprezo pelas instituições democráticas. Uma vista perfunctória mostra que constante é unicamente o casuísmo da força militar, uma instituição historicamente envergonhada de ter sido sempre desviada de seu papel institucional. Que paradoxo! Releiam.

Em 1822 começou o primeiro rompimento institucional, a Proclamação da Independência por um príncipe português. Em 1889, sob a suposta liderança do Marechal Deodoro da Fonseca, o imperador D. Pedro II foi deposto e banido do país. Em 1891, com a renúncia de Deodoro, a Constituição mandava que fossem realizadas novas eleições, mas o vice Floriano Peixoto apossou-se do cargo e governou até 1894. Em 1930 Getúlio Vargas foi derrotado na eleição para presidente por Washington Luís, que foi deposto para Getúlio assumir como ditador, prometendo eleições. Em 1937 o mesmo Getúlio suspendeu as eleições que já havia marcado e deu novo golpe, o “Estado Novo” (eu, particularmente, acho impressionante como tantas importantes cidades brasileiras tenham monumentos, avenidas e instituições homenageando esse sujeito). Em 1955 o Presidente eleito Café Filho teve um enfarte e assumiu Carlos Luz, o qual, usando prerrogativas constitucionais, demitiu o Ministro da Guerra, general Henrique Lott, e por isso foi em poucas horas deposto. O Congresso Nacional curvou-se mais uma vez a esse arbítrio e colocou na Presidência da República o presidente do Senado, Nereu Ramos. Aí Café Filho, já recuperado do enfarte, tentou reassumir, mas sofreu impeachment pelo Congresso, pressionado pelos militares. Em 1961 foram eleitos presidente e vice Jânio Quadros e João Goulart, de partidos e ideologias rivais. Jânio jogou o blefe da renúncia, que os militares aceitaram, sem permitir que o vice assumisse. O Congresso subserviente aprovou uma emenda parlamentarista para reduzir os poderes presidenciais e Goulart assumiu. Mas logo foi deposto por mais um general ou marechal, Humberto Castello Branco, que assumiu a Presidência e se comprometeu a convocar eleições. Em 1968 Costa e Silva fechou o Congresso e deu um golpe dentro do golpe, porém teve um acidente vascular cerebral em 1969 e o vice Pedro Aleixo foi impedido de assumir pela junta dos três...

Nesse fracasso brasileiro, então, pensei, as instituições democráticas tradicionais jamais tiveram papel importante. Ora, se o direito brasileiro nunca se baseou nelas, e toda sociedade tem seu direito (ubi societas ibi jus), deve haver procedimentos jurídicos específicos, fora da legitimidade democrática. Daí surgiu minha tese, publicada já em 1985 e desde então infelizmente confirmada, de que a abundância desses procedimentos no Brasil teria alguma função social importante. Ela era simples: se o sistema político e jurídico brasileiro não se legitima pelo procedimento democrático, se o direito não regula a política, ambos são regulados por procedimentos “alternativos”. Aí tentei diferençar essas diversas estratégias, listá-las: o jeitinho; as exceções às regras (casuísmos); o nepotismo, que já está na carta de Caminha; o subsistema das boas relações, que Luhmann chama Kontaktsysteme; o clientelismo; as regras processuais de procrastinação, sempre protegendo o ilícito; a ineficácia planejada da lei; imunidades para políticos criminosos comuns etc. Claro que a simples legalização de regras não é o bastante para transformá-las em procedimentos democráticos, pois países periféricos, técnica e eticamente deficientes como o Brasil, constroem uma estrutura jurídica oficial que apenas estrategicamente se apresenta como democrática.

Desses procedimentos alternativos, lembram-se meus colegas dos anos 1990 no Seminário de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco, o mais importante era a corrupção. Ela não seria propriamente uma disfunção, dizia eu, mas sim um mecanismo para assegurar uma legitimação que não poderia ser garantida pelas instituições do procedimento democraticamente organizado. Era e é um mecanismo de azeitar uma máquina estatal incompetente e unir as elites subdesenvolvidas em torno de um sistema prebendário e predatório de distribuição de dinheiro, vantagens e poder em geral. “Torcer e ajeitar”, para falar com Tobias Barreto.

Por isso não acredito que a política é assim ou assado, esta é a diferença entre o cético e o pessimista. O pessimista, assim como o otimista, acredita que o mundo é desta ou daquela maneira, má ou boa (em sua opinião). Mais ainda numa democracia, podemos escolher melhor nossos governantes do que temos feito até hoje, filtrar melhor nossas opções, mudar de rumo. Não há estatísticas precisas sobre nossa doença congênita, mas, suponhamos, os brasileiros medíocres e corruptos, que furam filas pelo acostamento, por exemplo, são 30 %. Se os políticos corruptos são 90 %, há algo errado nos filtros democráticos. Basta acompanhar as atitudes dos políticos que escolhemos: como votam, como se aliam, quais são os escravos dos empresários que os financiam. Quem sabe, sonho eu, vedar a política como profissão, transformá-la num fardo. Mas isso pressupõe educação, acabar com as necessidades básicas que geram o clientelismo. Na miséria, do corpo ou do espírito, não pode haver democracia.

Miguel Reale

João Maurício Adeodato, | qui, 30/10/2014 - 11:35
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Crucial para o direito (ou, como prefere Reale, a “experiência jurídica”) é o conceito de validade, cuja vagueza deve ser reduzida a pelo menos três sentidos diferentes.

O primeiro diz respeito à validade formal, também chamada técnica ou dogmática, qualidade que se atribui a uma norma elaborada de acordo com o procedimento previsto pelo sistema estatal positivo, o qual também prevê a competência do órgão que a elaborou; além de confirmar o rito de elaboração e a competência, a validade formal implica conhecer o alcance e a estrutura da regra, buscando determinar sua aplicabilidade.

O segundo sentido leva o jurista a buscar compreender a transformação da regra jurídica em “momento de vida social”. É a correspondência, por parte do grupo social, ao conteúdo da regra: a eficácia.

Finalmente, o jurista não pode deixar de indagar sobre o fundamento das normas jurídicas, isto é, em que medida elas realizam ou não o valor justiça e os demais valores protegidos pelo direito. O fundamento aparece como o valor ou complexo de valores que legitima uma ordem jurídica positiva e seu estudo deve ser feito em relação com o direito positivo em totalidade, vale dizer, observando o cumprimento da regra em interseção com as demais que compõem o ordenamento, numa relação de progressiva fundamentação em todo o sistema.

