O título do artigo não é o que parece. Nada contra a democracia.
É o título do livro do professor do Collège de France, Pierre Rosanvallon que, com propriedade e profundidade, analisa situação e as tendências da democracia política na atualidade.
O autor esclarece: “O que propõe chamar de contrademocracia não é o contrário de democracia; é uma forma de democracia que se contrapõe a outra; é a democracia dos poderes indiretos disseminados no corpo social, a democracia da desconfiança organizada frente à democracia da legitimidade eleitoral”.
O livro parte da grande contradição do nosso tempo: de um lado, a expansão dos regimes e valores democráticos; de outro, em escala jamais experimentada, a desconfiança com os políticos, o desencanto com a política e a desilusão com a eficácia da democracia em responder as demandas da cidadania.
Neste sentido, o desafio é evitar a degenerescência da democracia e, em lugar da despolitização da sociedade, construir uma “nova era das democracias”.
E o que vem a ser uma “nova era das democracias”?
A propósito, esta “era” está acontecendo diante dos nossos olhos e não é difícil perceber.
No processo de construção da democracia, a primeira e mais visível dimensão foi o direito de escolha dentro do qual se inseria a noção de controle sobre os eleitos; em seguida, a concepção tripartite dos poderes, obra clássica de Montesquieu, consagrava na relação entre os poderes as faculdades de atuar e impedir, ou seja, colocava em prática o princípio liberal de limitar os poderes cuja fonte é a desconfiança e cujo fim é proteger o indivíduo dos abusos do poder.
Entretanto, não parou por aí a estruturação da desconfiança que foi paulatinamente ampliada pela multiplicação dos poderes de sanção e obstrução, consolidando outro tipo de soberania popular que se revela na capacidade de obstruir, de formar coalizões sociais e de fazer ecoar nas ruas e nos meios de comunicação os protestos da coletividade. Nasceu, ao lado do povo-voto, o povo-veto.
Emergem, daí, a política dos governados, a política não-governamental, a política de protesto que significa politizar a despolitização (aparente ou real) da sociedade.
Com efeito, este tipo de “política” passa a constituir o que podemos chamar de “democracia de controle”, exercida mediante mecanismos de vigiar, denunciar e qualificar o poder que atendem a um alerta que data da Revolução Francesa: “o governo representativo logo se converte no mais corrupto dos governos se o povo deixa de inspecionar os seus representantes”.
Perceber e exercer a responsabilidade cidadã do controle significa não permitir o discurso generalizador, demagógico de amaldiçoar e, no extremo da irresponsabilidade, preconizar a eliminação das instituições democráticas. Em outras palavras, significa contribuir para o aperfeiçoamento do regime democrático.
Desta forma, a abstração teórica e expressão vaga da vontade geral assumem a força concreta, repita-se, de vigiar que é um estado de alerta da cidadania, atenta, mobilizada e pronta para agir; de denunciar que confere força à vigilância sem cair na face perversa da denúncia que é estigmatizar a priori o denunciado; de qualificar o poder que significa avaliar a eficácia da gestão e testar a competência dos governantes.
Em recentes episódios da história contemporânea, os legítimos poderes da contrademocracia têm sido plenamente usados pela cidadania ativa conforme a concepção exposta na excelente obra do professor francês.
Nesta linha de atuação, a cidadania dispõe, hoje, dos mecanismos produzidos pela tecnologia da informação que, ao alterar profundamente noções clássicas de tempo e espaço, afetam as instituições tradicionais da democracia representativa assim como ampliam enormemente a capacidade de influência e controle da sociedade sobre a atividade política.
Enganam-se, pois, os que subestimam a força dos contrapoderes, revigorada pelos novos elos que vinculam eleitores e eleitos, representantes e representados. O destino dos recalcitrantes será a lata de lixo da história.
Por fim, é prudente não esquecer a lição premonitória de Tocqueville e John Stuart Mill sobre os cuidados com a ameaça da “tirania da maioria e da opinião” para o bom exercício da contrademocracia de modo que sejam assegurados o pluralismo político, o equilíbrio dos poderes e a proteção dos direitos individuais.