Memorial da Democracia de Pernambuco foi inaugurado a três dias do fim do mandato do ex-governador Paulo Câmara. (Edson Holanda/PCR)
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Inaugurado há menos de um ano, o Memorial da Democracia de Pernambuco já sofre com problemas estruturais que ameaçam seu acervo. Sem qualquer recurso previsto pela Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023, o equipamento está instalado na antiga sede do Movimento de Cultura Popular (MCP), no Sítio da Trindade, em Casa Amarela, Zona Norte do Recife, e sofre com infiltrações, ausência de ar-condicionado para conservação da exposição e acomodação dos visitantes, além de contato direto da luz solar com documentos históricos.
À reportagem do LeiaJá, funcionários do museu que preferiram não se identificar também criticaram falhas técnicas na montagem da exposição, que, segundo eles, aconteceu às pressas. Alguns dos painéis expositivos, por exemplo, foram impressos com fotos em baixa resolução e sem retirada de marca d’água de seus arquivos originais. Há também itens mal instalados, como uma televisão que se encontra em posição desalinhada, dificultando a visualização dos visitantes, e peças do acervo protegidas por vidros quebrados. Outro ponto levantado pelos trabalhadores é a ausência de internet e computadores, que inviabiliza o acesso à exposições virtuais.
Memorial sofre com infiltrações e exposição de acervo ao sol. (Marília Parente/LeiaJá)
Ativista pelos direitos humanos e fundadora da ONG Tortura Nunca Mais, Amparo Araújo lembra que a fundação do Memorial da Democracia é uma das recomendações inseridas no relatório da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara (CEMVDHC), constituída para promover o esclarecimento de graves violações de direitos humanos ocorridas em Pernambuco ou contra pernambucanos por motivações políticas, entre os anos de 1946 a 1988. “A história do resgate da memória até chegar nos memoriais começa com a fundação dos Tortura Nunca Mais, na década de 1990, primeiro no Rio, depois aqui em Pernambuco. Esse processo evolui para a assinatura da Lei 9.140 de 1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas por causa da participação ou acusação de participação em atividades políticas durante a ditadura militar”, comenta Amparo.
Também em 1995 é aberta a primeira Comissão da Verdade, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos. “O Brasil foi o último país do mundo a instituir uma Comissão da Verdade. O governo brasileiro foi muito brando com os torturadores, é uma conciliação grande demais. Bolsonaro, no penúltimo dia de governo, extinguiu a Comissão de Mortos e desaparecidos, enquanto a inauguração do Memorial da Democracia de Pernambuco foi um arranjo feito pelo Governo Paulo Câmara, na última semana do mandato, para dar uma maquiada no que seria cumprir o que está previsto na Comissão Estadual da Verdade”, destaca Amparo.
Exposição tem fotos em baixa resolução e com marca d'água, além de equipamentos mal instalados. (Marília Parente/LeiaJá)
Para a ativista, embora o espaço ocupado pelo Memorial tenha sido sede do Movimento de Cultura Popular (MCP) nos anos 1970, o ideal seria que sua instalação tivesse ocorrido, a exemplo do que foi feito em outros países, em locais em que foram registrados casos de tortura e morte motivadas por perseguição política. Atualmente, o acervo relativo à ditadura militar divide espaço com a exposição histórica voltada para a resistência pernambucana à invasão holandesa no século XVII. Além disso, o Memorial conta com oito funcionários, sendo seis estagiários do curso de história e duas profissionais, uma educadora também formada em história e uma coordenadora. “Nenhum museólogo. É preciso fazer concurso para os funcionários e oferecer formação pedagógica”, cobra Amparo.
Memorabilia da luta pela democracia
No centro do salão principal do Memorial, uma pequena bolsa guarda há exatos 40 anos a história de uma das maiores atrocidades cometidas pela ditadura militar em Pernambuco. O objeto pertenceu a Anatália de Souza Melo Alves, militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) assassinada aos 28 anos nas dependências da Delegacia de Ordem Social (DOPS) do Recife. Publicada na primeira página do Diario de Pernambuco de 23 de janeiro de 1973, a versão dos militares sobre a morte era a de que Anatália teria amarrado a alça de sua bolsa na pia do banheiro da unidade prisional e se enforcado a uma distância de cerca de um metro de altura do chão. Segundo os policiais, antes do suposto suicídio, a militante ainda teria ateado fogo nos próprios órgãos genitais.
Bolsa da militante Anatália de Souza Melo Alves, assassinada e torturada pela ditadura, integra acervo do museu. (Marília Parente/LeiaJá Imagens)
A narrativa falaciosa do suicídio de Anatália foi desbancada pelas investigações da CEMVDHC, que comprovaram que a militante foi torturada até a morte por agentes do estado. O colegiado requereu ao Instituto de Criminalística do Governo do Estado de Pernambuco a reavaliação do laudo pericial original de nº 044/1973, referente ao caso de Anatália.
“O resultado foi apresentado pelo perito criminal dr. José Zito Albino Pimentel, em relatório datado de 5 de dezembro de 2012 que, contrariando a versão até então oficial, conclui que a ocorrência que vitimou Anatália de Souza Melo (nome de solteira), foi resultante de uma ‘ação homicida’, que a vítima foi morta por ‘estrangulamento’ (asfixia mecânica), e que ‘o fogo ateado na região frontal da vítima que ocupou área da região terço superior das coxas até as regiões: umbilical e flancos, é característica de que o autor do evento queria encobrir a prática sexual por hipótese, o estupro’, diz o relatório da CEMVDHC.