O conceito fenomenológico de “intencionalidade da consciência”, segundo o qual conhecer é sempre conhecer algo (aliquid), aceito por Reale, leva-o a concluir por um dualismo irredutível entre sujeito e objeto, servindo-se do termo ontognoseologia para denominar a correlação transcendental que existe entre esses dois pólos do conhecimento. Em outras palavras, não há, a rigor, uma gnoseologia que não se dirija ao Ser (“ontos”). Conhecer é conhecer o ser. Ora, a partir daí, o sujeito não poderia jamais ser reduzido ao objeto, ou vice-versa, uma vez que sempre existirá, necessariamente, algo que poderá ser convertido em objeto dentro do campo do conhecimento e algo de subjetivo a relacionar-se com ele. Reale pode ser dito assim um autor realista (de res, coisa), em oposição aos nominalistas, retóricos, céticos, subjetivistas.

Isso leva a um segundo dualismo, aquele entre natureza e espírito, ou, em termos mais kantianos, entre ser e dever ser. Do mesmo modo que, no plano gnoseológico, sujeito e objeto não podem ser compreendidos um sem o outro, correlacionando-se ontognoseologicamente, no plano do ser histórico o ser humano e a cultura “são enquanto devem ser”, sem que possam ser compreendidos fora deste plano, na polaridade dialética entre ser e dever ser.

Esta configuração tampouco seria possível sem a noção de valor emprestada dos neokantianos. O conceito de valor, que para ele é inconcebível fora do ser histórico, leva Reale a afirmar essa polaridade ética, a qual se resolve num processo de mútua implicação. Esta polaridade ética está na essência mesma do ser humano, o qual não pode ser concebido – assim como a cultura – sem aquela dimensão axiológica que projeta no curso da história (O Direito como Experiência, 1968).

Exatamente por conta desses dualismos, afirma Reale, o conhecimento é dialético. Ele é relacional, ou seja, seus dois elementos – sujeito e objeto – estão em constante ir e vir um ao outro e este interrelacionamento é interminável, pois os dois elementos do conhecimento são irredutíveis um ao outro. Essa é a dialética de implicação-polaridade (ou de complementariedade) de Reale.

O ser humano tende a exteriorizar-se, projetando seu espírito (valorando) na natureza que o cerca; é exatamente essa projeção que constitui a cultura, os bens que o espírito humano valora para fins específicos. A cultura assume um caráter essencialmente histórico e contingente, não se podendo cogitar de um evolucionismo ou determinismo nesta ou naquela direção. O objeto só se torna objeto de cultura em virtude da intencionalidade da consciência objetiva, nela aparecendo como objeto valioso. É por isso que a cultura não é algo intercalado entre natureza e espírito, mas sim o próprio processo dialético que o espírito realiza sobre sua compreensão da natureza, um processo histórico-cultural, o qual coincide com o processo ontognoseológico. É o que Reale vai denominar “historicismo axiológico”.

Finalmente, detecta-se uma polaridade entre forma e conteúdo no tridimensionalismo de Reale, sempre em busca de um equilíbrio eclético e procurando evitar um normativismo ou sociologismo. Uma exacerbação de formalidade distancia o direito da realidade, enquanto um excesso de conteúdo priva o direito da objetividade necessária. Daí haver uma necessidade de adequação entre o esquema normativo e a realidade fática: e é precisamente o valor, ou “dever ser axiológico”, que realiza esta adequação.

Reale ob­serva a distinção de Kant entre conceitos “ostensivos” e “heurísticos”, estes funcionando como “princípios regulativos” do conhecimento, e pretende ir além da interpretação que faz do filósofo ao emprestar uma maior dignidade à conjetura, mesmo tendo o cuidado de não tomar posição cética ou retórica. Reale entende que o horizonte do conhe­cimento é o infinitamente determinável, pois não existe apenas uma diferença qualitativa entre objetos cognoscíveis e incognoscíveis mas também quantita­tiva, isto é, mesmo nos objetos conhecidos permanece o pano de fundo no qual só o pensamento conjetural consegue penetrar. Assim, mesmo diante de objetos tidos como conhecidos, a conjetura é ato gno­seológico legítimo. Do outro lado, o “trans­objetivo" também tem seu lado cognoscível, o que viabiliza a con­jetura para todas as regiões do conhecimento; como em Hartmann, e contra o neokantismo de Marbourg, a coisa em si kantiana adquire um sentido positivo na gnoseologia de Reale.  Além disso, o postu­lado de que a metafísica forma a vanguarda da ontologia, ou de que o pensa­mento conjetural prepara o terreno para um conhecimento mais rigo­roso do experienciável, é expressamente defendido por Reale.

Conceituar rigorosamente o pensamento conjetural não é tarefa fácil.  Principalmente quando, ao contrário dos retóricos, não se admite que todo conhecimento é conjetural, mas sim que há formas de conhecimento mais e menos definitivas. Reale se adverte disso e cuida de distinguir, entre os diversos sentidos da conjetura, qual aquele que lhe confere legitimidade gnoseológica.

Incialmente cabe separar a conjetura enquanto mero palpite da conjetura verossímil, esta, sim, adequada à metafísica. Ao criticar Popper por não fazer a distinção e dis­solver ambos os sentidos sob uma acepção demasiado ampla, Reale afirma que a conjetura difere do palpite por “resultar critica­mente de razões de plausibilidade ou verossimilhança” (Verdade e conjetura, 1983).

Como “conjeturar é, sempre, uma tentativa de pensar além da­quilo que é conceitualmente verificável”, o pensamento con­jetural não se confunde com a analogia, com a probabilidade, com a intuição ou com a fé, e nem com a linguagem metafórica dos mitos, por exemplo, ainda que estas formas de abordagem venham ganhando mais e mais espaço na teoria do conhecimento e Reale lhes reconheça legitimidade. Todas são instrumentos e formas de expressão do “pensar por idéias” (Kant). A conjetura é mais ampla do que a analogia e a probabilidade, mais desvinculada da experiência direta, pode lançar mão delas mas não está adstrita à similitude e à estatística que as condicionam. Por seu caráter pluralista e hipotético, a conjetura é também mais abrangente do que a intuição – a apreensão imediata e direta de um objeto singular.  Ainda que se utilize da intuição, a conjetura não se confunde com ela.

Na gradação gnoseológica subsidiada por Reale, de ou­tro lado, o problema central é estabelecer a linha divisória entre a inves­tigação “positiva” e a conjetural. Se a conjetura possibi­lita “suposições plausíveis porque fundadas na experiência, e ja­mais em contradição com ela...”, se a experiência é o parâ­metro, necessário investigar qual o critério para separar o que deixou de ser “con­jetura” e passou a ser “experiência”. Conjetura é um modo de pensar que vai além da experiência, que transcende o evidente e o empiricamente comprovável, ainda que os resultados eventualmente alcançados pelo pensamento conjetural tenham de se conciliar com o experienciável. O problema é que conceitos como “evidente” “empírico” e  “comprovável” são com­plexos e de difícil compreensão. Daí surgem questões tradicional­mente importantes como a de saber se e até que ponto as matemáti­cas podem ser incluídas nos conceitos de “empiricamente comprová­vel” e “experiência” ou em que medida uma descrição do ambiente como, por exemplo, a de Newton, poderia ser considerada “evi­dente”.

Reale percebe o paradoxo, mas afirma que o pensa­mento conjetural não deixa de atender às exigências do pensamento cien­tífico, embora não se confundam, pois “rigor científico” e “verdade” são conceitos que resistem à análise, correspondência semântica confusa. Uma base conjetural subjaz a todo conhecimento, diz Reale, afirmando ainda, na reflexão sobre Sócrates, “que a linguagem, o nosso Logos”, é “o lugar de nossa verdade” (Verdade e conjetura, 1983). Mas Reale defende algo mais do que uma “verdade” in­tradiscursiva. Não esconde a pretensão de ter a conjetura abrindo caminho para uma conhecimento mais “firme” do que ela própria, na direção de uma “certeza peculiar às ciências”. Mas é certo que sua contribuição vai bem mais longe do que a tradição essencialista da fi­losofia do direito tradicional, ainda que persista na convicção de que algo se esconde por trás da língua e da relação entre signos.

Nessa nova fase de seu pensamento, Reale traz de volta a dig­nidade gnoseológica de conceitos como os de verossimi­lhança, pro­babilidade ou metáfora, o que tem reflexos imediatos na filosofia do direito e nos já tradicionais questionamentos sobre a cientifi­cidade do conhecimento jurídico: “De res­to, muitas asser­ções que andam por aí como ‘verdades’ assentes, no campo da socio­logia ou da economia, e até mesmo no das ciências tidas como ‘exatas’, não passam de conjeturas inevitáveis, que se­ria melhor recebê-las como tais, mesmo porque são elas que, feitas as contas, compõem o horizonte englobante da maioria de nossas convicções e atitudes” (Verdade e Conjetura, 1983).

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Miguel Reale (parte 1)

João Maurício Adeodato, | seg, 07/07/2014 - 09:59
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Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí, São Paulo, no dia 06 de novembro de 1910, e faleceu na cidade de São Paulo em 14 de abril de 2006. Tornou-se bacharel em direito aos 24 anos e, aos 30, catedrático de filosofia do direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Com essa tese de cátedra, Fundamentos do Direito, de 1940, lançou as bases de sua teoria tridimensional do direito, denominação pela qual ficou conhecida sua filosofia do direito. Eu prestei exame de seleção para ser seu orientando de mestrado em janeiro de 1979 e, no dia de seu aniversário de 70 anos defendi minha dissertação, tornando-me seu último orientando, posto que atingira a idade da aposentadoria compulsória. Pretendo agora, em dois artigos aqui no LeiaJá, fornecer um resumo de sua obra jurídica.

Pode-se tentar detectar uma evolução na história do pensamento jurídico ocidental que desemboca no tridimensionalismo jurídico colocado por Reale. Essas três dimensões, fato, valor e norma, já foram respectivamente consideradas pelas diversas escolas como objeto privilegiado da pesquisa em direito: o culto à norma pelas teorias normativistas, cuja precursora foi a Escola da Exegese, que chega a reduzir o direito à lei escrita; em uma reação a esse apego à idéia de norma, a Escola do Direito Livre toma sobretudo o fato social como fonte da realidade jurídica; e a filosofia dos valores, com sua concepção de cultura, tem o valor como sentido do direito e ressalta sua importância em detrimento das demais dimensões.

A influência de Kant é nítida e confessa no pensamento de Reale, sobretudo na tentativa de rigor metodológico e na procura de unidade concreta para sua interpretação de fatos, valores e normas. O método assume o papel de “condição de possibilidade” na compreensão do fenômeno jurídico. Por isso revestem-se de fundamental importância os pressupostos metodológicos adotados por Reale, funcionando quase que como princípios transcendentais da estrutura tridimensional.

Miguel Reale afasta-se do criticismo transcendental na medida em que não admite uma estrutura predominantemente lógico-formal no ato de conhecer, considerando o elemento estimativo ou axiológico como responsável pela dinâmica do conhecimento enquanto historicidade, ou seja, durante seu processo. A crítica deve exigir o elemento axiológico de modo necessário, pois que implica uma distinção e uma escolha entre os elementos logicamente válidos e aqueles que não o são; o valor não seria então meramente transcendente mas sim imanente à estrutura mesma do ato gnoseológico.

Os valores, para Reale, não existem em si mesmos, de forma absoluta, independentemente da existência e da história do ser humano, do ser que os percebe. Os valores são produto da consciência e da ação e são realizados historicamente. Isso não implica, porém, relativismo: uma vez criados, realizados e estabelecidos pela cultura, os valores permanecem para sempre no horizonte daquela comunidade e a conformam e individualizam. São as “invariantes axiológicas”.

Mas o único valor absoluto é a própria pessoa humana, pois ela é a condição necessária para a existência de qualquer valor. Os demais valores, não fundantes, mas derivados, são históricos, resultantes do reflexo do quadro cultural na consciência das pessoas e, portanto, variáveis no tempo e no espaço. A história submete os valores a um processo, pois, ao serem captados e racionalizados como fins, eles precisam ser considerados “em relação aos meios idôneos para sua realização”.

Reale constrói uma terceira dimensão, ao lado do ser (real) e do dever ser (ideal), para encaixar sua axiologia, posto que os valores “são enquanto devem ser”, ao mesmo tempo em que seu dever ser tende à realização no mundo específico da cultura. Reale busca assim superar, por meio de uma “integração normativa de fatos segundo valores”, as posturas de ênfase exclusiva sobre o fato (realismo jurídico), a norma (normativismo) e o valor (jusnaturalismo).

Reale observa o direito por meio da descrição fenomenológica e procura atingir a essência eliminando o contingente e atendo-se aos dados imediatos da consciência, mas acrescentando uma valoração crítica e histórica. Reale conclui pelo caráter teleológico da conduta humana, essencial e necessariamente eivada das três dimensões que compõem sua realidade.

O valor apresenta, assim, três funções em relação a sua atuação sobre a experiência jurídica; como fator constitutivo da realidade (função ôntica), como prisma para compreender tal realidade (função gnoseológica) e como razão determinante da conduta, já que só se age em direção a fins (função deontológica).

A conduta humana assume, na fenomenologia da ação observada por Reale, cinco modalidades diferentes: religiosa, quando o móvel de agir é um valor transcendente; moral, quando o agente se prende à conduta por si mesmo, seja tal conduta autônoma – a norma de conduta é fixada pelo próprio agente –, seja ela heterônoma – o agente reconhece em outrem o poder de ditar-lhe normas de conduta moral; convencional, quando o sujeito obedece a determinadas normas por conveniência própria; econômica, quando os participantes se inter-relacionam em função de bens materiais; e jurídica, quando os agentes estabelecem entre si uma bilateralidade atributiva, pela qual se obrigam e são obrigados a determinados comportamentos. De qualquer modo, em todas as condutas humanas há sempre uma energia espiritual, captada por um valor objetivo predominante na comunidade, o qual tende a normatizar-se.