Além disso, um laudo do Instituto de Polícia Técnica (IPT) de Pernambuco aponta que Anatália foi encontrada deitada numa cama de campanha, contrariando a versão de que ela morreu no banheiro da unidade prisional. Assim, os estudos técnicos são categóricos ao afirmar que Anatália foi assassinada, torturada e vítima de violência sexual praticada por agentes do estado brasileiro, em razão de sua militância política contra a ditadura.
Convênio
Audiência pública debateu situação do memorial em junho, na Alepe. (Marília Parente/LeiaJá)
Em uma audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) no dia 20 de junho, o Governo de Pernambuco informou que promoveu a assinatura de um convênio entre a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) com o objetivo de estabelecer uma cooperação administrativa e financeira para manter o Memorial da Democracia em funcionamento até dezembro de 2023. “Isso mostra o esforço do Governo para que, mesmo sem dinheiro no orçamento, impedir que o Memorial feche as portas. Com o CNPJ da Cepe, nós vamos buscar dinheiro. Já temos até projetos e reuniões marcadas nesse sentido”, frisou o Secretário Executivo de Direitos Humanos do Governo de Pernambuco, Jayme Asfora.
Após receber denúncias sobre a situação estrutural do Memorial da Democracia, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-PE informou que enviaria ofícios à Secretaria de Direitos Humanos de Pernambuco e à Prefeitura do Recife sobre os problemas estruturais do Memorial. “Sabemos que o convênio foi assinado, mas há muita luta pela frente e a Comissão vai continuar cobrando”, ponderou a vice-presidente da CDH da OAB-PE, Nara Santa Cruz.
Procurada pelo LeiaJá, a Secretaria de Direitos Humanos e Justiça de Pernambuco não respondeu acerca de prazos para resolução dos problemas estruturais do Memorial da Democracia, nem assumiu o compromisso de garantir recursos na LOA 2024 para a instituição. A pasta também não deu informações a respeito do tipo de vínculo empregatício que mantém com os funcionários do espaço.
Arquivo Público
Sidney Rocha, diretor do Arquivo Público, reconhece demanda por reforço técnico para a instituição. (Marília Parente/LeiaJá)
Responsável por preservar os acervos do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e da Comissão Estadual da Verdade, o Arquivo Público de Pernambuco também funciona com sérias dificuldades estruturais, que incluem infiltrações e falta de energia. “O arquivo público funciona em duas plantas. Uma na rua do Imperador, outra na Imperial, onde está a maior parte do acervo. Durante quinze anos, o Arquivo não recebeu a devida atenção do governo. Cheguei ali há dois meses, levantamos as dificuldades, estabelecemos com a Secretaria de Comunicação uma estratégia, e estamos tomando as decisões certas, que incluem a recuperação física do prédio da Imperador e a mudança para outro endereço, que não aquele da Imperial”, afirma o recém-nomeado diretor do equipamento, Sidney Rocha.
De acordo com Rocha, o acervo relativo à ditadura militar já está completamente digitalizado, mas demanda manutenção constante e periódica. “Além, disso, iniciamos a digitalização de parte do acerto mais urgente, em um convênio com a Cepe, e demos forma à uma política de gerenciamento documental, implementando, brevemente, a Tabela de Temporalidade, que regulamenta o manuseio, guarda, prazos de guarda e destinação de documentos das instituições públicas do Estado em relação aos seus próprios acervos. Ao fazermos isso, colocamos Pernambuco entre um dos poucos estados do Brasil com uma ferramenta de gerenciamento com esse alcance”, acrescenta o gestor do equipamento.
Apesar disso, Rocha admite que há déficit de profissionais na instituição. O gestor conta que entregou ao Governo do Estado um novo organograma, em que mostra a importância de trazer reforço técnico para o Arquivo Público. “Isto está sendo negociado. Acho que temos, no geral, no Estado, servidores e servidoras de menos. No Arquivo, não é diferente. Com tantos projetos em vista, vamos precisar de mais profissionais, mais arquivistas, técnicos, gestores”, completa.
Antes lotado na Secretaria de Educação e, posteriormente, na Casa Civil, o Arquivo Público agora responde à Secretaria de Comunicação do Governo do Estado. “Quando o Arquivo era da Secretaria de Educação, os servidores da pasta eram cedidos para um órgão da secretaria. Com isso, eles continuavam progredindo no plano de cargos e carreiras. Quando você tira esses profissionais da Casa Civil e os coloca na Secretaria de Educação, eles continuam lotados fora da Educação”, critica a deputada estadual Dani Portela (Psol).
A LOA 2023 destina uma rubrica no valor de R$ 577.400,00 para a "Dinamização do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano". O LeiaJá questionou a Secretaria de Comunicação sobre como tem sido feita a aplicação deste recurso, bem como cobrou um prazo para a recuperação da atual sede e mudança para um novo prédio. A reportagem também quis saber se a solicitação da nova gestão da instituição por mais técnicos será atendida. Até o fechamento desta matéria, a Secom não respondeu a nenhuma dessas perguntas.