Na perspectiva de Reale, o único direito observado é o positivo, o que permite classificá-lo entre os positivistas, numa visão quase que uniformemente generalizada nos juristas posteriores a Savigny, em que pesem suas numerosas divergências internas. E esse direito positivo de Reale é composto de três fatores ontognoseologicamente distintos, se bem que inseparáveis, quais sejam: fato, valor e norma (Teoria Tridimensional do Direito, 1968).

Não somente o direito mas também a ordem moral é tridimensional, diferindo da jurídica por dirigir-se à subjetividade consciente e livre do ser humano. A ordem jurídica visa principalmente o respeito a uma ordem objetiva nas relações entre pessoas. As duas ordens normativas diferem, porém interagem de tal modo que uma não se realiza sem a outra.

As três dimensões do direito são vistas indissociadamente: são valores que se concretizam historicamente nos fatos e relações intersubjetivas que se ordenam normativamente. Utilizando apenas um critério de prevalência, evitando conferir juridicidade a qualquer uma dessas dimensões em separado, Reale estabelece os seguintes campos de estudo: o direito como valor, estudado teoricamente pela deontologia jurídica e, no plano empírico, pela política jurídica; o direito como norma, objeto da jurisprudência (no sentido clássico) ou ciência do direito, no aspecto dogmático, e pela epistemologia jurídica, sob a perspectiva do conhecimento; e o direito como fato, estudado pela história, sociologia e etnologia do direito e pela culturologia jurídica.

Assim não há qualquer separação ou predominância absoluta de um fator sobre o outro, mas Reale admite a norma como momento culminante da experiência jurídica, para o jurista propriamente dito, embora sempre a norma implique um equilíbrio entre fatos (dados empíricos de um determinado momento histórico-social) e valores exigidos (ideais políticos, pressões de todos os tipos, ideais morais, religiosos etc.). As normas jurídicas, ao contrário das leis físicas, não são simples captação descritiva do que constitui o fato, mas sim tomada de posição constitutiva frente a um fato. Por sua própria natureza, as normas estão sempre em estado de tensão: referem-se a fatos e valores passados, tendendo à conservação, e a fatos e valores novos, na medida em que aparecem, tendendo à renovação.

No mesmo sentido, quando um valor é dominante, tende a realizar-se por intermédio de uma norma, dirigida ao ser humano, o qual é fundamentalmente liberdade, na medida em que opta. O fato e o valor vivem também em constante estado de tensão, pois os valores penetram no mundo real, tendem a realizar-se; a norma, por seu turno, reúne o fato e o valor dentro de si e projeta-se para o futuro como parâmetro de conduta.

Esse fenômeno que se denomina o direito só existe porque o ser humano se propõe fins; todo e qualquer ato jurídico possui um móvel de conduta, o qual lhe fornece o sentido. Esses fins são exatamente os valores que a conduta visa realizar.

Se é verdade que nem tudo no valor pode ser explicado racionalmente, não se pode esquecer de seus parâmetros racionais, pois o valor só se transforma em fim na medida em que é representado racionalmente. Isso significa que o valor é compatível com a razão humana, muito embora não se reduza a ela.

Uma vez que a axiologia constitui a base da teleologia, no pensamento de Miguel Reale, e os fins se baseiam nos valores, estes assumem o papel de fins últimos, ou seja, são fins em si mesmos, nunca meios para outros fins. Os valores são possibilidades para que o sujeito possa atuar, na medida em que ele os haja elegido como fins para sua conduta. Um problema central é a verificação de que os valores variam, ou seja, sua objetividade é relativa. Tal objetividade está garantida, porém, pela própria estrutura da consciência humana, valor básico e fonte primeira de todos os demais valores. O conteúdo valorativo modifica-se, explica Reale, porque variam as possibilidades da consciência ao longo da história, quer dizer, se a fonte – a consciência – varia e é influenciada pela história, os valores – seu produto – também o são. É aqui um dos pontos da diferença entre realidade física e realidade espiritual: a realidade espiritual é da consciência, isto é, projeta valores, pois as relações entre as consciências dos indivíduos são relações de valores.

O direito é uma parte importante na integração entre ser e dever ser que se realiza no ser humano que apreende valores, daí o direito se colocar em função de fins. A conduta escolhe maneiras de agir em detrimento de outras e essas preferências têm em vista realizar valores, daí a normatividade implicar tomada de posição, vontade, ou seja, opção de valor, meio e fim. Reale procura então unificar em uma totalidade sua concepção da realidade jurídica, entendendo fato, valor e norma como postura metodológica, dirigida a possibilitar o conhecimento. O direito é (onticamente) uno e (ontognoseologicamente) aparece como tridimensional. É o tridimensionalismo dinâmico (Fundamentos do Direito, 1940).

Duas das principais características dos valores, a realizabilidade e a inexauribilidade, são fundamentais para uma devida compreensão filosófica dos problemas referentes à validade, à eficácia e ao fundamento do direito. Isso ocorre porque tanto o processo histórico é desprovido de sentido sem o valor, quanto este permanece inválido se não fornece sentido a um determinado momento histórico, realizando-se. Por outro lado, o valor está na totalidade do processo histórico e é, em relação a tal processo, inexaurível. Ele é assim imanente ao homem e à sua história. Os elementos constitutivos da realidade jurídica são pois o fato, o valor e a norma, enquanto suas notas dominantes são, respectivamente, a eficácia, o fundamento e a validade. Isso leva ao paradigma da concreção no pensamento de Reale.

Administração dos Aeroportos e Aeronaves Brasileiros

João Maurício Adeodato, | seg, 14/10/2013 - 09:34
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A preocupação dos mais diversos profissionais brasileiros com a Copa Mundial de futebol que será realizada aqui depois de 64 anos é mais do que compreensível. O país já tem problemas de violência, trânsito, hotéis, transportes etc. que afastam turismo e investimentos estrangeiros, dentro da já proverbial incompetência de governantes, empresários e trabalhadores para organizar e oferecer serviços eficientes. Um grande exemplo de tudo isso está na administração dos aeroportos brasileiros. É impressionante o caos, não apenas pela falta de investimentos, mas, sobretudo, pela falta de ideias e dos mais simples princípios de lógica e da mais rasteira inteligência.

Talvez o leitor não viaje frequentemente, mas sabe que o funcionamento dos aeroportos de um país não é apenas um termômetro quando nele se realiza uma copa do mundo, mas indica o padrão de sua capacidade de administração e de educação de seu povo. Citarei aqui alguns exemplos que, se não fossem trágicos, seriam cômicos.

Começo pelo chamado “embarque preferencial”, aquele que privilegia passageiros idosos, com debilidades físicas ou acompanhando crianças, certamente uma boa ideia quando as filas se formam para embarcar por aquelas pontes cobertas, chamadas fingers (“dedos”, em bom português). O problema do embarque preferencial ocorre quando há embarques remotos, que constituem a imensa maioria dos embarques nos aeroportos “puxadinhos” do Brasil, aqueles feitos por meio de ônibus, que levam o passageiro do saguão do aeroporto até a aeronave. Aí não tem o menor sentido deixar as filas dos passageiros preferenciais entrarem antes, pois o caos no ônibus desfaz qualquer pseudo-organização dos iluminados burocratas que determinam essas regras. Como todos vão dentro do mesmo veículo, claro que o embarque no avião vai ser dos mais ágeis e menos educados, eliminando qualquer preferência. Tão néscia quanto, nesses embarques remotos, é chamar primeiro os passageiros com assentos na parte de trás da aeronave, pois novamente todos chegarão em um mesmo ônibus.

Sem contar que os administradores raramente colocam uma escada para possibilitar entradas separadas para os passageiros que têm assentos mais na frente ou mais atrás, embora todo avião possua as duas portas e o passageiro veja sempre diversas escadas sem uso no local.

Outro aspecto estupefaciente é a proibição de uso de celular a bordo. Acho que, como a maioria dos comissários e comissárias de bordo não tem treinamento repressivo, o controle é muito mal feito, inclusive sobre o chamado “modo avião” dos celulares. Penso também que a maioria dos passageiros não acredita que a utilização de aparelhos eletrônicos pode efetivamente interferir e prejudicar o funcionamento da aeronave; senão, por que não os proíbem simplesmente, como foi feito com tesouras e canivetes? Mal o avião aterrissa, ouvem-se as musiquinhas de celulares ligados em todo lugar. E diz-se que o perigo não está apenas na interferência sobre os controles, mas também na possibilidade de causar incêndios – daí não se dever utilizar celulares também em postos de gasolina, por exemplo.

Depois temos as regras exigidas por algumas companhias aéreas e não por outras, tais como a obrigatoriedade de abrir as persianas das janelas na decolagem e no pouso. Ora, isso leva à alternativa: ou as persianas abertas não constituem uma medida necessária ou as companhias que não a exigem estão colocando os passageiros e tripulantes em risco.

Outro exemplo é o tamanho da bagagem de mão, inteiramente aleatório, a cargo do micropoder do atendente de plantão. Numa mesma companhia, dentro de uma mesma aeronave, o passageiro que foi obrigado a despachar sua bagagem por excesso de tamanho é surpreendido ao ver o passageiro ao lado com uma mala muito maior do que a sua. Sem falar da regra nominal que disciplina o peso da bagagem de mão, à qual ninguém obedece, exatamente por seu caráter absurdo de limitar a 5 quilos o que cada passageiro pode portar.

As linhas da malha aérea mudam todo dia, sabe-se lá com base em que estatísticas, só guiadas pelo critério de número de passageiros e lucro, como se explorar o espaço aéreo não fosse uma concessão pública. Capitais e outras cidades importantes ligadas por voos diretos são raras.

Se a luz de leitura ou a bandeja dos assentos frequentemente está com defeito, o que pensar dos mecanismos mais sérios da aeronave?

Isso fora a péssima qualidade das lanchonetes nos aeroportos, em que pese o preço absurdo e as franquias milionárias, para não mencionar as “refeições” a bordo. E pode piorar, claro, saudades da Panair, saudades de Varig, quiçá no futuro saudades dos saquinhos de amendoim. E, inexplicavelmente, a economia feita à custa dos passageiros, além do acréscimo vergonhoso de 20 ou 30 reais para sentar em lugares um pouquinho mais espaçosos como as saídas de emergência, resulta nas passagens aéreas mais caras do mundo.

Muitas dessas questões seriam fáceis de resolver, bastaria uma reunião inteligente. E os problemas mais difíceis também precisam ser resolvidos, pois o usuário paga caro tanto pela passagem quanto pelas taxas de embarque cobradas pelos aeroportos. Arrematando, não é de estranhar: todos os países capitalistas sabem que qualidade e bons serviços custam caro aos empresários e só quem pode forçá-los nesse sentido é o governo ou o mercado. O mercado brasileiro pertence aos empresários e os governantes são seus melhores amigos: ai de nós.

Diante desses protestos, é utopia mitigar o poder?

João Maurício Adeodato, | ter, 25/06/2013 - 12:59
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A democracia é ruim, disse o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, célebre por comandar a Inglaterra na guerra contra os nazistas; mas todos os outros sistemas políticos são piores, acrescentava.

Tentando trazer a experiência filosófica para entender a vivência do político inglês, o problema da democracia é que ela é lenta em seu desenvolvimento, demora muito para amadurecer. Até que as instituições se firmem, a corrupção, o desperdício, a impunidade e outros males estão sempre presentes nas jovens democracias, corroendo-as em todos os níveis do poder público e da própria estrutura social. A incompetência e daí a ineficiência estatais também caracterizam esses sistemas prebendários do patronato (leia-se Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro), nos quais o patrimônio público se confunde com o privado, e empresários e poderes públicos estabelecem relações políticas espúrias e financiamentos mútuos imunes a quaisquer controles, numa cumplicidade característica de sociedades periféricas: o enriquecimento do empresariado com o dinheiro público.

Compreender a situação do Brasil não significa advogar nenhum conformismo ou o “tem que ser assim”. Muito pelo contrário, pressões sociais legítimas, como essas recentemente vistas no Brasil, podem e devem apressar o fortalecimento institucional de que o país tanto precisa, colocando a lei e o direito acima de tudo e de todos, extinguindo os privilégios que caracterizam toda estrutura social subdesenvolvida. Mas é preciso entender que o fenômeno brasileiro, apesar de dotado de características próprias, não é inusitado no estudo da evolução dos sistemas democráticos e que a sociedade brasileira nunca teve oportunidade de conviver com uma democracia tempo suficiente para institucionalizá-la e usufruir de seus benefícios. Os golpes se sucedem, de forma às vezes mais, às vezes menos traumática: Independência, República, Estado Novo, Ditadura Militar, Nova República. Todo isso alimentado pela alienação típica de povos sem acesso à educação, do que falarei aqui em outro artigo.

Em outras palavras, não há solução fora da democracia: somente sociedades muito ignorantes podem tolerar “salvadores da pátria” e a certeza das ditaduras é a falta de controle sobre o poder.

Instituições controlam poder e a virtude maior da democracia, lembrada por Churchill sem o romantismo ingênuo de Rousseau, está justamente na criação do espaço público que enseja tal controle. A palavra “poder” é ainda mais ampla do que “direito”. Antropologicamente, o poder constitui a maior das paixões do ser humano, um animal predador gregário e político, condenado dentro da Babel de sua própria linguagem, cuja maior satisfação é o reconhecimento pelos demais seres humanos. Por isso deter poder modifica o comportamento, divide as pessoas entre as que têm e as que não têm poder; mais do que dinheiro, sexo, violência, bajulação ou beleza, que são apenas meios para adquirir e exibir poder.

Tem poder quem está em condições de obter acordo de outra pessoa, mesmo se isso implica impor algo que essa outra pessoa não desejaria ou evitar algo que ela desejaria: condições de torturar, de se fazer amar, de conseguir um prato de comida, de suprir quaisquer necessidades, de satisfazer eventuais desejos. Basta observar as modificações que a circunstância de deter um pouco, muito pouco de poder exerce sobre as pessoas comuns, medianas, seja um juiz, um coordenador de curso universitário, um policial ou um burocrata de agência reguladora.

Penso que, por isso, a filosofia do direito precisa colocar como objetivo para a práxis aquela ideia de enxergar o mundo com os olhos céticos e humanistas da retórica e garantir a mitigação e o rodízio do poder jurídico e político, numa democracia institucionalizada, na qual os indivíduos que exercem poder tenham pouca ou nenhuma importância pessoal. O poder tem que ser reduzido e momentâneo. A realização dessa filosofia implica um sem-número de instituições, tais como mandatos e rodízios em todos os cargos de mando no judiciário, no executivo, no legislativo, no ministério público, até nas empresas privadas que lidem com recursos públicos (praticamente todas no Brasil), assim como a total impossibilidade de recondução em qualquer deles, a partir da extinção da política como profissão.

A utopia da extinção da política como profissão não se confunde com a extinção da política, pois o humano é animal político, já ensinava Aristóteles. A política, que vai decidir os rumos, e a administração, que os executa, precisam ser um fardo exercido com competência e sem interesse pessoal, como hoje os bons síndicos de bons condomínios, que trabalham sem qualquer regalia.

A filosofia do direito é a vanguarda do conhecimento jurídico. Depois dela vem a teoria geral do direito, como hermenêutica da dogmática, e só na retaguarda atua a dogmática, de lege lata. Toda dogmática foi antes filosofia, de lege ferenda. Rudolf von Jhering construiu as bases hermenêuticas da posse antes que a dogmática fixasse esse conceito e Tobias Barreto também fez sugestões normativas, a princípio derrotadas, tais como a defesa do acesso da mulher aos estudos superiores. A filosofia mostra que o que hoje é utopia, amanhã se torna realidade. Torçamos para que as pressões da sociedade tragam mais ética e mais controle sobre todos os que exercem poder.

A Sociedade complexa e as duas sobrecargas jurídicas

João Maurício Adeodato, | qui, 30/05/2013 - 12:38
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Para começar a temática de hoje, o contexto da sociedade complexa contemporânea precisa ser mencionado. Aí a primeira tese aqui aponta o fenômeno da sobrecarga do direito pela pulverização ética, com a qual o direito estatal não se tem mostrado capaz de lidar. Isso significa que as outras ordens éticas – pois o direito é uma delas – tornam-se mais e mais individualizadas e nessa pulverização só resta ele como “mínimo ético”, pois moral, religião e etiqueta, por exemplo, não mais funcionam como amortecedores para os conflitos sociais, os quais são todos jurisdicizados.

Isso quer dizer que, na sociedade complexa, cada grupo social e mesmo cada indivíduo passa a ter sua própria moral, sua própria religião, e o direito constitui o único ambiente ético comum a todos. Numa sociedade mais primitiva, homogênea, a religião e a moral comuns cuidam de controlar as condutas contrárias e só chegam até o direito os conflitos mais agudos, tais como os referentes ao direito penal. Não é à toa que as pessoas leigas, não versadas em direito, pensam logo no direito criminal quando falam do direito, ao passo que os juristas sabem que o direito penal é uma parte muito pequena dentre os demais ramos do direito. Numa sociedade complexa, por seu turno, qualquer conflito é levado ao ordenamento jurídico, tais como brigas de vizinhos ou desentendimentos de família.

Além dessa sobrecarga do direito dogmaticamente organizado dentro do sistema social, observa-se outra dentro do próprio direito, qual seja, a sobrecarga da decisão concreta, fazendo com que aumentem as tarefas e a importância do Judiciário, em detrimento do Legislativo, pois o direito torna-se mais e mais casuístico e as regras gerais se enfraquecem. Da mesma maneira que o direito dogmático não está preparado para a primeira sobrecarga, o Judiciário tampouco está preparado para essa segunda sobrecarga e crescem os procedimentos alternativos de solução de conflitos, como conciliação, mediação e arbitragem.

Então as regras para todos passam a ser unicamente as jurídicas, decididas somente no caso concreto.Ao mesmo tempo em que isso é pouco para constituir os laços éticos dos indivíduos de uma comunidade, é muito para o direito estatal controle todos os conflitos.

A solução oferecida pela modernidade democrática para o dilema da pulverização e divergências éticas na sociedade complexa é que o direito passa a decidi-las, em primeiro lugar, de acordo com as inclinações da maioria, pois justo não é este ou aquele padrão de conduta, como permitir ou proibir o aborto, o comércio de armas ou de sexo, mas sim aquilo que a maioria decide como justo; em segundo lugar, e por isso mesmo, o direito assume um conteúdo ético essencialmente mutável, pois sempre será possível que novas maiorias decidam por opções éticas divergentes em relação às anteriores.

Em relação ao controle das diferenças éticas, há também um problema lingüístico, que a semiótica jurídica estuda e explica: numa sociedade altamente diferenciada, os signos significantes tendem a se distanciar cada vez mais dos signos significados. No direito, isso quer dizer que os textos normativos, como as palavras da lei, são compreendidos diferentemente pelos diversos indivíduos e grupos, pois cada um reage a seu modo diante de expressões como “litigância de má fé”, “interesse público”, “reação moderada” e demais termos abundantes na legislação. Isso torna a lei menos funcional no trato com os conflitos e daí sobrecarrega os envolvidos na decisão do caso, como as partes, os advogados e os magistrados, e ressalta o papel da vontade pessoal e dos interesses concretos, em prejuízo de uma “racionalidade” pretensamente geral e independente. Ao mesmo tempo fica mais difícil prever como será a decisão concreta, tornando mais e mais obsoletas as concepções hermenêuticas exegéticas, literais ou filológicas, tal como mostra a evolução da hermenêutica jurídica.

A Tortura pode ser Justificada? (parte final)

João Maurício Adeodato, | ter, 07/05/2013 - 09:32
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Tome-se um exemplo concreto no plano interno do direito dogmático, em que fica mais claro o problema filosófico da tortura, posto que se excluem justificativas relacionadas ao terrorismo; trata-se de caso verídico, ocorrido há quase uma década na Alemanha. Em setembro de 2002 o filho de 11 anos de um banqueiro de Frankfurt foi sequestrado. O sequestrador foi preso pela polícia, mas não queria dizer onde prendera o menino. Depois que o chefe de polícia o ameaçou de tortura, apenas o ameaçou, ele revelou o local. Era tarde demais e o menino foi encontrado morto de fome e sede. A promotoria acusou o chefe de polícia com base na legislação alemã em vigor, que proíbe rigorosamente a tortura ou sua simples ameaça. O tribunal recebeu a denúncia e não o absolveu, mas aplicou-lhe a mais leve das penas, sob alegação das finalidades éticas da ameaça, apesar de manifestamente ilegal. E em 2011 o condenado recebeu uma indenização do Estado.

Mas podem-se imaginar casos ainda mais dramáticos, roteiros de filmes, um indivíduo que é preso e confessa espontaneamente que colocou uma bomba poderosa em algum lugar da cidade, cuja explosão causará a morte de milhares de inocentes. Pouco importa se seus motivos são políticos ou simples extorsão. Pois bem: justifica-se eticamente torturá-lo? No caso do garoto alemão, segundo pesquisa feita logo depois, na esteira do debate que moveu a nação, dois terços dos alemães eram a favor da atitude da polícia (interessante que a quase totalidade dos profissionais do direito mantinha a opinião contrária, pela proibição absoluta).

A questão, como dito no início, toca num tabu da ética democrática e, sobretudo na Alemanha, invoca ainda a questão nazista, regime que legalizou e aplicou largamente a tortura, justificando-a também por sua eficiência. No Brasil, a ditadura relativamente recente também agrava a discussão, sempre atual devido à constituição da chamada “Comissão da Verdade” pelo Governo Federal e às sugestões recorrentes pela anulação da Lei de Anistia.

Mas ainda assim, o argumento da eficiência é questionável em diversos casos. Muitas pessoas dirão qualquer coisa sob tortura. Há também o problema da ignorância, pois o torturado pode não ter a informação que se deseja e parecer ao torturador ter uma vontade férrea que precisa de mais tortura para ser dobrada.

A questão põe-se mais claramente, porém, como no caso alemão, se há certeza de que o cativo detém a informação requerida, a qual supostamente possibilitará salvar bens jurídicos tão ou mais importantes do que seu direito a não ser torturado. Daí começam a surgir argumentos que atacam os próprios fundamentos dessa proibição básica no Estado de direito.

Do outro lado da controvérsia, advogando a negação absoluta da tortura, alega-se que o direito não pode ser combatido com o não-direito, que à polícia cabe institucionalmente prevenir perigos e proteger a população, não castigar criminosos, que é função dos sistemas judiciário e penitenciário, e que essa proteção policial deve ser feita de forma moderada e com bom senso.

O fato é que há muitos belos discursos, mas a civilização ocidental ainda está longe de uma cultura de inclusão universal que tornaria um fenômeno primitivo como a tortura apenas uma lembrança histórica. Infelizmente.

A tortura pode ser justificada?

João Maurício Adeodato, | sex, 22/03/2013 - 10:30
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No Estado Democrático de Direito as normas jurídicas proíbem incondicionalmente o emprego da tortura, largamente utilizada pelos órgãos estatais até muito, muito recentemente. A cultura ocidental, tão orgulhosa de sua civilidade, queimou bruxas até o século XVIII, não se pode esquecer. Mas hoje a simples ameaça de tortura é banida e rigorosamente combatida, pelo menos no plano da legalidade democrática. Muitos argumentos foram usados nessa evolução, desde os horrores históricos das ordálias, os “juízos de Deus” medievais, até o simples argumento pragmático de que a tortura não funciona como meio de prova nem garante informação.

Conceitualmente, tortura não se confunde com pena cruel, que constitui tema de outro debate ético. A tortura é um procedimento que busca informações para esclarecer a verdade no processo, enquanto as penas cruéis têm por objetivo o castigo, pressupondo que aquela verdade já foi encontrada.

A questão da tortura se relaciona com o problema da tolerância em pelo menos dois sentidos básicos: o literal, de tolerar ou não a dor; e o mais amplo, de não ver limites para coagir a vontade alheia, a violência irresistível que chega a ponto de acabar com o discurso, a linguagem que caracteriza o ser humano. Este último é o que mais interessa aqui. Isso significa discutir o assunto desde uma perspectiva ética: a tortura deve ser usada em algum caso? Há alguma possibilidade de justificação da tortura? Ela pode ser legalizada, ou seja, o direito pode prever sua aplicação?

A perspectiva sociológica é importante e deve sempre permanecer no horizonte da discussão. Muitos sabem que a tortura é rotineiramente praticada em países subdesenvolvidos como o Brasil, assim como em países economicamente desenvolvidos como os Estados Unidos, baluartes de uma retórica civilizatória, que se arvoram guardiães de uma nova ordem mundial, o que lhes daria o direito de invadir países para impor sua ética de proteção aos direitos humanos. Mas não apenas na Baía de Guantânamo. Internamente, em todo seu território, estabeleceu-se uma importante indústria da prisão, que encarcera 4 vezes mais pessoas do que qualquer outro país – de acordo com dados de 2011 – e de cuja manutenção vivem e lucram milhares de cidadãos. E essa indústria da prisão não deixa de ser uma espécie de tortura.

Externamente, no que concerne ao terrorismo, a justificativa dos funcionários norte-americanos para o emprego da tortura e de outros métodos contrários a seu próprio direito positivo é a tese da legítima defesa prévia, para evitar um mal maior a mais pessoas. Ora, mas isso se afasta do conceito secular de legítima defesa, que implica perigo real e iminente, incompatível com a tortura, na qual o ser humano já está submetido e não se encontra em condições de atacar ninguém.

Na próxima semana veremos exemplos concretos que não são apenas roteiro de filmes e que mostram a importância cotidiana da filosofia do direito.

Temos Direitos porque somos humanos ou o estado no-los concede?

João Maurício Adeodato, | qua, 16/01/2013 - 19:46
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A palavra “direito”, em sentido de algo de que se dispõe, algo que se “tem”, é associada a uma faculdade de fazer, aí incluída as possibilidades de deixar de fazer e de impedir alguém de determinada conduta. Isso o que tradicionalmente se chama de direito subjetivo, no sentido literal de direito do sujeito, a facultas agendi do direito romano. Não qualquer faculdade, porém só aquelas que encontram proteção nas regras de direito, nas normas de agir (norma agendi). Sim, pois o ser humano dispõe de muitas faculdades que não constituem seu direito, tais como suicidar-se ou eliminar o próximo mais fraco. Já no século XIX, juristas como Rudolf Von Jhering e Bernard Windscheid afirmavam ser o conceito de direito subjetivo o mais discutido; ao lado do conceito de norma, tornou-se o mais importante da teoria geral do direito moderna.

Na tradição que vem pelo menos da Grécia antiga, uma das forças do jusnaturalismo, a doutrina do direito natural, estava exatamente na idéia de que há certos direitos que não dependem de reconhecimento por qualquer instância de poder que seja. Nesse sentido a metáfora sobre direitos “naturais”, entendendo-se como “natureza” as forças acima da vontade humana e mesmo independentes de sua existência. Desde pelo menos a Antígona, de Sófocles, essa é uma idéia milenar que ainda hoje mantém um forte apelo na tese dos direitos humanos universais.

Quando já adiantada a modernidade, aparecendo as primeiras idéias positivistas, a filosofia do direito debate-se entre duas grandes vertentes. A da tradição jusnaturalista: o ser humano tem certos direitos subjetivos pelo simples fato de ser humano, cabendo ao ordenamento jurídico objetivo reconhecê-los. E a do positivismo emergente: o ser humano tem apenas os direitos subjetivos que o ordenamento jurídico objetivo concede.

Isso pode ser detectado nas diferentes formas de contratualismo imaginadas por Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes, que podem ser aqui tomados como paradigmas.

O contrato social, para Rousseau, é estabelecido entre o cidadão e o Estado, consistindo de direitos e deveres recíprocos. Isso significa que o Estado pode exigir deveres do cidadão, sim, mas este também pode exigir deveres do Estado. Logo, se o cidadão conserva seus direitos subjetivos para contratar, ele os traz da vida natural para a vida social, limitando os poderes do Estado. O contrato constitutivo das sociedades humanas é assim bilateral e sinalagmático.

Em Hobbes, o contrato é entre os cidadãos, sendo o Estado o resultado e não parte do mesmo, pois os indivíduos abdicam de todos os seus direitos originários, desde que os demais cidadãos façam o mesmo. O Estado não tem qualquer dever para com o cidadão, já que todos os “direitos naturais”, no sentido bem literal do homem livre no estado de natureza, são transferidos ao Estado, o qual passa a ter direitos de vida e morte sobre o sujeito.

Logo, o ser humano entra na vida social sem quaisquer direitos, contentando-se com aqueles que o Leviatã houver por bem lhe conferir. Só em dois casos tem direito de resistir e pode rebelar-se: se o Estado quer matá-lo, pois o direito natural à vida é o mais fundamental, ou se o Estado não mais consegue manter a ordem do pacto social e proteger-lhe a vida dos ataques dos demais cidadãos, como no caso de guerra civil.

Tem-se então em Rousseau, mais fiel à tradição jusnaturalista, a prevalência do direito subjetivo e em Hobbes, a do direito objetivo. O dilema, claro para os juristas posteriores, é que, de um lado, o direito subjetivo se basearia em uma instância transcendente, difícil de detectar e controlar política ou juridicamente, tal como a “Vontade Geral”, as diretrizes da razão ou a vontade de Deus, como no caso dos jusnaturalismos; de outro, o sujeito fica à mercê do Estado, esmagado por sua onipotência, e o direito se esvazia de todo conteúdo ético válido em si mesmo, tal como nos positivismos, forçados a reconhecer como “direito” válido as mais cruéis ditaduras.

Temos direitos porque somos humanos ou porque o Estado no-los concede?

João Maurício Adeodato, | seg, 03/12/2012 - 10:01
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A palavra “direito”, em sentido de algo de que se dispõe, algo que se “tem”, é associada a uma faculdade de fazer, aí incluída as possibilidades de deixar de fazer e de impedir alguém de determinada conduta. Isso o que tradicionalmente se chama de direito subjetivo, no sentido literal de direito do sujeito, a facultas agendi do direito romano. Não qualquer faculdade, porém só aquelas que encontram proteção nas regras de direito, nas normas de agir (norma agendi). Sim, pois o ser humano dispõe de muitas faculdades que não constituem seu direito, tais como suicidar-se ou eliminar o próximo mais fraco. Já no século XIX, juristas como Rudolf Von Jhering e Bernard Windscheid afirmavam ser o conceito de direito subjetivo o mais discutido; ao lado do conceito de norma, tornou-se o mais importante da teoria geral do direito moderna.

Na tradição que vem pelo menos da Grécia antiga, uma das forças do jusnaturalismo, a doutrina do direito natural, estava exatamente na idéia de que há certos direitos que não dependem de reconhecimento por qualquer instância de poder que seja. Nesse sentido a metáfora sobre direitos “naturais”, entendendo-se como “natureza” as forças acima da vontade humana e mesmo independentes de sua existência. Desde pelo menos a Antígona, de Sófocles, essa é uma idéia milenar que ainda hoje mantém um forte apelo na tese dos direitos humanos universais.

Quando já adiantada a modernidade, aparecendo as primeiras idéias positivistas, a filosofia do direito debate-se entre duas grandes vertentes. A da tradição jusnaturalista: o ser humano tem certos direitos subjetivos pelo simples fato de ser humano, cabendo ao ordenamento jurídico objetivo reconhecê-los. E a do positivismo emergente: o ser humano tem apenas os direitos subjetivos que o ordenamento jurídico objetivo concede.

Isso pode ser detectado nas diferentes formas de contratualismo imaginadas por Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes, que podem ser aqui tomados como paradigmas.
O contrato social, para Rousseau, é estabelecido entre o cidadão e o Estado, consistindo de direitos e deveres recíprocos. Isso significa que o Estado pode exigir deveres do cidadão, sim, mas este também pode exigir deveres do Estado. Logo, se o cidadão conserva seus direitos subjetivos para contratar, ele os traz da vida natural para a vida social, limitando os poderes do Estado. O contrato constitutivo das sociedades humanas é assim bilateral e sinalagmático.

Em Hobbes, o contrato é entre os cidadãos, sendo o Estado o resultado e não parte do mesmo, pois os indivíduos abdicam de todos os seus direitos originários, desde que os demais cidadãos façam o mesmo. O Estado não tem qualquer dever para com o cidadão, já que todos os “direitos naturais”, no sentido bem literal do homem livre no estado de natureza, são transferidos ao Estado, o qual passa a ter direitos de vida e morte sobre o sujeito.

Logo, o ser humano entra na vida social sem quaisquer direitos, contentando-se com aqueles que o Leviatã houver por bem lhe conferir. Só em dois casos tem direito de resistir e pode rebelar-se: se o Estado quer matá-lo, pois o direito natural à vida é o mais fundamental, ou se o Estado não mais consegue manter a ordem do pacto social e proteger-lhe a vida dos ataques dos demais cidadãos, como no caso de guerra civil.

Tem-se então em Rousseau, mais fiel à tradição jusnaturalista, a prevalência do direito subjetivo e em Hobbes, a do direito objetivo. O dilema, claro para os juristas posteriores, é que, de um lado, o direito subjetivo se basearia em uma instância transcendente, difícil de detectar e controlar política ou juridicamente, tal como a “Vontade Geral”, as diretrizes da razão ou a vontade de Deus, como no caso dos jusnaturalismos; de outro, o sujeito fica à mercê do Estado, esmagado por sua onipotência, e o direito se esvazia de todo conteúdo ético válido em si mesmo, tal como nos positivismos, forçados a reconhecer como “direito” válido as mais cruéis ditaduras.

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